quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Afterlights (final)




― Acho que aqui está tudo que precisa saber sobre mim. Mas talvez você ainda tenha de me explicar como é que isso vai funcionar.
― Ah é? Pensei que o pessoal da empresa já tivesse lhe contado os detalhes do procedimento. Na verdade essa não é a minha função no... bem, no processo. Mas, ok, vamos lá...
― Entenda, eu não estava muito com a cabeça no lugar quando contratei a Afterlights, acho que ninguém está numa hora dessas. Tudo que consigo me lembrar da conversa com o pessoal do suporte é que não ia sentir dor. Depois disso, recebi a papelada que me enviaram e assinei tudo reconhecido em cartório.
― Veja, ainda dá tempo de desistir. Pra falar a verdade, desistências têm sido bastante comuns na minha experiência com este negócio.
― Não vou desistir. Apenas quero entender um pouco mais, um sentimento bastante humano, não? Quando vieram buscar Sócrates para tomar o veneno que o mataria, encontraram-no aprendendo uma música na sua flauta. Os discípulos lhe perguntaram por que se ocupava disso em seus derradeiros momentos, e ele respondeu: porque assim terei aprendido uma coisa nova.
― Muito justo. Imagino que não se fazem mais sábios como antigamente. É bastante simples: primeiro, tem este aparelho que parece um secador de cabelos de salão de cabeleireiro antigo, ele faz um scanning completo do seu cérebro. Fica tudo salvo neste HD externo. Daí, nós passamos para a segunda fase, eu ligo este equipo de soro que injeta separadamente tionembutal, pancurônio e cloreto de potássio, e, em menos de vinte minutos, estará tudo terminado. A primeira droga anestesia e põe pra dormir, a segunda, relaxa seus músculos e pára a respiração, a terceira substância trava seu coração na hora em que ele se contrai. Raramente falha, e nesses casos, ainda assim, a empresa oferece um shot de morfina em doses cavalares para garantir. Limpo, indolor, e 100 % garantido.
― Tá certo, mas essa é a parte operacional da brincadeira, o que eu gostaria de entender é a parte negocial.
― Negocial?
― Ora, meu caro, trata-se de uma empresa, não é mesmo?, e no fim do dia as empresas têm de realizar lucro. Se estão pagando, a mim e a você, por isto, essa parafernália tem que ser lucrativa em algum ponto. No meu caso, a grana servirá pra pagar o enterro.
― Até onde consegui entender, senhor Ogawa, a parte importante é transferida para o HD. As suas memórias, é isso o que eles querem.
― Se fosse assim como diz, bastaria que viessem aqui fotografar este salão. Ao menos no meu caso, seria bastante fácil, além de economizar pessoal e aparelhagem. Não vejo como escarafunchar as lembranças de um velho solitário, esquisito e pobre possa se transformar em dinheiro. As crianças e os suicidas falam uma língua antiga, eu os outros já esqueceram. Quem decodifica?
― Bom, essa parte fica a cargo da equipe técnica, um bando de geeks que passa o dia vasculhando as informações coletadas. Hoje em dia, o que as empresas mais precisam é de informação sobre os consumidores.
― Informação? Olhe em volta, o que você enxerga? Acha mesmo que aqui se pode encontrar o perfil de algum ávido consumidor de bugigangas?
― Outra coisa que o patrão me contou é que qualquer pessoa, por mais inútil que pareça, em algum momento da vida, teve uma boa idéia.
― Essa é a melhor de todas, uma idéia que preste! Nunca imaginei que se pudesse vender idéias, que eu saiba, o que de verdade interessa são projetos ― ele tirou a boina, descobrindo as orelhas ínfimas ―, ou seja, a maneira de transformar sonhos em realidade.
― É que vivemos uma espécie de apagão de idéias razoáveis, e os especialistas não têm ajudado muito para o progresso geral dos povos...
Instalei o soro na veia tão logo o scaneamento terminou, ele adormeceu rapidamente. O celular tocou, era da Afterlights, queriam saber se tudo corria bem.
― Tá tudo certo, o pulso já parou. Er... posso levar uma lembrança daqui?
― Lembrança?
― É. Eu gostaria de ficar com as orelhas dele ― o cara desligou com um palavrão.
Pela janela, vi um passarinho cruzar o céu alto. Tirei meu relógio do pulso e depositei-o sobre uma tábua de passar roupa. As recordações continuavam todas quietas ao nosso redor.


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