domingo, 31 de janeiro de 2010

conversa de café - O mistério das alheiras

- Boa tarde, Dona Felisberta.
- Boa tarde. O mesmo de sempre?
Ainda eu não tinha acabado de me sentar, quando entram duas “senhorecas”, conversando animadamente.
- …e então ela chama-me para ir ver o fenómeno! Lá fui eu…
- Pois olha que eu era capaz de não ir!
- Pois… mas lá fui eu. Abriu a porta e não é que era verdade? Lá estavam as alheiras todas esparramadas no chão que até parecia uma estrumeira!
- Todas??
- Bem… todas, todas não, que quando olhei para as varas ainda vi umas duas dúzias penduradas… Uma aqui, outra acolá…
- Que estragação!
- Tanto trabalhinho tivemos! Um dia inteiro, meia dúzia de mulheres para encher quarenta dúzias e ver aquilo assim… Até me deu uma dor de alma!
- Mas… foi das tripas ou?
- Qual quê… quais tripas! Cá para mim, aquilo foi mau-olhado que lhe deitou a Joaquina, que ela nem lhe pode ver um farrapo novo. É cá uma invejosa! Rais parta a mulher!
- Ora… Ora! E tu achas que o mau-olhado agora deita as alheiras abaixo, é? Tás é maluquinha! Ora, vejam lá… Não me digas que a tua prima também acredita nessas patranhas?
- Pois olha que quando lhe disse que só podia ser servicinho de alguém que lhe queria mal, não é que ela chegou logo lá?? Olha que há gente capaz de tudo!!
- Eu nessas coisas não acredito! Isso é que era bom! Tás-me a ver a mim a acreditar que alguém pode deitar um mau-olhado e as alheiras a começarem a cair das varas? Tem mas é juízo!
- Pois é… não acreditas nessas coisas? Olha que estes olhos já viram muita coisa! Sabes quem é a bruxa da Carvalheira? O que é que lá terá ido fazer a Joaquina a semana passada?
Eu quando vou à bruxa é porque quero alguma coisa!
- E eu é que sei o que é lá vão fazer as pessoas? Olha… eu é que não vou lá! Nem a essa nem a outra qualquer! Vade retro…
A Dona Felisberta, que estava a lavar uma chávenas, virou-se para elas.
- Eu estou como diz o galego: Não acredito em bruxas… pero que las hay, hay!
- Tás a ver? Até aqui a Dona Felisberta sabe que há destas coisas.
- Vá… vá! Não me meta nessa alhada que eu não quero confusão com ninguém. Olhe… Já agora, se mal pergunto... E só caíram as alheiras? A sua prima não fez chouriças pretas?
- Que é quer dizer?
- Oh, mulher de Deus! As chouriças de sangue! Os palaios!
- Pois, olhe que fala bem! Realmente… eu não vi nenhuma no chão!
- Oh, Diabo! Esse serviço é poderoso! Capaz de fazer deitar abaixo as alheiras e deixar escapar o resto, é obra!!
- Eu não te dizia?! Às tantas foi das tripas…
- Pois… poderá ser! Mas a mim ninguém me tira da cabeça que a Joaquina é má rês. Rais partam a mulher!!

sábado, 30 de janeiro de 2010

quando Deus manda...



— Dna. Camélia, a senhora acaba de perder tudo na enchente, diga alguma coisa para os nossos ouvintes, passe a sua mensagem, seu apelo!...

— Ah, meu Santíssimo, o homem põe e Deus dispõe, graças ao bom Deus, que nóis só perdeu foi coisa, meus filhos tá aqui do meu lado, louvado o Senhor seja, meu marido tomém tá salvo porque tava no bar na hora da tragédia, agora nóis perdeu foi tudo: roupa, móvis, televisor, comida... (soluço) nóis tá é numa precisão danada do decomer...

— Ouvintes do nosso programa Se Abra Para Cristo da sua rádio Evangelho da Graça, FM 101.1, se vocês puderem enviar donativos, alimentos, o que puderem, liguem no 39998666 e façam a Graça correr para suas vidas. Jesus Cristo esteja em vossos corações! Agora passamos aos nossos anunciantes...

— ... (chorando) nem sei como lhe agradecer, irmão Enoque, que Cristo sempre ilumine os seus passos e faça seu programa o maior de todos do rádio, Deus vai olhar pela minha família...

Acontece que o Inimigo não dorme nunca, e Simão Ahasverus, Pontifex Maximus e Grande Arquimandrita da Igreja da Negação, a tudo ouvia e ligou imediatamente para a rádio, conseguindo o endereço da vizinha onde Dna. Camélia estava albergada com a família; seu plano astuto era dar-lhe pelas mãos do Maligno o que ela havia pedido ao Altíssimo. E fazer os ouvintes da 101.1 FM saberem disso. No mesmo dia, lá chegava o estafeta de Ahasverus com uma generosa doação aos desabrigados e, claro, a equipe da rádio para colher tão belo testemunho ao vivo. Dna. Camélia não perdeu tempo e pôs-se a arrumar os donativos junto com a filharada que se esbaldava nos bombons e salgadinhos que chegaram em caixas. Havia mantimentos para mais de mês.

O preposto faz então a pergunta capciosa: — O que é que é isso Dna. Camélia, a senhora nem vai perguntar quem está lhe mandando tamanho presente?

— Carece não meu filho, quando Deus manda, até o Diabo obedece...

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O DIÁLOGO














Eu perguntei ao poeta:
- Poeta, o que é a vida?
e o que ela, no fim, nos revela?

- A vida?
(disse o poeta)
Nada existe mais fugaz!

A vida é algo tão frágil
como a lembrança da luz
de uma vela.

Ela sempre nos abandona,
sem nehum motivo,
e quando menos se espera.

A morte,
(por outro lado)
é uma velhinha exigente,
autoritária,
durona,

e inevitavelmente fiel.



FOTO: Farya Pirbazari

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

o sentir


Não há palavras

.

Vasto mundo sem fronteiras

Dos sentimentos em minh’alma

Descortinai os desejos

As vontades, os quereres

Que campeiam em disparada

Montados no pensamento

.

Não há palavras

.

