quinta-feira, 30 de julho de 2009

"o" cara




― Pelo menos isso você tem de admitir: é “o” cara...

― É, num ponto ninguém tira dele, passou pelo teste do avesso...

― Hmm... a coisa da biografia única e tal, ser uma metamorfose ambulante?...

― ...ser uma proposta que suportou a esteira da linha de produção e desmonte, a velha e nada boa tortura dialética, e ainda ter sobrado lenha pra queimar do outro lado.

― Mas é esse o preço da representação, carregar sempre a coisa e o seu contrário...

― Na verdade, ele persistiu até ser aceito pelas razões, ou desrazões, que o fizeram ser rechaçado... você quer dizer?

― Mais ou menos. Perdição ou eleição só fazem sentido para a vaidade; sobreviver aos adversários e às adversidades, eis a regra de ouro da natureza e do reality-show-business...

― Daí que virou unanimidade.

― Não há, nunca houve, oposição neste país. Não faz parte da nossa natureza cordial.

― Veja os caras do mercado, os magos da macumba financeira...

― Viraram todos burros da noite para o dia... pois é, diante da realidade não há magos, só Magoos...

― Sim, sim eu lhe digo.

― Rsrs... você sabe por que não é possível um homem ser AO MESMO TEMPO, bonito, inteligente, hetero e honesto?

― Hahahaha! Porque aí já seria uma mulher...

domingo, 26 de julho de 2009

brisando na pedra


--------o mar interior
serenou
--------por artes sutis
a tempestade
--------dispersa
num terral
--------suave
na
-------nave

segunda-feira, 20 de julho de 2009

(às vezes) não consigo deixar de responder a um cínico


O Sr. Ferreira Gullar, poeta e opinador de ofício, para o bem e para o mal, tornou-se um interlocutor da questão manicomial; se movido pela sua condição, corajosamente assumida diga-se, de pai de dois psicóticos, ou por suas ambíguas relações com figuras ― estas sim ― de relevo que trabalharam na junção arte/loucura como Nise da Silveira e Lygia Clark, resta por esclarecer. A luta antimanicomial não é, e nem foi, feita por ingênuos movidos por boas intenções; é antes uma das vertentes do movimento de afirmação do direito à diferença de minorias e, mais importante, uma luta pelo reconhecimento da plenitude dos direitos civis destas no âmbito das modernas democracias. Ao contrário do que afirma o nosso Simão Bacamarte das letras, o cérebro não adoece como o coração e os rins, pelo simples fato de ser um órgão muito mais plástico e, digamos, “sob medida” que os outros. Exemplos: se me torno pianista, meu cérebro aumenta a área sensitiva e motora que representa as mãos; dois gêmeos idênticos possuem configurações cerebrais distintas, mas corações e rins iguais. Falta-lhe um curso de medicina para saber disto, Sr. Gullar, como para saber que o fato de haver genes envolvidos na esquizofrenia não faz dela uma “doença hereditária” e ponto. Genes têm complexas interações com o meio; na mesma carga genética, um ambiente favorável pode gerar um gênio e um desfavorável um louco, ou, combinações variáveis de ambos ― o citado Emygdio de Barros ilustra bem esta situação. Alas psiquiátricas integradas aos hospitais gerais são realidade há muito tempo em países atrasados como a Inglaterra e a França, não “hospitais psiquiátricos secretos”. Duvido que o colunista desconheça este fato. Internações fazem parte da biografia da maioria dos chamados loucos, são situações de exceção, necessárias e problemáticas, pois que devem servir para proteger o portador e o seu meio. Torná-las o mais breve e menos traumáticas que for possível é uma discussão necessária. Um fato: “loucos” não cometem mais crimes ou atos violentos que os “normais”; o problema mesmo é que eles incomodam um bocado.

