quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

do que falam os mímicos quando conversam


― Itzal, Itzal, você veio me ver, a mim, este velho combatente, seu camarada de armas, um pobre militante esquecido pelos burocratas do partido... Não posso dizer que não imaginei que seria assim, não, isto já vi acontecer tantas vezes... eh, bem, não faça essa cara, você sabe do que estou falando: la mano negra, por suposto. Hmm, você deve conhecer a própria fama: quando o Sombra vem te visitar, é porque a morte vai chegar ― ele variava, mas o interlocutor percebia que no seu discurso coabitavam delírio e fato, fábula e verdade, segredos de fantasmas onde espreitavam histórias idas e outras nem tanto. E era isto que fazia o outro estar ali: a memória. ― O que me espanta é que tenham mandado alguém tão importante. Por quê? Só muito recentemente me ocorreu, como costuma acontecer com tantas coisas na vida, que tudo pelo que lutamos é o que o poeta chamou de tarde conocido desengaño, um espantalho capaz de atravessar séculos e gerações ― hoje me sobra tanto tempo para exercitar a autocrítica! ―, uma maldita ideologia religiosa Itzal, fomos os sacerdotes de um concílio leigo que se acreditava ciência, uma irmandade de facínoras sob o manto da facção política, falsos profetas, sicários travestidos de idealistas... ― com o indicador, descrevia círculos no ar ― Não foi atrás da revolução que nos estafamos, o que buscávamos era negar a desalentadora falta de sentido da história... caímos na ilusão milenarista, meu velho, a lorota do eterno retorno, dos ciclos de evolução e degradação: capitalismo, socialismo e comunismo, ou melhor, queda, penitência e redenção final; toda essa papagaiada apenas para exumar os restos mortais do sagrado!... O fanatismo, que nos fez pensar que se podia agir em função de uma justiça histórica superior, tinha a propriedade mágica de devolver propósito ao mundo, de lhe conferir uma missão a que chamávamos práxis revolucionária. Lembra? As pontas se encontram: a velhice é tão frágil quanto a infância; aquilo que termina onde começou, acaba por devorar a si mesmo ― Então, pôs-se a cantar: ― Euskara, jalgi hadi kanpora, Euskara, jalgi hadi dantzara!

― Mas... que cantoria de puta madre é esta agora? ― Xabier Lizardi estava incumbido de uma tarefa diferente das habituais, diurna e extramuros, o que o irritava mais ainda. Não havia como transladar o velho daquela cama sem chamar muita atenção, além do que o desgraçado era carne de pescoço.

― Língua basca, mostra tua cara, língua basca, sai para dançar. É uma canção. Abuelito quase só fala assim... ― Minervita, a neta de 10 anos, tinha se esgueirado para dentro do quarto; não fitava o estranho nos olhos, como a ninguém aliás, agarrava-se a um pedaço descascado da parede do quarto. Certas texturas que lhe davam a sensação de segurança.

― Ah, não, assim não dá, até a monguinha pode entrar e sair desta merda a qualquer hora? Lupe, Lupe, me tira a chica daqui, porra! ― Xabier não entendia aqueles destroços de uma família: Lupe, mãe adotiva de Minerva, cuidava bem do pai entrevado, apesar dele nunca ter ligado a mínima para ela ou para o meio-irmão, Huáscar, transsexual que mantinha um salão de manicure na frente da casa de 3 cômodos naquele musseque nos arredores miseráveis da capital de Mirassoles.

― Escuta bem Esteban Urkiaga, não estou pra charlas, vim até aqui porque você nos deve OITO, apenas 8 números que estão aí, dentro dessa sua cabeça confusa. O partido necessita desse dinheiro para a campanha de reeleição da presidenta; trata-se de uma conta numerada na Suíça à qual só você e Luís Amiana tinham acesso. Já temos os códigos-fonte e os backups digitalizados do Banco de Custódia de Zurique, são mais de cem milhões de dólares que podem ficar enterrados lá, compreende? O problema é que Luisito morreu num acidente de barco, você sofreu um derrame e nós, nós estaremos fodidos e mal pagos se não conseguir se lembrar; PRECISAMOS desses números, companheiro ― qualquer um que acompanhasse minimamente a política de Mirassoles temeria encontrar-se com o Sombra, aliás, Xabier Lizardi, aliás, Johnny Abbes García, aliás, Joaquín Balaguer, aliás... ninguém sabia ao certo quem ele era, embora todos soubessem muito bem o que ele fazia. A “restauración democrática” de Mirassoles, uma genial invenção dos marqueteiros, permitiu aos governos de esquerda que sucederam a longa ditadura do Generalíssimo Benfeitor chegar a uma cômoda divisão: a polícia podia continuar torturando os pobres, enquanto os partidos mantinham tonton macoutes como Xabier em prontidão. Uns e outros só tinham de ser discretos, agora que vigorava uma relativa liberdade de imprensa.