Para medir emoções

Quantificar elementos

Dos sentimentos cá dentro

Desse peito ensanguentado

Das pulsações violentas

Contidas em desejantes

Situações conflitantes

Embaladas nas tormentas

Da alma dilacerada

Jogada no movimento

Na tempestade do vento

Carregando as aflições

.

Não há palavras...

(edmar oliveira)

__________

quadro de Emydio de Barros, acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

a vida é uma infecção da matéria


aqueles dias sem balanço

um tempo resignado

que deixam atrás de si

o pó do senso comum

desmemorável

como em noites sem vagalumes

faltam refúgios para esconder

uma minhoca

e não há espaço para pôr

as moscas

onde o mosquito sequer

encosta

somente o Amor acharia a resposta

chegar, entrar e deitar

a dificultação da leitura é o elemento estruturante do sentido (será?)


sem considerar a arca dos consagrados
e a mediocridade da geração de 45
não estranha que os crítiticos se manifestem
a favor de uma ou outra linha
e que o mesmo abismo se repita
na insignificância da cultura
braz
é também certo que uma escrita libertina
deixa o mundo em frangalhos
pústulas latifoliadas de uma flor de cuspe
em cuja inanidade com firma reconhecida
eu sou uma estupidez amarrada a um poste
que lampeja aqui e ali
fagulhas a crestar de euísmo
meu inútil delírio
o que a alucinação (suspensa)
tem a ver com
a poesia
o que faz do professor universo-otário
guardião, donatário, depositário e juiz
dos enunciados?

o viajante nu


nunca acorde

os mortos

durante o dia

ouse reabrir as portas


da percepção

faça caminhos que

eles

não possam dispersar

ainda há bilhetes

para a dança do horror

queime a fúria

depois

da noite de transe

sábado, 23 de janeiro de 2010

conversa de café - Raio de vida...

Estávamos sentados a tomar o café depois do almoço e a conversa ia e vinha a propósito e despropósito das imagens que corriam na televisão.
- Que raio… Agora é todos os dias! Até parece que não há mais nada para dar! Mais um que matou a mulher…
- Sabe-se lá o porquê destas coisas… Quantas mais falarem nisto, mais malucos há para os imitarem.
- Tu achas que funciona assim? Só porque ouvem na televisão uma notícia destas, há gente capaz de pensar em dar um passo destes? Não… Quem faz uma coisa destas é porque já a andava a tramar…
Entretanto, chega o Neca e senta-se para tomar o cafézinho.
- Então, novidades?
- Mais um que matou a mulher… deu agora mesmo nas notícias.
- Disseram que este ano já há oito mortes destas…
- E ainda o ano está a começar!
- Não dá para perceber… Porra, se uma gaja anda a pôr os cornos a um gajo eu ainda aceito que se lhe dê um par de estaladas e depois… rua! Agora, matar??
O Neca pousou a chávena e puxou do cigarro. Como aquele era um café de não-fumadores ficou a brincar com ele entre os dedos.
- Pois… É fácil falar quando não é connosco.

Olhai… Quando estava na guerra na Guiné, foi parar à minha unidade um rapaz aqui de Trás-os-Montes. Calado, daquele tipo de gente que se mete para dentro de si mesmo… Mas era um gajo de confiança! Quando precisasses dele podias ter a certeza que não falhava. Passado um tempo, ele soube que eu também era destas bandas e como eu era alferes veio pedir-me um favor..
Bom, o que interessa é que fomos ficando mais à vontade um com o outro e um dia, já nem sei por que carga de água, veio à baila falarmos sobre a minha ida para a guerra.
Lá lhe contei que tinha sido obrigado a abandonar Coimbra e o curso por que alguém deve ter achado que eu também andei metido naquela confusão da greve académica… Como se eu não tivesse coisas mais interessantes para me ocupar do que com a merda da política…
Foi então que me contou a história dele.
Trabalhava numa oficina de automóveis como aprendiz de mecânico. Já namorava com uma rapariga lá da aldeia há bastante tempo. Como tinha sido aumentado e o padrinho, que era o dono da oficina, lhe tinha prometido que podia ficar a trabalhar naquela arte, tinham achado que estava na hora de constituir família e decidiram casar.
O casamento estava marcado para um sábado e na quinta-feira o padrinho chamou-o ao escritório onde também estava a madrinha que lhe desejou as maiores felicidades e lhe entregou um grande embrulho. Era a prenda de casamento. O padrinho disse-lhe que podia ir para a aldeia, para ajudar aos preparativos da boda e prometeu-lhe que estaria lá bastante cedo para dar uma palavrinha aos pais dele.
O rapaz lá foi. Apanhou uma boleia e chegou à aldeia ao fim da tarde.
Como levava a prenda e querendo fazer uma surpresa à noiva decidiu que o melhor era não a guardar em casa.
Atrás da casa tinham um palheiro e foi para lá que se dirigiu enquanto pensava qual o melhor lugar para esconder o embrulho.
Conforme abriu a porta, ouviu uns ruídos… eram uns gemidos que vinha de trás de uns fardos de feno. Curioso, deu dois passos na direcção dos fardos e pôs-se em bicos de pés para ver por cima deles…
Ficou paralizado, deixou cair das mãos o embrulho…
Encostada aos fardos estava uma forquilha…
Instintivamente, pegou nela com as duas mãos e atirou-se por cima dos fardos de feno e espetou a forquilha no par que dava origem àqueles gemidos.
Os ganchos da forquilha trespassaram o homem de um lado ao outro e enterraram-se na moça.
Com raiva, empurrou uma e outra vez a forquilha até lhe doerem os braços da força que fazia.
Olhou uma última vez para aquele par desgraçado e foi-se embora. Voltou para a sede do concelho e entregou-se à Guarda.
Quando acabou de me contar isto as lágrimas enchiam-lhe os olhos e disse-me:
- Meu Alferes, o que mais me custa são as saudades que tenho do meu Pai. Mas não estou nada arrependido de ter feito aquilo que fiz. Se preciso fosse, voltava a fazer a mesma coisa!
Foi aí que eu percebi que ele tinha morto o pai e a noiva.


Os dois companheiros de conversa estavam estarrecidos.
- Raio de vida…

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Talvez Uivante


O vento sacode as árvores
As folhas farfalham
Como vestidos de tafetá,
Girando pelo salão

Um olhar que não decifro
Sacode meu coração
Como as folhas
Cantam antiga canção

Como chama a voz do vento?