domingo, 19 de julho de 2009

women 'is' losers


A feminilidade foi construída, ao menos no que tange ao mundo ocidental, como um rébus, uma metáfora da sexualidade ― e é neste sentido que considero a psicanálise o procedimento desmetaforizante do feminino por excelência: nascida desta cultura, reabre nela o caminho que vai do sexual ao sagrado e, portanto, ao poder. Conhecemos outros constructos envoltos em brumas, marcados pelo enigma: a Lei, a forma-mercadoria e, de forma geral, todos os modos de legitimação da ordem estabelecida. A minha hipótese repousa na constatação de que esta não é uma associação fortuita, o repúdio à feminilidade tem a opacidade e a permanência das coisas que escapam à influência da crítica culturalista, é conseqüência de uma opção repressora no processo civilizatório, em particular daquele que se configura a partir do monoteísmo e atinge sua maturidade e plena eficiência na civilização capitalista.

A idéia de um estágio matriarcal, ou de direito materno (Mutterrecht), antecedendo ao sistema patriarcal encontra-se hoje francamente desautorizada frente ao registro histórico disponível. Não seriam aplicáveis nem termos como transição, evolução ou recalcamento: a distopia social da mulher é produzida precocemente no processo civilizatório, ou antes, confunde-se com ele. Mesmo no ocidente moderno, que tanto se vangloria das conquistas de direitos privados e públicos, uma relativa isonomia entre os gêneros foi e continua sendo exceção, anomalia restrita a períodos que associaram a acumulação de capital a uma extraordinária sofisticação intelectual.

Se há uma gênese para o fenômeno, esta tem de ser procurada em estado nascente no estabelecimento do contrato social. Os laços sociais, que tão pouco têm de contratual, se constituem nos e pelos discursos que atravessam o espaço comunitário a partir da definição de um principium divisionis; este, submete tanto o mundo natural como o universo social e os códigos neles circulantes a uma partição lógico-política. Não existe formação social, por mais incipiente que seja o seu aparelhamento burocrático, que desconheça critérios de inclusão/exclusão, grupos ou categorias dominantes e dominadas, em que a feminilidade não advenha como um segundo sexo, modelo, aí sim primordial, da construção do Outro antropológico.

O que me leva a uma crua constatação: a crer no que se conhece acerca dos povos sem história, a mulher sai do estado de natureza na qualidade de mercadoria. Não se trata, ao menos a princípio, da condição servil ou de escravidão, mas certamente ela comparece como um bem artificialmente rarefeito e precioso. Desapropriada de si mesma em benefício da gens no processo de aliança, a mulher passa a ser regida pela ordem econômica, distribuída segundo as regras desta última, revelando, sob a fachada das regras de filiação, os alicerces de um sistema de direitos de propriedade.

Tal como na lição marxista ortodoxa, a mulher/mercadoria, ao circular, se converte em referencial geral pois uma mulher se troca por outra. Dito de outra forma, o mistério da mercadoria e o hieróglifo social da feminilidade visam elidir o mesmo fato: a troca que associa, já traz, ainda que em germe, o incômodo do privilégio, a dominação e a necessidade do seu ocultamento. Instaurando-se um regime de trocas (pessoas, bens e palavras) é necessário que a troca em si seja investida como um aí-desde-sempre, dimensão mítica e extra-temporal que lhe permita situar-se fora daquilo que é efetivamente trocado. O que na troca deve permanecer velado é o arbitrário do seu fundamento, a marca simbolizante, que faz existir o que não existe, dando-se in absentia. Daí a necessidade da metáfora religiosa, da consagração de um espaço/tempo fundante em que o feminino é sagrado e tabu.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O OVO CÓSMICO

A oitenta quilômetros por hora, o impacto faz da superfície do mar uma crosta de pedras. E esta foi só a primeira descoberta do dia. Daí veio a mega-vaca, o tranco daquela catedral de água desabando em cima de mim ― uma sensação igual a nada que já tivesse experimentado antes. Dezoito metros. A onda fechou as mandíbulas de cristal bem nas minhas costas; por um segundo cheguei a ouvir o rugido dela quebrando e em seguida o silêncio me engoliu. Comparar com uma queda livre ou com a ausência de gravidade é pouco: até porque nessas paradas radicais há um certo consolo, já que os movimentos, ainda que sujeitos a condições especiais e adrenalizados pelo perigo, seguem obedientes à nossa vontade. Neste exato momento, apesar do risco físico extremo em que me encontro, não posso fazer absolutamente nada.