― Lancei a âncora no entardecer, tovarisch, ponho o pé no outono... A memória tem sido a minha prisão, uma prisão irônica de todo modo... Sabe o que o meu filho Huáscar me ensinou?, que os esmaltes de unha são todos ruins a despeito de preço ou marca, o que acontece é que alguns são piores... o mesmo se dá com os destinos humanos, cuja diferença é uma ou outra cor mais rara. Meu pai nasceu no mesmo dia e ano da Revolução Russa, meus avós, fundadores do partido comunista basco, foram fuzilados pelas tropas franquistas durante a Guerra Civil; com a minha mãe já grávida de mim, meus pais se exilaram logo depois, quando Mirassoles acabara de banir o PC. Nasci e vou morrer na clandestinidade e, cúmulo dos cúmulos, pelas mãos de um cidadão inexistente!... Acredita-me Xabier, esse maldito acidente vascular cerebral não me jogou somente nesta cama, tirou de mim também a capacidade de calcular... não consigo me lembrar de um número que seja ― baixou os olhos e, mais lentamente, virou a cabeça de lado, só então o visitante notou que o quarto havia mergulhado numa sombra opaca.

― Esteban, você me julga mal, não sou seu anjo exterminador, quero apenas os números. Quando ainda estava no movimento estudantil comecei cobrindo seus “pontos”, lembra? Caí preso como você, agüentei choques e pau-de-arara por 3 dias sem “cantar”, quando abri o bico a meganha não podia pegar mais ninguém, assim salvei a operação em que estava a sua irmã mais nova. Isso você não pode ter esquecido. Companheiro, você sabe o que está em jogo: nossos adversários políticos não são a verdadeira esquerda, eles fugiram do país, foram dar aulas em universidades estrangeiras bancados pela CIA; não estão, nunca estiveram, do lado do proletariado, nunca quiseram libertar o povo! ― a pequena debilóide continuava ali, lambendo o estuque da parede; Xabier nutria um horror físico para com os “loucos”, motivo pelo qual não arrastava a menina dali pra fora a tapas. Onde andaria Lupe, perguntava-se.

― Ninguém liberta quem não quer ser libertado, Xabi, a ditadura militar em Mirassoles acabou por esgotamento senil, corrupção generalizada, corrosão da hierarquia... tal como na Itália do pós-guerra assumimos o poder fazendo acordos humilhantes com um leão desdentado, mudando tudo para manter tudo igual, substituiu-se a ditadura do proletariado pela da imagem, ganhamos eleições... e o que conseguimos?, fizemos um país de verdade?, ou somos ainda, como nos filmes de Hollywood, um refúgio de ladrões, terroristas, mafiosos, traficantes, nazistas e ex-ditadores? Com as rédeas do país na mão, já não assaltamos bancos, nos vendemos aos donos deles, não mais seqüestramos diplomatas e empresários, achacamo-los na hora de financiar eleições, deixamos de fundar jornais, preferimos comprá-los com propaganda oficial, não nos envolvemos mais com movimentos sociais e sindicatos, damos-lhes verbas para que se calem. Itzal, perdoe o desabafo deste náufrago... bem vejo que você imagina que lhe escondo algo, olhe em volta, repare a pobreza da minha família... Espere, há algo que pode ajudar... outro dia sonhei com uma palavra enorme, acho que tem a ver com a tal senha...

― Palavra?, não, nada disso; veja, nós recuperamos no notebook do Luisito uma parte da seqüência, são 3 letras: M, L e S, que conferem segundo o banco, mas ainda falta a parte numérica. Como já te disse, são 8 números apenas e o que achamos foi um código binário de 0s e 1s que não conseguimos decifrar. Veja, tá aqui no meu celular: 111001101000000010001101. Te diz alguma coisa, essa porra?!

― Yamátárájabhánasalagám. Foi essa a palavra que sonhei... anotei também, quer?