(foto obtida no Google)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

siameses


A inveja é irmã do ciúme.

Ele, um cara baixo, tímido, lento nas decisões,

Que murmura suas queixas entre dentes.

Ela, uma moça alta, extrovertida, decidida,

Que apresenta suas queixas sem rodeios.

.

Se trocam de características as conseqüências são drásticas:

Tanto um pequeno ciúme ou uma ingênua inveja podem matar.

.

Caim matou Abel foi por inveja ou ciúme?


(edmar oliveira)

sábado, 16 de janeiro de 2010

A Inveja - epílogo


Chegou tarde ao escritório e, para sua surpresa, o irmão já estava por lá. Na hora do almoço, a secretária lhe comunica que o irmão lhe pedia uma conversa em particular. Pronto, a casa caiu de vez, pensou, Larissa não agüentou e já contou tudo pra ele. Crime e castigo. Foi até ao lavabo do escritório e se olhou no espelho novamente: uma cara de acabado, a pele amarfanhada, olheiras, barba mal feita. Preparou-se para uma cena terrível, uma ruptura comercial e familiar.
Martin irrompe na sua sala surpreendentemente feliz, falastrão como sempre e excepcionalmente afetivo; dá-lhe um abraço e um tapa nas costas.
― Vamos logo almoçar, se deixar você não sai mais daqui. Tenho um restaurante que você ainda não conhece pra te levar ― com o seu jeito espalhafatoso, Martin chegou causando rebuliço e recebendo cumprimentos pelo desempenho televisivo dos funcionários. Antes que Matias pudesse reagir, desligou o computador onde ele trabalhava.
Talvez tenha sido um filósofo romano o primeiro a perceber que cada dia é uma epopéia única, uma vida dentro da vida e, assim, todo tempo transcorrido entre duas auroras encerra a sua própria lição. Dentro daquelas vinte e quatro singularíssimas horas, Matias não imaginaria que toda a sua vida podia ser concentrada no intervalo de uma hora ― menos ainda que passaria o resto do seus dias pagando pelo que lhe estava pretes a ser revelado.
O restaurante era muito agradável, sentaram numa mesa que ficava no meio de um jardim arborizado, sob a sombra acolhedora de um oiti. Fazia um tempo excelente.
― Que cara é essa rapaz?, parece que você caiu na maior gandaia ontem... Cara, tô feliz como poucas vezes você me viu. Me sinto realizado, a noite de ontem foi perfeita ― pediu uma entrada e drinques sem reparar que o irmão mal tocava no que quer que fosse servido.
― Sim, você foi muito bem... ― Matias hesitava entrar em qualquer assunto, na verdade, daria tudo por uma desculpa razoável para sair dali correndo.
― É uma grande prova do nosso crescimento pessoal e profissional...
“... do seu sucesso, você quer dizer!”, Matias pensou.
― ... acho que nunca te confessei isso, eu sou um cara inseguro, sempre achei você uma ameaça....
“Como assim?, você sempre me humilhou, nunca reconheceu o meu valor ou ao menos percebeu a minha presença!”
― ... eu não podia te reconhecer, você sempre fez tudo melhor do que eu, eu só fazia barulho, quem fechava os negócios e fazia acontecer era você. Por isso eu tinha que ficar com o brilhareco, o fogo fátuo, tipo a espuma do champanhe...
“Eu,eu, eu... maninho, você é um viciado em você mesmo”.
― ... até no futebol, que todo mundo falava que eu jogava melhor do que você, mas quem foi lá e marcou o gol do campeonato foi você, lembra? Fiquei dividido... por um lado queria te abraçar, mas alguma coisa me segurava, mais uma vez você entrava na minha vida para tirar o meu brilho...
“Ele tá louco, não pode ser!”, nauseou, sentiu que o sangue lhe fugia do rosto, por sorte, o irmão não pescava nada da sua vertigem e continuava:
― Por trás da minha arrogância, estavam o medo e a insegurança. Até a Larissa achei que você ia me roubar, dá pra acreditar na minha estupidez?
Um maremoto revolvia o seu estômago, as mãos tremiam; daí em diante saiu do ar, foi como se não estivesse mais ali. A transformação estava completa, os dois irmãos haviam invertido seus papéis. E Matias não podia suportar seu novo lugar.
― ... mas hoje me sinto mais forte, e tenho que dar o braço a torcer: depois do pai e da mãe, você e a Larissa são as pessoas mais importantes para mim. Brodão, você é o cara!
Pálido como uma folha de sulfite, já não concatenava mais uma idéia com a outra, o restaurante ao ar livre o sufocava, as árvores o ameaçavam, os pássaros o acusavam e ele se sentia em queda livre. Uma descida infinita rumo ao saco sem fundo dos equívocos mortais.
Olha o abismo, diz o ditado, e o abismo te olha. Matias pulara para o palco, se atrevera além dos bastidores e das coxias, penetrando nos camarins da vida do irmão; tinha realizado um antigo desejo e se descobriu, tarde demais, perdido num labirinto de espelhos. O mundo que se abria depois da sua vingança particular era cruel e atormentado; a Nêmesis, tão longamente acalentada em sonhos, voltava-se contra ele mesmo.
A pá de cal, terrível, veio em seguida:
― A Larissa e eu decidimos finalmente parar o anticoncepcional e agora o herdeiro vai vir a qualquer momento, tenho certeza. Ainda este ano você vai ser tio, meu irmão! ― A amnésia alcoólica cedeu um clarão de perigosa lucidez na mente de Matias, ele e a cunhada tinham trepado várias vezes naquela noite, e ele só levara uma única camisinha!
“Taquiospariu, fiz uma cagada monumental!”, pensou desarvorado.
Agora compreendia a raiz da sua obsessão: sua vida tinha sido corroída por uma grande mentira, seu mundo afetivo era um deserto porque se tornara um ressentido; o que a vida lhe tinha posto no caminho fora carcomido pela competição insensata alimentada em relação ao primogênito. Num relance, Matias percebeu o porquê de não conseguir amar, se casar, ou até mesmo ter alguém para partilhar a intimidade: toda a sua vida, sua forma de estar e de ser no mundo era contra; tinha vivido noutra dimensão, uma realidade paralela ao amor.
Naquele mesmo ano Larissa e Martin tiveram sua única filha, Lídia, que a mãe dele não teve dúvida em afirmar a semelhança com Matias já na maternidade. Martin nunca pôde compreender a frieza posterior da esposa, fato parcamente compensado pela proximidade que o irmão mantinha agora. Larissa nunca mais conseguiu esquecer aquela noite, assim como nunca mais se livrou de um cheiro indefinível, um odor que não pertencia a Martin ou a Matias, o cheiro de um outro homem.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

conversa de café - 1 (final)