“Não é fácil renunciar por inteiro ao controle se estamos acordados”. Foi o sentido das palavras que consegui entender da minha amiga tahitiana, anteontem, diante do meu mapa astral; ela me explicou também que estou atravessando uma fase chamada de Retorno de Saturno. Mas eu não deveria pensar nisso agora. Aliás, o ideal mesmo é não focar o pensamento, apenas aceitar o instante que se apresenta; sem raiva e sem apego, como aprendi na meditação. Aprendi muita coisa viajando, deu pra conhecer uma pá de gente incrível em dez anos de circuito. Tenho vinte e nove anos e, até há menos de um minuto atrás, estava sobre a minha prancha e o meu corpo me pertencia ― não era esse boneco de pano que está sendo furiosamente sacudido, girado em todos os sentidos até perder todo o senso de direção e posição.

O colete salva-vidas foi arrancado e o meu pé acertou a testa com toda a força; então, o pânico passou e, como se fosse um programa automático, entraram em ação uma série de procedimentos de emergência que adquiri sem perceber numa vida de contato diário com o mar. Agrupei, quer dizer, consegui me fechar feito um tatu-bola. Ou um feto. Melhor: um ovo. Saturno é o finalizador de ciclos, ele traz a sabedoria retrospectiva que vem junto com a velhice, a dificuldade, a doença e as trevas. Acho que não devia pensar assim, mas o caldo me jogou na região das sombras infernais, no caos primitivo em que as sementes de todas as coisas estão confundidas e misturadas, que me arrasta como e para onde quer, e que torna qualquer decisão pesada como o chumbo que recheia as pranchas curtas dos big riders. Maraü disse ainda que nesta nova fase eu deveria rejeitar a casca e tomar o núcleo, purificar-me três vezes com o sol, o sal e a água, e que isto seria facilitado, pois Saturno viu o seu rosto refletido no espelho de Marte.

O filme passando na cabeça é conhecido, mas parece a biografia de várias pessoas que viviam em mim de forma independente; o primeiro campeonato que venci aos sete anos em Macaé, a saída de casa aos treze, o começo no profissionalismo, o logo do patrocinador, a estréia cabulosa no Qualifying em Todos Santos, daí, só pauleira: Backdoor, Off the Wall, Mentawai, Jaws, Padang, Puerto Escondido, J-Bay, Pico Alto, Lacanau... um carrossel de imagens nítidas, mas sem as emoções correspondentes. Será que já era, fui? Um estado suspenso? Regredi para o grumo original, o corpúsculo de possibilidades que ainda não sabe se vai germinar, um ovinho sendo turbilhonado por uma centrífuga do tamanho de um prédio de seis andares. Achei o ninho do Simurgh, aqui, na barriga da baleia, as memórias explodem na mente: a caminhada fulminante no acesso ao W.C.T., alinhar nas baterias dos top 45, tocar na banda do Kelly, o casamento na Califa, as drogas, o seqüestro da irmã, a separação. Mas eu devia me preocupar só em manter a apnéia e não pensar nisso agora.

Apenas ficar ligado no presente, passado e futuro são Maīa, ilusões criadas para distrair ou sofrer. É preciso praticar a aceitação resignada, incorporar completamente a passividade e a compaixão plena ― o vazio serve de ponte entre o vácuo e a potência total. A rainha da série me pegou, quando ela parar, precisarei de forças para nadar. Om.