― Esquisito, vale, creio que andamos em círculos, mas... vou mandar para a equipe de criptoanálise da Casa da Caoba, quem sabe? ― levantou-se e começou a disparar telefonemas para a sua poderosa rede de contatos.

― É sânscrito, o abuelito... ― Minerva podia não compreender o que se passava naquele quarto, mas fazia a sua parte para entregar logo o que aquele homem odioso queria para que deixasse seu avô em paz.

― Ah, claro, e entendes também dessa língua de pagãos né, pirralha?... Alô, Quiñones, não esqueça de dizer que pode ser que a palavra esteja em sânscrito, ou seja lá que bosta de língua for, hem? OK, mas rápido, então, quero respostas! ― esperou em pé junto à janela que dava para um corredor que interligava as habitações da casa. Meia hora depois, a resposta: negativo, não era sânscrito nem nenhuma língua conhecida; a tal palavra não codificava nada. Sentou-se de novo de frente para o doente. ― Você não está me ajudando Esteban, se você não me ajuda como é que eu vou poder te ajudar?...

― Estou fazendo tudo que eu posso, juro... Hmm, compreendo a sua função, não o julgo... mas, e de que vai adiantar, Xabier, matar quem já está morto? ― naquele momento, ouviu-se a voz de Lupe vinda dos lados da cozinha. Olharam-se. O rosto do velho crispou-se, subitamente vincado pela dor; as palavras saíram-lhe trêmulas, arrancadas a custo num murmúrio lancinante: ― Não... não a maltrate muito, por favor... você tem experiência nessas coisas, vai ver logo que ela não sabe nada, vai ver que é um sofrimento inútil... so-só te peço uma coisa: acaba comigo antes, não quero ter que encará-la depois, sabendo... sa-sabendo que mais uma pessoa sofreu por minha causa...

***

Os capangas do Sombra fizeram uma razzia naquela noite: reviraram a casa toda, espancaram brutalmente Huáscar, não sem antes destruir todos os espelhos e equipamentos do salão dele, levaram Lupe prometendo devolvê-la em 3 dias. Pouparam apenas a aterrorizada Minerva ― nem precisaram, já que ela própria batia a cabeça contra a parede durante a operação. No entanto, era a única que poderia ter lhes dado o que buscavam. Dias mais tarde, quando Lupe voltou, ficou evidente que algo nela se desligara para sempre; Esteban Urkiaga já tinha sido enterrado, a casa estava mergulhada num silêncio só entrecortado pelo barulho das teclas do computador de Minervita; ela conversava pela internet com um dos seus amigos hackers no PC antigo que se salvara da destruição.

― Uau! 100 mijones de doletas $$$$!!! C/o q vc crackeou a senha?
― Meu vô tava estudando sistemas autovorazes, uroboros, a cobra que come o próprio rabo, yamátárájabhánasalagám não quer dizer nada, os hindus inventaram para mnemônica de ritmos, tripletos, o segredo é a acentuação, substitua silabas acentuadas por 1s e as outras por 0s e temos: 011101001, seqüência que codifica todos os triplos possíveis de batimentos curtos e longos, é só se deslocar uma casa p/ esquerda...
― Pesquei! 0 fica 011, 1 fica 111, 2 fica 110 e assim por diante... duca!
― Então ficou: M, L e S, são Marx, Lênin e Stálin, os heróis do meu avô, e os números são 17, revolução russa, 36, início da guerra civil, 64, revolução em Mirassoles e 73, o ano em que os pais do meu vô foram mortos pela ditadura do Generalíssimo na guerrilha rural.
― E o q vc vai fzr agra?
― Esperar. Quando fizer 18 vou até lá (escondeu que era na Suíça) e pego a grana.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 25