Saí para fumar um cigarro.
Lá estavam os dois marmanjos a comentar os últimos desenvolvimentos da notícia do dia naquela aldeia onde quase nada acontecia.
-… pois, tás a ver? O homem era lá capaz dessas coisas que estavas a dizer!
- hmmm… para mim ele anda mas é a mandar-se à sobrinha desta!
Ora vê lá se faz sentido ir daqui até não sei onde para acompanhar o raio da velha?
Nã… aqui há marosca… a ver se não tenho razão…
Eles são todos iguais. Então não te lembras do antigo…
Nisto o Padre João sai do café e provoca uma pausa na arenga.
- Oh… Pedro, então andas com obras na casa?
- Pois é, senhor Padre. A ver se arranjo o telhado antes que o mau tempo venha.
Mas, hoje o pessoal não veio que tinham que acabar um trabalhito pró Aniceto… senão não estava aqui no café a flautear a polaina.
É que se não se andar em cima deles, não fazem nada… uns mandriões!
- Ah.. é? Pois ainda agora quando vinha pra baixo lá vi entrar o Jaquim… Até o ouvi chamar pela tua mulher!
A cara do Pedro era um tratado para quem soubesse ler fisionomias. Ciumento como era não conseguiu disfarçar.
- Bom… deixa-me lá ir senão ainda chego tarde prá missa! Deus vos guarde!
Ao virar-se o padre João deu-me uma piscadela de olho e, apesar de não ter a certeza, quase jurava ter-lhe visto um sorriso matreiro.

A Inveja - parte III


Matias enxergou ali a sua chance de ouro: devolver anos e anos de desfeitas e injúrias agüentadas em silêncio e resignação, sempre em nome de um ideal maior de família, de objetivos empresariais. Essa harmonia forçada era o que os pais esperavam que houvesse entre irmãos-sócios; no entanto, ele sabia que a felicidade tão evidente no casamento dos pais passava longe daquele lar de revista em que o irmão tinha encarcerado Larissa. Acreditava mesmo que a estava libertando. Nem lhe passava pela cabeça que, no dia seguinte, aquela situação seria como uma bomba cheia de pregos a se cravar em todos à sua volta.
― Vou abaixar um pouco a luz ― sua mão procurou pela parede o dimmer, descendo alguns graus de obscuridade.
O primeiro beijo foi na sala de estar decorada com imensos óleos sobre tela e gravuras, que pareciam rodopiar em torno deles como se estivessem num salão de baile e as pinturas fossem os outros casais. A partir daí, Matias ficou frenético, arrancou a dentadas o vestido de organza, beijou-a, enlaçou com a mão esquerda os cabelos para lhe descobrir o belo pescoço, que lambeu com avidez enquanto a arrastava para o quarto, do qual conhecia perfeitamente o caminho.
A agressividade tanto tempo represada fluía livremente transformada em volúpia sexual, uma vida inteira de anulação e humilhações perante o irmão estava sendo resgatada por uma noitada de depravação com sabor de vitória. Possuir Larissa era resgatar o brinquedo tomado pelo rival, servia de redenção para tantos anos de raiva fria e engolida a seco. Não é todo dia que se pode vingar as derrotas imaginárias.
Matias descontou tudo na forma de loucuras de cama a que se entregou com a sofreguidão dos marinheiros; já não se importava com nada, que dia ia ser amanhã, o que ia acontecer ou deixar de acontecer ― agora ele corria para o abraço que nunca teve do irmão que, assim, por procuração, iria pagar por todas as humilhações e rebaixamentos que teve de suportar calado. Já que haveria uma catarse, que fosse na forma de uma inesquecível noite de sexo selvagem.
― Ai, manera nas mordidas, você vai me deixar toda marcada...
― A idéia é essa... humm, relaxa, ele nem repara mesmo...
Acreditava na lei da ação e reação. Cada uma das pendengas antigas voltavam-lhe à memória, cada ocasião em que a mãe o tinha freado dizendo: “paciência, filho, você sabe como é o gênio do Tinho...”, cada uma das vezes em que teve de se encolher para o bem do irmão, ou melhor, do Empório Lícia; tudo isso cobrou seu preço. E a conta veio alta.
Chegou a assustá-la com a veemência do seu desejo. Larissa fantasiava uma transa carinhosa e doce, tal como Matias lhe parecia ser; imaginava um passeio no mar no dorso de um golfinho, não esperava um tigre dando o bote, um cínico que até uma camisinha sacou da carteira na hora H. Just in the case, disse, anda sempre comigo. Sei.
O tapão que ele lhe estalou na bunda fez com que as mordidas parecessem de verdade; uma ficha começou a lhe cair naquele instante: ela desconhecia por completo o homem com quem estava na cama ― um cara infinitamente mais interessante, e perigoso, do que supunha. Mal podia acreditar que era a voz do irmão bom moço do marido lhe sussurrando na maior cara de pau:
― Fala, sua vadia, fala pra mim que ele não te come que nem eu... ― Matias utilizava todas as cartas que tinha na manga, tudo que aprendera com as profissionais, fazia questão de qualidade total no atendimento a clientes ultravipes.
― Pra quê falar nele, é só por isso que você me quer?
― Sabe o que é? Gosto do cheiro de outro homem numa mulher, é como um tempero a mais, sacou? ― ele arrancava rapidamente as máscaras da decência social, era vertiginoso.
― Você é um pervertido, é o que você é... ― agarrou-o e rolaram enroscados no futton macio ao longo da cama king size.
A noite foi longa em diversões loucas, mas não tanto que ele se permitisse dormir lá. Foi despertado violentamente de madrugada por um pesadelo que felizmente esqueceu rápido; a festa tinha acabado, as roupas jogadas pelo chão eram suas e o quarto onde se encontrava também era o seu. Lembrou que tinha saído sem acordar a satisfeita, belíssima, mulher do irmão, que dormia com um sorriso nos lábios. Uma enxaqueca, anunciando a inevitável ressaca moral que se avizinhava, se tornou insuportavelmente consciente quando ele se viu no reflexo do espelho do banheiro pela manhã. Sabia o que o esperava: uma semana de dor contínua, remédios fortes e uma piora da gastrite em conseqüência deles como saldo final da crise.
Por pouco ela não tinha acertado na mosca ao chamá-lo de pervertido. Mas não era a mesma coisa, pelo menos não exatamente a mesma coisa; o que parecia perversão era na verdade uma religião privada, uma seita de uma pessoa só. Matias tinha criado para si um emaranhado de crenças que explicavam em detalhe seus horríveis sofrimentos e incrível azar. Embora sua vida pessoal e empresarial descrevesse uma sólida curva ascendente, ainda que fosse um chef pâtissier respeitadíssimo, até pelos professores do prestigioso Cordon Bleu onde se formara, ele se obstinava na crença de que era um tremendo azarado. Se estivesse certo a respeito de si próprio, ele seria um paradoxo: um loser de sucesso.
Cada acontecimento, pequeno ou grande, positivo ou negativo, só fazia confirmar sua vocação de sofredor. Achava que só com ele aconteciam coisas ruins, ou que, para ele, a cota de eventos desagradáveis era maior e, mesmo quando algo de bom acontecia, era apenas para tornar a inevitável futura queda mais alta e dolorida. “Tudo te será dado, tudo te será tirado; trabalha e confia”, gostava de repetir nos treinamentos dos funcionários do Empório. Funcionava como uma espécie de versão peculiar da doutrina da raça superior ― com o detalhe masoquista de que ele não fazia parte do povo eleito ―, Matias punha fé na milenar divisão da raça humana entre os escolhidos, para os quais a vida sempre anda sobre trilhos, e os outros, aqueles para quem tudo sempre dá errado.
Desde cedo, encasquetou que os pais tinham escolhido o irmão como filho querido; mais tarde, teve certeza de que não era ele o sucessor que eles queriam na padaria. Um dia, ele tinha acabado de completar quatorze anos de idade, o pai o colocou pela primeira vez para tomar conta do caixa; mas não quis ver nada de bom nisso, antes uma forma de livrar o irmão da parte chata do ofício.
― Quando a cigana leu a minha mão, não disse que EU era o cara; por isso, só confio em disciplina e organização ― outra das suas frases feitas, que podiam ser entendidas de muitas maneiras diferentes, sem que fosse possível atinar com o real significado e alcance.
Às vezes, durante os apertos financeiros e dívidas bancárias na fase de expansão dos negócios, ouviram-no lamentar fatos minúsculos e secundários como se fossem o sinal de um agouro irreversível, mas ninguém compreendia esses rompantes. O que nem ele próprio conseguia entender era uma mania que passou a chamar de perda de realidade: a impressão de que era um autômato, de que não estava vivo de verdade. Era uma sensação bizarra: pensava, ou acreditava pensar, que estava perdendo a certeza de viver dentro de uma existência real, nítida; sentia constantemente um cansaço, uma displicência mesclada com fatalismo que o impediam de avaliar sua verdadeira posição no mundo.