O Pacífico, imensidão desesperadora de tanto azul, me ensinou que qualquer pedaço de terra está no topo de uma cordilheira que se ergue do fundo dos oceanos. Terra, o planeta-mar. O Tahiti é uma dessas montanhas, situada pouco acima do paralelo 20 Sul na Polinésia francesa; uma ilha vulcânica em forma de oito inclinado, na ilhota menor, a sudoeste, fica Teahupoo. Os locais pronunciam ‘tchôpo’ e avisam logo: cuidado com a esmagadora de crânios. As mãos de Maraü preparam suco de noni, uma espécie de fruta-pão nativa que cura tudo, até o veneno do peixe-agulha. No tubo da onda está a manifestação da divindade no surfe: inspirar, mandar pra baixo, entubar profundo, passar a mão na parede e sair limpo na espuma. Teahupoo, o sonho/pesadelo dos surfistas: reef break de esquerdas rápidas, fortes e tubulares que “sugam o chão” do mar, arrebentando numa bancada rasa de corais afiadíssimos. O Teco, com o lash preso nas pedras, vivendo aqui o pior inferno dele.

Agonia e êxtase. O perfume misturado de sangue e de tiare, a gardênia tahitiana; será o meu destino abraçar Iemanjá nos mares do sul? Justo agora que me casei de novo, e o primeiro filho dorme sussu na placenta dentro da minha terceira mulher? Nunca fui um casca-grossa, fui criado na marolinha; quando mudei para Saquarema, respeitei aquelas ressacas, os swells nervosos, em Mavericks conheci o terror. Morar na baja Califórnia não fez do merrequeiro, especialista em manobras aéreas, um domador de titãs. Não, não devia pensar nisso agora. Há dois anos, quando voltei a competir e as contusões seguidas mostraram que já não agüentava a puxada competitiva, cheio de contas a pagar, encarei a parada do tow in e pedi abrigo na confraria dos caçadores de gigantes. Rebocado por jet ski, pude descer umas bombas que na remada não iam rolar. O falecido Mark Foo é que disse: quem quer pegar as maiores ondas, tem de estar preparado para pagar o maior dos preços.

Vacilei na saída do tubo, um erro cabaço, perdi visibilidade com a baforada, aquele suspiro que sopra do ventre da onda antes de se fechar. Saí da linha no solavanco, essas morras não têm a superfície lisa, e é por isso que a prancha leva lastro e os pés ficam presos como no snowboard. De repente a casa está caindo, um terremoto vai derrubando quartos, paredes, escadas, corredores e, lá no fundo, a gente vê uma única rota de fuga, só alcançando esta saída é que poderemos escapar da casa ruindo. Sair do tubo da onda é como nascer. Se emergir deste caldo, nasci de novo. Ninguém sabe o que uma onda realmente é; ela dura os poucos segundos de um sonho, lá dentro o tempo se dilata e acelera em momentos-século, e cada instante que chega é um paradoxo que altera os que o antecederam. Dizem que o Universo tem ondas, dobras nas quais se depositaram por gravidade os sóis, as galáxias, os asteróides, os planetas e... nós, poeira de estrelas. In utero. Agora estou preenchido de uma alegria juvenil, uma brancura silenciosa me envolve; experimento o nada, antes de todo e qualquer nascimento ou começo, sinto que estou na primeira fase da luta contra a morte, a entrada no invisível. Não sei mais o que está no alto ou em baixo, onde está a esquerda ou a direita; estou retornando para o zigoto, quatro, oito, dezesseis, trinta e duas, sessenta e quatro células, uma mórula, os pólos animal e vegetal, a boca, o ânus, a gástrula, um cordão vertebral, uma noite tépida e feliz, feita de uma matéria clara e envolvente que une o ar e a água, o céu e a terra, uma imagem cósmica, ampla, imensa, suave.

quarta-feira, 8 de julho de 2009