Aldeia dos Quatro Montes




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25

Numa das mesas da sala de comer da Pensão Moderna, Pedro e o Senhor Director faziam tempo até que lhes servissem a sopa. Sala cheia, isto é, uma dúzia de pessoas, que os tempos não estavam fáceis… Bem dizia a Ti Joaquina que qualquer dia ainda tinha de pagar para ter clientes.
Maria fez questão de servir primeiro o Senhor Director.
- Basta uma concha, minha jovem…
Apesar do calor na sala, a sopa era sempre servida quase a ferver. Um pequeno truque que a Ti Joaquina ensinava a todas as empregadas da Pensão.
Pedro deixou que Maria o servisse à vontade… Um prato bem cheio!
- Está sem apetite?
O Senhor Director olhou para Pedro, enquanto a sua colher pousava no prato…
- Não é bem isso.
Pegou numa das fatias de pão de mistura. Tirou-lhe um pedaço…
- Sabe que tenho muito apreço por si, Pedro.
O tom era sério mas, ao mesmo tempo, com um toque de emoção.
- Permita-me que lhe faça esta pergunta. Está a pensar em ficar por 4 Montes?
Pedro suspendeu a viagem que a colher fazia. Geralmente, reagia mal quando lhe faziam perguntas a que ele próprio não sabia responder… Esteve quase para responder com uma outra pergunta. Mas…
- Ainda não me decidi. Nestes últimos dias, tenho andado a pensar que hei-de fazer à minha vida. Se quiser, posso ficar sem fazer nada durante uns bons tempos. Só que começo a ficar impaciente… Veja lá que até voltei a ler!
- Ah, sim?...
- Fui-me ao velho Eça! Encontrei na estante lá de casa as Cartas de Inglaterra. Já nem me lembrava de as ter lido.
- Meu caro… Sabe que essas Cartas são artigos que ele enviava para jornais? Ainda não há-de haver muito tempo me fizeram companhia. Sempre foi um dos autores da minha predilecção… Mas, e vai perdoar-me a indelicadeza da insistência…
Pedro percebeu que o Senhor Director não o ia deixar mudar de assunto… Tendo ele tornado bem claro que não tinha tomado nenhuma decisão, por que é que o Senhor Director insistia?
Pedro tentou ganhar tempo. Chamou a empregada para lhe pedir que trouxesse mais sopa.
Maria , que não os perdia de vista, num átimo estava com a terrina junto à mesa.
- Está a gostar da sopa? A Ti Joaquina já me tinha avisado que o senhor Engenheiro iria pedir mais…
Pedro deu uma risada. Maria adorava ver Pedro assim… Solto, de sorriso aberto… Como era bonito!
………
Angélica tinha por hábito acompanhar o almoço dos residentes do Lar. A sala de refeições era um espaço amplo, com largas janelas que davam para um espaço verde. As cores usadas eram suaves e completavam-se com uma doce harmonia. E, apesar de quase todos serem duros de ouvido, as conversas decorriam em tom, relativamente, baixo.
As duas empregadas que serviam à mesa, retiraram os pratos da sopa e começaram a servir o prato principal. Bacalhau cozido com batatas e grelos. Um prato que todos apreciavam.
Angélica reparou que Arlindinha lhe fazia um sinal.
- Então, senhora Arlinda? Não me diga que a comida não está ao seu gosto?
Arlindinha era a protestante do Lar. Havia sempre qualquer coisa que não estava bem…
- Tirando o caldo que tinha pouco sal, a senhora doutora bem sabe que eu cá gosto de bacalhau. Mas o que eu queria era fazer-lhe um pedido…
Angélica puxou de uma cadeira e sentou-se bem ao lado dela.
- Ora, diga lá então…
- Será que um dia destes nos podiam servir umas alheiras?
Angélica olhou para aquela velhota e, depois, para as outras duas senhoras que completavam a mesa. O olhar delas dizia tudo. Esperavam uma resposta…
- Bem sabem que…
O cuidado com a alimentação era uma das questões a que Angélica mais importância dava. Muito cuidado com os fritos, com as gorduras em excesso, com o sal… Mas, de que adiantava ter uma alimentação que retirava o prazer de recordar um bom petisco?
- Pode ser!
Angélica admirou-se da reacção de toda a sala. Só nessa altura percebeu que todos tinham acompanhado a conversa.
- Mas, atenção! Nada de abusos…
Angélica sentiu-se satisfeita consigo mesma. Era disto que gostava. Sentir que uma sua decisão podia dar um pouquinho de satisfação àquela gente.
Arlindinha tinha mais uma coisinha para lhe dizer.
- Já agora e se não for pedir muito…
- …?
- As melhores alheiras são as que a Ti Joaquina faz!
Quanto a isto não havia dúvidas. Angélica concordava inteiramente com a senhora Arlinda.