sou avulsa mas tô na moda



lições da antimateria: vamos acabar com a psiquiatria e a antipsiquiatria com uma grande liberação de energia. O barulho do bigbum ainda está por aí, no mundo, dentro de nós o silêncio de antes
a melhor maneira de manter o segredo é escrever poesia
lição pascaliana da roleta universal: se deuses existem e obedeci seus mandamentos tudo bem: fui boazinha
Se não ek-sistir então estou em falta, mas se estou em falta desejo e se desejo: estou viva!
A.rte A.vulsa

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

conversa de café - 1

Saí do carro, carreguei no botãozinho para trancar as portas, olhei para os outros carros estacionados junto ao passeio e atravessei a estrada.
Logo que entrei no café senti o calor do fogão. Tirei o casaco e pedi um café curto. Peguei no jornal que me deixavam ali todos os dias e sentei-me numa das mesas, de frente para o ecrã gigante.
- Obrigado.
Abri o pacote de açúcar e comecei a ver as notícias.
(… o mesmo de sempre! Isto está uma m….!)
De repente, começo a dar atenção a uma conversa.
- … partiu o carro todo!
- Não me digas! Mas como é que foi?
- Acho que o Padreco disse que deve ter adormecido…
- Pois… tá-se mesmo a ver… às tantas da noite deu-lhe o sono.
- Falta é saber de onde vinha àquela hora.
- Se calhar foi rezar alguma Avé-Maria…
- Dizem pra aí que ele gosta muito de ir para certas bandas… lá prós lados dos galegos!
- Tás a brincar? E ele é lá disso?
- Eu cá nunca o vi… mas eu também não sou homem de ir gastar o meu dinheirinho com aquelas brasileiras.
- Mas, afinal, ele vinha de onde?
- Dizem… dizem que vinha da Espanha… tás a ver? Cansado… não é? Dizem que as brasileiras são fogo… E vai daí… espetou-se! Agora só faltava que ele nos viesse pedir que o povo ajudasse a pagar o arranjo do carro!
Levanto os olhos do jornal e quando vou olhar para aquele par de línguas afiadas, quem vejo a dirigir-se para a porta do café? Nem mais…
- Boa tarde!
- Boa tarde, senhor Padre! Então, como é que aconteceu aquela desgraça?
- Foi só chapa… graças a Deus!
- Oh senhor Padre… já não tem idade para essas coisas! Andar a conduzir às tantas da noite? Depois … acontecem estas desgraças.
- Pois é… Mas que é que se há-de fazer? Seja feita a vontade de Deus!
- Se precisar de alguma coisinha, já sabe… à sua disposição!
- Fico muito agradecido pela vossa preocupação.
Virando-se para a dona da casa que, entretanto, saíra da cozinha:
- Dona Felisberta, será que me podia fazer um favor? Telefonava à sua sobrinha a dizer que hoje não posso lá ir? Os da oficina não me arranjam um carro…
- Como é que está a minha irmã?
- Malzinho… esta noite estive lá até às tantas… Uma santa! É uma santa! Rezámos não sei quantos terços porque ela só me dizia: Oh senhor Padre… faça-me o favor de rezarmos juntos até eu me finar… Mas depois lá se ficou a dormir…
Quando dei por isso, já a porta do café se fechava sobre os dois malandrecos…

