DOUTOR JORDÃO & METALEIRO
21:46
Kelson
gosta muito de contar a seguinte história.
Ele jogava no
clube Pequeninos do Jockey, tinha nove anos de idade e era o craque do time que
disputaria a final da categoria petizes. Sozinho no banheiro, descobriu que a
porta estava emperrada. Gritou, pediu socorro. Nada.
Qualquer outro
garoto iria se sentar e, mais que provavelmente, chorar. Mas não o Kelson, ele
queria ganhar o prêmio reservado ao artilheiro do campeonato: uma bicicleta
BMX. Subiu na privada, arrebentou os vidros da janelinha com a sola da chuteira
e saiu por ali, arranhando-se nos cacos do vitrô. Jogou a final com as feridas ainda
semi-abertas, marcou três gols e ganhou o tão sonhado troféu.
Kelson gosta
menos desta outra história, mas sempre a menciona quando fala da sua conversão
religiosa.
Ele sofreu um
acidente grave aos dezessete anos com a sua bike de manobras radicais e ficou
seis meses internado. Fraturou cinco costelas, a mandíbula, duas vértebras e o
fêmur esquerdo; segundo os prognósticos dos médicos eram grandes as chances de
não voltar a andar (setenta por cento). Voltar a jogar futebol, nem se
cogitava.
O resto é
história: ele se recuperou de forma surpreendente, foi para as categorias de
base do São Paulo Futebol Clube, e tornou-se o principal jogador da equipe principal
antes de atingir a maioridade. Uma jóia rara. Não um diamante bruto a ser
lapidado, mas, como acontece aos grandes gênios da bola, apareceu para o
público já pronto para carregar seu clube nas costas e envergar a camisa da
seleção nacional. Aos dezenove anos, Kelson não era mais uma promessa, mas
realidade.
Tudo na vida
do jovem craque parecia seguir o habitual roteiro da jornada do herói: o menino
pobre, vindo do nada, portador de um dom divino de tão excepcional, que
encontra no seu caminho uma terrível tribulação a qual põe sua vida em risco; a
partir daí, ele sofre uma transformação decisiva e retorna para levar sua
missão a cabo. Porém, em se tratando do futebol quatro vezes campeão do mundo,
as coisas nunca podem seguir cartilhas simples e consagradas ― há um entranhado
(pré) conceito de que devemos dificultar ao máximo para os artistas da bola, de
modo que, sobreviver, por si só, já será marca de excepcionalidade.
O doutor
Jordão considerava o assunto sob o prisma dos interesses do seu amado tricolor
paulista; nesta visada, o problema todo residia na chamada Lei Pelé. Ministro
do Esporte no governo de Fernando Henrique Cardoso, Pelé conseguira aprovar no
Congresso Nacional uma lei que adequava o Brasil ao fim da instituição do
“passe” no resto do mundo. Na prática, significava o fim da escravidão no
futebol: depois da jurisprudência internacional estabelecida no caso Bosman, cada
jogador ficava livre para trabalhar no clube que escolhesse ― como qualquer
outro trabalhador em um país livre.
Melhor jogador do mundo, mas um belo de um
ingrato, esse crioulo! Onde já se viu, deixar o clube formador sem uma
percentagem na negociação desses garotos? A gente gasta uma gaita durante anos
nessa molecada piolhenta... e pra quê? Vem um sanguessuga de um empresário,
enche a cabeça do garoto e da família, e tchau pro clube que o alimentou,
alojou, pagou médico, nutricionista, fisioterapeuta, tudo... Lei Pelé, pois
sim, eu é que não vou deixá-lo sair assim, de graça!
Aí residia o
impasse: em breve, Kelson completaria vinte anos, pela nova lei, estaria então
apto a assinar contrato com a agremiação esportiva que bem entendesse ― detalhe:
sem que este clube precisasse pagar um centavo ao São Paulo. Manchester United
e Real Madrid mandavam emissários para assistir aos jogos do garoto no Morumbi;
em campo, o menino-prodígio desmontava as defesas adversárias com suas
irresistíveis arrancadas rumo ao gol. Tinha de agir com rapidez e precisão para
salvaguardar o patrimônio do soberano Tricolor.
Um incidente
estúpido abriu-lhe a janela de oportunidade de que necessitava: em jogo valendo
classificação para a Taça Libertadores da América, obsessão sampaulina, a
equipe havia sido desclassificada perdendo fora de casa para uma equipe
paranaense. Com o beneplácito do apitador, a partida tinha sido uma verdadeira
carnificina; um volante-brucutu encarregou-se de quebrar o craque do São Paulo,
tirando-o do jogo com uma entrada criminosa. O garoto saiu de campo aos
prantos, imagem que a televisão captou em close. Foi a senha para as cornetas da imprensa
amiga do doutor Jordão soarem impiedosas: pipoqueiro.
No jargão do
futebol brazuca, com seu peculiar ethos
do tempo das cavernas, este é o pior xingamento: ‘pipoca’ é o jogador que salta
fugindo da pancada, evitando a bola dividida com o zagueiro-açougueiro. Um
crime de lesa-pátria. A reapresentação dos jogadores se daria logo após as
festas de fim de ano numa cidade do interior, de modo a evitar os protestos da
torcida, furiosa com a desclassificação. Aqui, os interesses do dirigente e do
líder de facção confluíam: o plano era levar meia dúzia de arruaceiros para receber
os atletas com protestos, de preferência, atirando pipocas na cara do pobre
Kelson.
O crime
perfeito: a imprensa daria ampla repercussão, o rótulo de ‘amarelão’ grudaria
no rapaz, e então, fazia-se a venda às pressas para um clube que o compraria
com deságio ― e todos levariam o seu por fora, claro. Na ponta européia
encontrava-se o Milan, presidido pelo empresário e político Silvio Berlusconi,
que arremataria a jóia por, declarados, oito milhões de dólares. Amigo do cavaliere, o doutor Jordão engordaria o
colchão da sua já confortável velhice, enquanto Metaleiro ganharia o
financiamento necessário para dar o start na sua própria organizada,
livrando-se da dependência dos outros líderes de torcida.
Por isso é que
Metaleiro se desesperava, ali, sentado naquele posto de gasolina de playbas à
espera dos companheiros que tinham ido na captura de uma porra de um borracheiro.
Não podia vacilar. Tinha porque tinha de chegar na casa do doutor Jordão e
pegar as passagens mais a grana do alojamento. Senão, como é que iam tocaiar a
delegação quando chegasse na cidadezinha onde o tricolaço ia fazer a
pré-temporada? Um atraso de horas, e a hora do réveillon chegando.
Que merda, onde que tão esse Velho e o
Birinja que não chegam? É o cu da cobra, daqui a pouco esses mané vão inventar
de encher a lata... hmm, tá chegando meia noite, daí fodeu a biela, ninguém
mais vai prestar pra nada. Ah, mas não tem erro não, seja a hora que for, vou
colar lá na casa do cartolão e catar minhas paradas! Desculpa aí Kelson, nada
contra você irmãozinho, mas se eu não adiantar meu lado, quem é que vai?