(Estória, em capítulos, aos Domingos e Quartas)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Vandré





"Quando eu terminei meu curso de Direito aqui no Rio, e fui me dedicar a uma carreira artística, eu já sabia que Arte é cultura inútil; mas hoje consegui ser mais inútil que qualquer artista: eu sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil que isso?" (Geraldo Vandré)



A entrevista tem quatro partes e é deliciosa, em parte por causa das perguntas absolutamente estúpidas do repórter. Divirtam-se.

domingo, 9 de janeiro de 2011

"0"

odeias

o ódio te dói

adentro

ab ovo

vaso

que o amor só

constrói

e podes gozar

a teu modo

e medo

o ódio esconso

que em ti

rói

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 24

Aldeia dos Quatro Montes





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24

O sino bateu as nove badaladas. A manhã estava tão embrulhada no nevoeiro que Salústrio não conseguia ver a fachada da igreja. O frio parecia mais frio devido à humidade. Como sempre, o Senhor Director não demoraria a aparecer para tomar o seu primeiro café. Se um dia, por uma qualquer razão, o sino não batesse as horas, bastaria esperar até que o Senhor Director se sentasse à mesa do ArcoBotante para acertar o relógio. Mais certo que o relógio do Big Bem! Nove horas e dez minutos…
- Bom dia caro amigo!
. Bom dia, Senhor Director!
Salústrio levou a chávena do café e o Jornal das Notícias.
Salústrio voltou para o balcão, atendeu os clientes, arrumou a louça na máquina, limpou o balcão…
Quando voltou a olhar para a mesa que o Senhor Director ocupava notou algo de muito estranho. O jornal continuava dobrado conforme o deixara. O Senhor Director tomava o café, com a pequenina chávena na mão… Olhava lá para fora, para a massa densa de nevoeiro que nada deixava ver.
Pousou a chávena… e continuou absorto nos seus pensamentos. Deitou um olhar para o jornal mas não lhe pegou.
Salústrio estava perplexo. A primeira coisa que o Senhor Director fazia era ler o Jornal das Notícias, de fio a pavio… Todos os dias!
Salústrio pegou num pano, colocou-o numa das bandejas e saiu do balcão. Começou a limpar as mesas e foi-se aproximando daquelas que estavam mais próximas da do Senhor Director.
- Então, caro amigo, como é que foi essa passagem de ano?
Salústrio notara que o Senhor Director só tinha voltado da sua habitual viagem de Natal, no dia primeiro de Janeiro, pela tardinha.
- A fogueira aguentou-se até ao raiar do dia?
- O Senhor Director sabe que a rapaziada faz questão de acarretar lenha que dure toda a noite. Este ano até exageraram… Segundo ouvi, ainda havia canhotos a arder lá pelas duas da tarde!
- E houve novidades! Música de aparelhagem e tudo…
- Sabe que eu nem sou muito a favor de algumas modernices. Mas até que foi bom! Olhe, pelo menos eu, fartei-me de dar ao pé! Também com o frio que fazia ou me punha em cima do fogo ou dançava…
- A Ti Joaquina já me contou que foi uma noitada como ela já não se lembrava.
- Pena foi que o Senhor Director cá não estivesse!
O Senhor Director fechou o semblante. Pegou na chávena e só depois se lembrou que já tinha acabado o café. Ficou a olhar para o fundo da chávena.
- Faz-me o obséquio de me tirar mais um?
Salústrio sentiu-se aliviado com o pedido. Nem sabia o que havia de fazer ou dizer…
………