domingo, 10 de janeiro de 2010

A Inveja - parte II


― Carolina Herrera ― Matias roubava na cara dura, o irmão tinha lhe pedido para comprar o perfume preferido dela no dia dos namorados que ele, para não perder o costume, havia esquecido. Uma estranha metamorfose estava em curso, já não seria tão fácil, daquele momento em diante, distinguir um irmão do outro, tal a semelhança de modos e maneiras de agir.
― ... linha musk! É incrível, mas como...? ― estava encantada, Matias era retraído, discreto e, mais que tudo, ele a escutava com uma atenção beirando o fervor. Com ele não tinha a impressão de falar para alguém que estava pensando em outra coisa, como acontecia com tanta freqüência conversando com o marido.
Martin fazia o seu número habitual na TV: falava das “suas” realizações e planos de futuro, da “sua” história incrível ― de como “ele” transformara uma padoca da Vila Guilherme numa rede de panificadoras de luxo. Os dois se entreolhavam atônitos, cada vez mais cúmplices na indignação, sem acreditar no que viam e ouviam. Sem dar por ela, ambos chegavam a um acordo sem palavras e se aproximaram mais meia polegada no sofá, a esta altura grande demais para tamanha empatia e intimidade de propósitos. Mas o pior estava por vir.
― E agora, a minha contribuição gastronômica mais importante, o carro-chefe do Empório: os bolinhos de bacalhau Lícia! ― Martin serviu os famosos bolinhos para uma roda de convidados que babavam ao vivo e a cores.
― Minha contribuição? Como assim... “minha”?! ― Matias zanzava furioso pela sala, puxou o celular e tentou diversas vezes falar com a casa dos pais em Bragança, mas ninguém atendia. A cunhada tentava acalmá-lo.
― Sossega Matias, sua mãe não está vendo o programa... falei com ela hoje e ela me disse que não ia poder ver ao vivo. O programa passa muito tarde e parece que o seu pai dá muito trabalho durante a noite, por isso ela deita mais cedo ― Larissa sabia bem o que o deixava tão nervoso, maquiar a história da empresa até vai, mas roubar a autoria da receita da própria mãe era simplesmente o fim da picada!
A padaria Lícia tinha sido a obra da vida inteira do casal Pereira Santos; graças ao bolinho de bacalhau da mãe, tinham conquistado uma clientela fiel e estabelecido o ponto ao longo de décadas de honestidade e trabalho duro. Quando os herdeiros tomaram a administração e expandiram a marca, o crescimento deveu-se em boa parte à credibilidade que os pais haviam conquistado para o negócio familiar. Na ocasião, foi uma iniciativa de Matias contratar Larissa para criar o logotipo da rede de padarias. Que a extroversão galanteadora de Martin tivesse arrebatado a arquiteta e os holofotes do sucesso era só um capítulo na rivalidade surda e unilateral que Matias alimentava.
― Parece que essa é a história da minha vida, ele sempre chega antes e fica com tudo: a atenção dos pais, o sucesso nos esportes e até mesmo... ― interrompeu-se com medo do que quase saiu da sua boca. Resolveu que já tinha tomado muito desse maldito uísque de milho.
― Imagina Matias, vocês têm só onze meses de diferença de idade, um nada, são sócios numa empresa de sucesso, teus funcionários te admiram pra caramba... que mais você poderia querer? ― falou e já se arrependeu na mesma hora, compreendendo que tinha também bebido pra lá da conta e que devia tirar a mão dos cabelos do irmão, e sócio, do seu marido. Neste momento tocou o telefone.
― Oi amor... sim, vimos... é, seu irmão tá aqui comigo... claro que a gente gravou, você esteve ótimo na entrevista... ah, jura?, tá bom, certo... um beeeijo, se cuida, tá? ― pousou o aparelho, escolheu um CD e ligou o som. O telefonema fez um iô-iô dentro dela, primeiro alegrou-a por ouvir a voz de Martin, depois jogou-a na vala comum de tantas outras noites: “sinto muito, querida, vou chegar mais tarde hoje; não me espere para jantar”.
― Essa eu também posso adivinhar: meu irmão ligou dizendo que vai dar uma esticadinha com o diretor do programa ou o pessoal da produção e vai demorar, acertei? ― não obteve resposta, Larissa apenas ficou ali, de pé, com os olhos semicerrados ― Espera, que música é essa que tá tocando?
― Você gosta? É uma das minhas favoritas... chama-se “The Man I Love”. Fala de alguém que espera um amor e acredita que ele, ou ela, vai chegar, mas é tão triste... Não consigo explicar porque essa melodia me emociona tanto ― redemoinhava nela um turbilhão de sentimentos desencontrados: a frustração da relação com Martin, a felicidade inebriante de encontrar um substituto que era a versão melhorada dele, a descoberta de uma solidão que podia compartilhar... A banda dos corações solitários tocava agora a música de Ira e George Gershwin na voz de veludo de Mabel Mercer.
Matias só via diante dos seus olhos aquele vestido azul, que lhe trazia de volta uma cena antiga da sua adolescência; o mesmo arrepio na pele, a mesma sensação de peso no estômago: estava completamente emocionado. Era azul a cor a camisa do time de várzea em que ele e o irmão jogaram, o Sport Clube Vila Teodoro. Ele era apenas o esforçado reserva do lateral direito, e o irmão, o craque do time, o camisa nove ― goleador e ídolo do bairro, para variar. Só que o futebol tem dessas coisas, no dia da final chega o titular da camisa dois completamente encachaçado, tropicando nas próprias pernas. Não teve jeito, Matias, o eterno perna-de-pau, vai para o jogo defender a ala direita do glorioso Vila Teodoro.
O jogo é duro, cheio de faltas e brigas, numa delas o irmão é expulso. Calamidade total. A partida acabando, o artilheiro toma cartão vermelho e o São Miguel F.C. cresce no jogo. Quarenta e três minutos do segundo tempo. Bola na ponta, Matias recebe e olha para a grande área: um bololô de gente, seja o que Deus quiser, ele fecha os olhos e chuta a bola para o meio da confusão. Em pleno ar, a bola pega um efeito e vai para dentro do gol. O goleiro percebe a mudança de rota e tenta agarrá-la, mas cai com bola e tudo dentro do gol. Apito final. Comemoração, abraços, todo o time e mais os reservas correm para cima dele, o Vila Teodoro é campeão! Todos o abraçam, menos o irmão ― falta grandeza ao craque nessa hora, que ainda lhe joga na cara: gol espírita, foi cruzar na área e acertou o gol sem querer...
― Vamos dançar... me abraça, vai... ― Larissa já estava sem os sapatos e ele fez o mesmo, enquanto a música se insinuava entre eles ternamente, com um abraço macio e amigo.
Talvez seja impreciso dizer que ela se deixou levar, já Matias simplesmente não mediu as conseqüências, como aqueles personagens de desenho animado que ultrapassam correndo a borda do abismo, bastaria ter olhado para baixo e ele teria caído ― em si. Há esse momento imperceptível em que o sujeito tira os pés do chão e, no entanto, continua aparentemente levando a sua vidinha normal: vai ao supermercado, paga apólices do seguro, participa de reuniões de condomínio, etc., mas está viajandão na maionese, flutuando a poucos milímetros do chão real das coisas. O curioso é que ele pensou nisso enquanto tirava os sapatos para dançar, lembrou de um documentário que tinha visto sobre os monges levitadores do Tibet. Ao contrário do que ele imaginava, eles não saíam voando pelos ares: os bonzos em transe contrariavam a lei da gravidade, mas só deixavam o solo por alguns poucos centímetros. É o que basta.
Larissa tinha lá os seus motivos; não sofria do mal que corroia as entranhas do cunhado, mas sofria de solidão e atravessava uma crise tremenda no casamento. Descobrira recentemente que o marido, em risco de se tornar ex, mantinha um relacionamento pra lá de tórrido com a sua, esta sim ex, melhor amiga. Tudo conspirou para que as suas defesas estivessem anormalmente baixas para resistir à investida do cunhado. E naquela noite ela encontrou um homem disposto a avançar um passo à beira do abismo.