Angélica tinha chegado ao Lar pouco antes das nove horas. Deu uma passada por todos os serviços, deu as boas horas aos residentes e dirigiu-se ao seu gabinete. Tinha convidado Pedro a visitar o Lar. Enquanto se aqueciam junto à fogueira de fim de ano, tinha ficado a saber que Pedro não conhecia o Lar. Sabia quem lá estava, conhecia quem lá trabalhava mas como estivera para fora quando tinha começado a funcionar, nunca se tinha proporcionado a ocasião de o conhecer por dentro. Angélica fez questão de o convidar para uma visita.
Pelo telefone comunicaram-lhe que Pedro tinha chegado. Disse à moça que estava na entrada que já iria lá ter.
Pedro, com aquela sua maneira de se dar com toda a gente, estava á conversa quando Angélica apareceu.
Depois dos cumprimentos, levou Pedro a dar uma volta por todas as instalações. Terminaram a visita no seu gabinete. Angélica serviu dois cafés. Sentou-se na sua secretária e Pedro ocupou um cadeirão à sua frente.
- Os meus parabéns! Tem aqui uns serviços muito bem organizados!
- Sabe, Pedro, essa é uma das razões que mais me motiva a vir trabalhar todos os dias! Com os poucos recursos de que dispomos temos de os transformar em serviços com a maior qualidade possível. E, na minha maneira de ver, para conseguir atingir esse objectivo, só com muita organização é que lá chegamos. Algumas vezes as funcionárias reclamam… Dizem que sou muito exigente! Eu costumo responder que nos pagam para fazer tudo bem feito!
- A Angélica tem a enorme vantagem de não ser daqui, de 4 Montes. Assim, não está presa às pequenas coisas que costumam emperrar tudo.
Angélica ficou a olhar para Pedro. Sabia aonde ele queria chegar mas também sabia que esse era um tema que ela se habituara a não discutir com ninguém.
- Para mim, é muito simples… Contrataram-me para que o Lar funcione bem. Põem à minha disposição, dinheiro e instalações… Tenho de ter pessoas a trabalhar para que os serviços sejam prestados com qualidade aos residentes. O resto… é o resto!
Pedro gostava das pessoas assim. Com um sentido pragmático da vida… E, principalmente, sabendo bem para onde queriam ir.
………
A Ti Joaquina andava numa roda viva na sua Pensão Moderna. Estava no mini-mercado a fazer umas mudanças.
- Ano Novo, vida nova! Vamos lá acabar isto, que não demora muito começam a chegar os fregueses para o almoço…
Ela mais a moça que tomava conta da mercearia, estavam junto ao balcão refrigerado onde arrumavam os queijos, manteigas e outros produtos que tais.
António Augusto entrou porta a dentro.
- Arre… que este nevoeiro até se entranha pelo corpo!
Ti Joaquina ficou espantada com a linguagem usada pelo Senhor Doutor Juiz. Este percebeu que se excedera pela reacção que as duas senhoras tiveram.
- As minhas desculpas… Mas este tempo aborrece-me! Faz-me falta o sol!
A Ti Joaquina atendeu o cliente que, por sinal, muito estimava.
- E a senhora dona Ana Luísa? Desta vez, não veio?
- Não… Está para o estrangeiro. Aproveitou um convite para passar umas semanas na Suíça… Está numa estância de desportos de inverno. Ela sempre gostou de fazer ski.
- Pois olhe que não lhe gabo o gosto! Isso do ski, é aquela coisa de andar em cima da neve, não é? Não era a mim que me punham a andar a apanhar frio… Se eu não aguento este nevoeiro gelado, imagino o gelo que lá não deve estar!
António Augusto deu uma sonora risada…