A Inveja - parte I


Às dez e vinte certinhas tocou a campainha da casa do irmão. Não havia novidade nisso, morava no outro bloco do mesmo condomínio no Tatuapé. Mudaram para lá quase na mesma época, eram vizinhos de janela, a diferença é que Matias NÃO morava numa belíssima cobertura com face sul.
Matias e Martin, a dupla dinâmica, os irmãos Ma-Ma, o casal MM ― vários apelidos tinham recebido durante a vida assim, em conjunto, e Matias sempre teve a impressão de que apenas servia de “escada” para o irmão mais velho. Era como se ele fosse o Luciano e o irmão, Zezé de Camargo; ele, o Robin, enquanto o irmão, Batman. Mas aquela noite mudaria tudo isso para sempre.
Larissa abriu-lhe a porta sorrindo tímida e pedindo para não reparar a bagunça. Não tinha como não reparar, era um mistério indecifrável: como é que podia reinar tamanha balbúrdia numa casa sem crianças ou cachorros e com três empregadas? Tá certo que o apartamento era grande, mas ainda assim parecia esquisito. Parecia-lhe inadmissível, por exemplo, que a louça e os talheres do jantar (podiam ser até do almoço) ainda se encontrassem sobre a mesa de jantar; não conseguiu reprimir o pensamento de que o impecável aprumo visual que Martin ostentava era apenas para uso externo.
― Você chegou bem na hora, senta por favor... preparo uma bebidinha pra nós? ― ela estava resplandecente num vestidinho de organza, bem típico dela, que não precisava de muito para realçar o charme natural. Bem, na verdade, não precisava mesmo realçar nada aos olhos dele, que trazia enrustido um caminhão de sentimentos desde que a conhecera.
― S-sim, boa idéia ― Matias não era de beber, mas não recusou o Jack Daniels que Larissa lhe serviu com uma solitária pedra de gelo. O drinque preferido do irmão.
Correu os olhos pela casa, foi até à varanda; aquele era um apartamento de revista de decoração, aliás, volta e meia saíam ensaios fotográficos do elegante conjugado sala-e-cozinha assinado por um desses designers cinco estrelas. A sua casa não tinha nada desses emperequetamentos, mas vivia limpa e arrumada. Pegou uma revista da mesinha e largou-se no sofá de couro macio que soltava um suspiro antes de afundar. Ela trouxe as bebidas e sentou junto dele, que já acusava um princípio de embriaguez com o perfume doce... da mulher do seu irmão!
― Já passou uma chamada do programa e ele apareceu... tá muito boa a camisa que você emprestou pra ele usar hoje, obrigado ― os longos cílios dela levantavam e abaixavam delicadamente, parecendo sublinhar cada palavra que ela pronunciava com um acréscimo de gratidão e gentileza. Larissa tinha posto um ponto final a uma longa fila de relacionamentos confusos com mulheres idem que povoaram a vida amorosa do irmão. Matias lhe era grato por isso, mas nenhum bom sentimento aliviou a facada que sentiu no peito quando o irmão lhe anunciou o casório-relâmpago.
― É agora, já passaram os comerciais dos patrocinadores... ― Matias aparentava constrangimento por ficar a sós com a cunhada, apesar de toda a hospitalidade e dos esforços dela para que se sentisse em casa. ― Ainda bem que você lembra de agradecer pequenas atenções como a camisa, se for esperar meu irmão lembrar disso...
Como em tantas outras coisas, sentiu-se prejudicado no casamento do irmão; como regra, Matias sempre ficava com o gosto amargo da derrota na maioria das situações que diziam respeito à relação entre eles. Sem que ninguém desconfiasse, nem ela mesma, Larissa era um dos pomos dessa secreta discórdia. Talvez as coisas tivessem se passado de outra forma se Matias não houvesse escondido tão bem o que se passava dentro dele. Evidentemente, não há justiça no mundo dos sentimentos, eles apenas são e ponto; pode-se dar este ou aquele rótulo depois que acontecem, mas não há mandar neles ou domá-los como se fossem tigres de circo mambembe. Ninguém põe ordem na casa da mãe Joana que é o coração.
― Ah, nisso você tem razão... Martin nunca lembra desses “detalhes” ― era uma bela morena de traços finos e tinha berço, uma nota afinada na vida do empresário da panificação que naquele momento participava de um talk show na televisão. Larissa já tinha se feito a pergunta fatídica: teria escolhido o irmão certo? O marido tinha sido mais direto e atirado, foi claro nas intenções e desabrido nas palavras, direto ao ponto como as mulheres gostam. Suportava mal as ambigüidades e joguinhos de sedução que fazem parte indissociável dos relacionamentos. Ultimamente, após quatro anos e meio de casamento, começava a se perguntar se não tinha se deixado levar por uma espécie de propaganda enganosa.
― Você não acha que vivemos um momento incrível na gastronomia nacional? ― a entrevista transcorria segundo o roteiro ameno dos programas de variedades.
Era uma daquelas entrevistas em que o convidado cozinha, conta a história da sua empresa, dá opiniões vagas sobre a conjuntura mundial, os desabrigados em Bangladesh e acaba contando uma anedota pitoresca e/ou picante envolvendo a sua vida privada. Martin usava um avental em que se destacava o nome da empresa: Empório Lícia. O Empório Lícia tinha se tornado um império, uma rede de padarias que invadira os recantos chiques da cidade levando confeitos de qualidade média pra boa a preços semi-extorsivos.
O talento administrativo de Matias tinha sido decisivo na fase de crescimento acelerado da empresa: negociara aluguéis e luvas dos pontos comerciais, fechara os contratos com os fornecedores maiores, contratara os novos gerentes das filiais, treinara os novos funcionários e, recentemente, tinha desencadeado o processo de transformação da rede de panificação numa franquia nacional. Martin cuidava da parte externa, era bom de conversa, cheio de contatos e figurinha carimbada em festas e bocas-livres; acumulava as diretorias de marketing e comercial. Desenvolver uma identidade visual para a empresa, bolar a estratégia de divulgação e as ações de mídia, tudo isso eram atribuições que desincumbia admiravelmente, ainda que deixasse a impressão de participar menos do dia a dia da firma.
― Ai, que esquecida que eu sou, você já jantou? Nem te ofereci nada... ― o intervalo comercial e o silêncio do cunhado acabaram por embaraçar a Larissa que, sem se dar conta das implicações, advertiu-o de que tinha dado folga para as domésticas e que não esperasse nada mais que um requentado de microondas. Percebia com clareza crescente que também ela se contaminara pela ausência e descuido das funções cotidianas que eram a marca registrada do marido. Exatamente o contrário do que Matias lhe passava com a sua onipresença, suas constantes atenções; era o tipo de pessoa que passava para os outros a sensação de confiança e disponibilidade por meio de pequenos gestos.
― Humm, deixa pra lá... tomei uma sopa antes de vir. Da hora a sua idéia de aumentar o logo do avental ― a mão dele acariciava distraidamente uma aba do vestido azul, o que a obrigou a se levantar para não encompridar o mal estar. Serviu-se de outra generosa dose de Bourbon enquanto ela buscava às pressas uns salgadinhos. Algo lhe dizia que estava funcionando, e muito, o seu estilo minucioso; já que o seu forte não era o arrojo, sabia que Deus morava nos detalhes. Ou o Diabo. ― Escuta, o que eu ganho se descobrir qual é o perfume que você está usando?
― Bem, amendoim japonês talvez não seja lá muito tentador para um empresário do ramo de alimentos... ― Larissa deixou o amendoim e a castanha de caju na mesa de rádica ― Vamos ver: uma resposta dessas vale... quer dizer, ah sei lá! Diz aí, vai, quero ver se você é bom mesmo!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

PERDIDA NO ESPAÇO



Estou sem eira nem beira


Não tenho margem pra me encostar

Nem leito pra descansar

Sou vento
Sou fluido

Sou papel sem margem
que contenha a palavra.

Desvarios
Devaneios
Delírios

Pensamentos loucos

Irreais

Só desejo e medo
nada mais...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

DIGO NÃO














Já eu me dano:
eu digo não ao medo
(eu ergo o dedo)
à sanha do gambé

Um não à plasta amorfa,
à folha amarfanhada,
à grana do cartel,
à grana do bordel

Não,
não à morte matada
(o cento e vinte e um)
ao roubo,
o estelionato,
e às manhas do pedófilo

à miséria,
(a fome)
essa uma, a messalina,
que nos pariu a todos, ao soldado e a mim.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

FRATERNÁLIA


eu ?

eu não quero ser subjeito

não tem jeito

no avesso

ou no direito

não me sujeito

sou massa

sem fôrma

mar talvez rio

sem leito

não consigo ser branco

mongolóide, australiano

preto

ser macaco-humano

procarionte não

aceito

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

olhar sorrindo



Sorriso lindo
Sorriso limpo
Sorriso

Olhar limpo
Olhar lindo
Olhar













E nós??
Consciência limpa?


Menina afgã
em oficina de próteses
(imagem sacada da BBC)

AGUAS


Procura-se agua nos mundos

Com a agua existe vida

Dizem...

As vezes perdemos o norte

As vezes é morte


Aguas de nosso corpo

Sempre tão salgadas

Imprevisiveis como o mar

Aguas que correm o rosto

Aguas que molham a pele

Umidecem o sentimento

Aguas da alma

Aguas criadeiras...

A vida sabe a sal

sábado, 2 de janeiro de 2010

o que da ausência você vai contar a si?



não tenho apelido para você

só porque um dia me vi

a teus pés

e a mim quis ver

como me vias

nos entressonhos

das potenciais possibilidades

de real realeza



algumas coisas

geralmente as melhores

devem ser mastigadas muito lentamente

para ser devidamente

apreciadas

porque sem a eternidade

que em nós

cria eus

nem o desespero poderia

desesperar



girassol

flor

de flores