(Estória, em capítulos, aos Domingos e Quartas)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

a norma

a coisa mais normal do mundo
é querer ser considerado
respeitado
amado
enfim
ser tido e tratado como um
dos nossos
lado a lado com o desejo
de ser incomum original nunca visto
ou seja
único
então o normal é querer
o que não se pode
sonhar como se tudo fosse possível
e nada satisfaz ao ser
atingido
para além da ordem um imenso
vale-tudo
depois do ser um impensável
nada

(lá fora frio e aqui a cerveja quente)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Aldeia dos 4 Montes - AVISO

Informo que, devido a problemas técnicos, o episódio que devia entrar hoje, cerca das 19 horas, só vai estar disponível durante a próxima madrugada (espero eu...)!
Minhas desculpas pelo atraso!

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

a favor e contra

sou a favor da pena de morte
para o Criador

sou contra o aborto
da natureza

sou a favor das drogas
para dores de parto

sou contra o trabalho infantil
e adulto

sou a favor do casamento gay
para humanos, ETs e outros

sou contra qualquer tipo de racismo
afinal, há raça humana?


domingo, 2 de janeiro de 2011

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 23

Aldeia dos Quatro Montes




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23

Estava uma daquelas noites de arrepiar. Negra como breu! Frio de rachar!
A azáfama para os lados da escola era grande. Grandes pedaços de árvore já estavam amontoados e alguns dos mais jovens preparavam tudo para lhes chegar fogo.
Era tradição de 4 Montes fazer uma grande fogueira na noite de 31 de Dezembro. Durante a tarde, tinham ido ao monte cortar a lenha que havia de arder até ser dia. Nunca faltavam braços para esta tarefa…
Quando se fizesse noite haviam de acender a fogueira. E, aos poucos, havia de se juntar um magote de gente. Cada um traria bebidas, para si e para distribuir pelos mais chegados.
Uma gaita de beiços animaria uma qualquer dança… E não faltariam as cantorias! Conforme o calor, provocado pela fogueira e pelo álcool, fosse aumentando, algumas das cantigas seriam cada vez mais brejeiras e outras de mal-dizer. Não seria a primeira vez, nem a última, que um determinando verso provocasse um par de tabefes e uma algazarra… Depois, lá se afastavam os contendores e a coisa continuava.
Pedro e Salústrio apareceram quando já passava das onze e meia. Iam carregados com uma boa dúzia de garrafas, não faltando o espumante para rebentar ao som das doze badaladas do sino.
A Ti Joaquina nunca faltava à fogueira de fim de ano. Numa cesta trazia uns figos secos e umas nozes… Maria é que vinha mais carregada.
- Ó rapariga… Até parece que nasceste ontem! Não me inclines a caixa que lá se vai o molho dos sonhos!
Salústrio era um homem prevenido. Trouxera uns cálices que encheu de um bom vinho fino.
- Este é mesmo vinho fino. Do Douro! Não tem nada a ver com vinho do Porto… Como se no Porto se fizesse vinho!
Salústrio embirrava com aquela mania de roubarem os nomes dos melhores produtos da sua região. Sim… Porque, para ele, o facto de o vinho ser feito no Douro e o designarem como do Porto, só podia ser um roubo…
A Ti Joaquina não se deixava enredar naquelas querelas. Para ela, que apreciava a bebida, tanto se lhe dava que fosse do Douro ou do Porto. Se fosse bom…
- Homem, bote cá mais uma pinga dessa e deixe-se de tretas! Olhe prove um sonho… Ou quer um figuinho?
Ao som da gaita de beiços já alguns pares tinham dado um pé de dança. Foi, então que se abriu uma das janelas da escola e…
- Minhas senhoras e meus senhores! A aparelhagem de som de 4 Montes deseja a todos um bom fim de ano! Vamos começar!
Os mais velhos ainda torceram o nariz àquela modernice… Quando começaram a tocar as músicas que estavam na moda lá lhes foi passando a azia. Mas, rapidamente, foram contagiados pela animação dos mais novos e entrou toda a gente no bailarico.
Quando faltavam dois minutos para a meia-noite a música parou. Prepararam-se as garrafas do espumante e ao findar a última das doze badaladas, acompanhadas uma a uma com uma passa de uva, as rolhas saltaram.
- Bom Ano Novo!
Abraços e beijos, uns mais arrebatados e outros mais de circunstância, correram pelo recreio da escola.
O frio levou muita gente para junto da enorme fogueira. Caía uma geada de respeito mas ninguém parecia muito afectado.
Salústrio comia um dos sonhos da Ti Joaquina.
- Muito bons… Como sempre!
A Ti Joaquina gostava que lhe gabassem os dotes culinários.
- Ora… E o Pedro? Ele é que gosta deles…
Angélica estivera no Lar até à passagem de ano. Depois de ter desejado e recebido os votos dos residentes e das funcionárias de serviço, decidira dar uma saltada até à escola.
Mal entrara dera com os olhos em Pedro.
- Que o novo ano lhe traga muitas felicidades!
Angélica agradeceu e aceitou o convite para uma taça de espumante.
Juntaram-se a Salústrio e à Ti Joaquina. Ainda tiveram tempo de fazer um brinde ao ano que entrava antes da aparelhagem de som voltar a lançar todos para mais umas danças.
A Ti Joaquina e Salústrio gostavam de dançar. E como dançaram…
- Ai que já não aguento mais… Homem, que você hoje está com a genica toda!
Salústrio riu-se e, galantemente, deu o braço a Joaquina e afastaram-se para junto da fogueira.
- Não me divertia assim há um ror de tempo…, disse Joaquina.
Salústrio, com um cálice na mão, olhava para os pares que continuavam a rodar.
- Parece que não somos só nós que nos estamos a divertir…
Angélica e Pedro chamavam a atenção de quem apreciasse dançar. Elegantes, fluidos nos movimentos, em coordenação perfeita…
Aquela música acabou e Pedro fez uma ligeira vénia a Angélica.
- É um prazer acompanhar tão graciosa…
Maria não gostou de ver aqueles salamaleques de Pedro para Angélica.


(Estória, em capítulos, aos Domingos e Quartas)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.