segunda-feira, 28 de setembro de 2015

a menina sentada (final)



Haverá decerto coisas piores na infância que o momento no qual descobrimos nos pais a incapacidade não só de cuidar de nós, os filhos, mas também deles mesmos ― disso, felizmente, só restam traços, não memória. Do que sim lembro bem foi a chegada naquela casa: meu pai era a própria imagem do homem perplexo na derrota, abandonado com três filhas pequenas para criar. Mudamos às pressas para o sobradão requenguela logo depois que mamãe fugiu com um caminhoneiro, na casa da nossa falecida avó ele talvez esperasse livrar a família daquela doença contagiosa. A vergonha.
― Você tá vendo as gracinhas dela? Foi assim que tudo começou.
― Ela era só uma menina, e nós mais ainda...
― Sempre defendendo ela, né? Claro, você é a boazinha, cheia de compaixão! Mas pra mim a danada sabia muito bem o que estava fazendo: ficava desse jeito se balançando, horas e horas. Possuída, diziam.
Dormíamos sobre estopas num quarto sem luz em que as tábuas do assoalho gemiam à noite, aliás, como tudo naquele edifício cansado. Na escola, apontavam-nos ao longe, as outras meninas diziam que as mães proibiam de convidar a gente pra brincar na casa delas. O povo da cidade nos chamava de Filhas da Diaba. Papai passava o dia bebendo nos botecos, voltava tarde, tropicando pela escada até desabar na cama vestido, cheirando a mijo e morte da vovó. Durante muito tempo não tínhamos sequer uma garrafa de água na cozinha.
― Em vez de ficar falando mal da nossa irmã, bem que podia me ajudar a fechar as janelas. Não tá vendo a tempestade chegar?
As nuvens carregadas haviam se deslocado rapidamente, engolfando todo o horizonte visível. Exércitos sobrevoando o ruído branco da cidade. Corri em vão a fechar as janelas, a névoa invadiu a sala com seu manto gasoso que não se desfazia em chuva ou garoa. Nada se decidia.
― Esta é você: a tarefeira, a que sempre resolve tudo. Inteligente e fofa, uma graça de pessoa! Quer saber?, nunca houve esse “nós” que você tanto fala!
― Olha, se não quer ajudar, pelo menos sai da frente. De que te adiantou ser bonita? É amarga, parece que só vê o lado pior das coisas.
― Ela é que era, a mais bonita e inteligente de nós... fingiu-se de louca pra trazer mais desgraça pras nossas vidas. Mas a vida é assim: ela é cruel, e te mata no final.
Nunca consegui entender o perigo que tanta gente de bem enxergava em nossa família pobre e destartalada. Pode ser que fôssemos muito azarados, isso costuma apavorar os honestos cidadãos. Às vezes penso que eles é que sempre estiveram certos: talvez houvesse mesmo a parte da maldade no nosso sangue, passando intacto e geração para geração. O fato é que o pastor resolveu tomar para si a missão de exorcizar minha irmã mais velha, passavam horas juntos rezando.
― Aposto que foi desse jeito que ela enlouqueceu aquele homem: levantando a saia pra ele...
― Como é que tem coragem de dizer...? Ela tinha só onze anos! Estava assustada, como eu e você, perdida... nós só estávamos perdidos!
― Foi de caso pensado, ela deixou o pai saber o que acontecia nas tais sessões... Atraiu os dois pra arapuca, papai matou o monstro errado!
Sentia novamente o cansaço do mundo, não conseguia deter a torrente de ódio da minha irmã, a fumaça macilenta ocupava todo o apartamento, a menina não parava de se balançar e atirar pra trás, machucando a cabeça na parede. Voltei para o quarto, quem sabe dormindo aquilo tudo passaria. Achei-me deitada exatamente como antes, mas agora a menina estava sentada na beira da cama.
Sabia que não iria embora, tinha vindo pra ficar, estivera ali o tempo todo.


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

a menina sentada (3)




            A sensação era de lidar com uma rima de toras rolando umas sobre as outras, uma pilha de lenha instável agrupada sem lógica por mãos apressadas. Cada pequeno movimento, a menor sacudidela, mesmo a mais imperceptível, e a geringonça ameaçava desabar. Todavia, esta ainda era uma sensação pouco clara, não havia nada de casual em todo aquele castelo de cartas: somente a história secreta, a voz das paredes e do vento, o sussurro das folhas carregadas pela viração, o reencontro do antigo e do novo improvavelmente.
            Uma história de resíduos. Depositada em estratos. Feita de tudo aquilo que não se pode contar.
            ― Você ao menos podia ter poupado os meus morangos, sabe o quanto eu gosto e...
― Poupar, poupar... Nunca vai acabar essa lenga-lenga? Os tempos mudaram, mana, nós saímos daquele buraco.
― Mesmo? Às vezes tenho a impressão que algumas coisas se perdem, e outras, não acabam nunca.
Reparei que o horizonte, para além das janelas da cozinha, se preenchia de gigantescas nuvens escuras.
Definitivamente, por mais turbulento e caótico que tenha sido um começo de vida, ele se transforma com o tempo em souvenir de uma infância inexistente, e, enquanto tal, passa a ser partilhado por essa outra comunidade fictícia: os irmãos, de sangue ou criação, os mortos e os vivos.
Consegui que ela me acompanhasse até à sala, mas não antes de finalizar a travessa inteira das frutas. A menina continuava lá, sentadinha no sofá como a deixara, porém seus movimentos haviam mudado. Agora balançava a saia, que pegava pelas bordas do regaço, levantando-a ao nível da cabeça revelando o sexo impúbere.
― É a própria, a mesma biscate de sempre. Não mudou nada.
Fiquei indignada que falasse assim de uma criança, ao mesmo tempo, percebia o quanto era impróprio para a idade o gestual da menina. Quis repreendê-la, mas temi que o castigo atiçasse ainda mais o crime, como se a enunciação do pecado o fixasse a jamais na memória de quem talvez ignorasse a extensão das suas culpas. A hesitação, imagino, que sentem alguns antropólogos ao fazer contato com indígenas isolados da nossa barbárie civilizada.
Não conseguia também tirar os olhos daquela vagina que se oferecia em intervalos de visibilidade e ofuscamento: lisa, rosada, a penugem lívia, sem as pregas que os anos, os hormônios e o desejo imprimem aos lábios internos. Desviei a atenção para um sofá revestido de curvim cujo forro de espuma branca apontava para fora no canto descosido. Imediatamente, o pensamento se acendeu como um letreiro luminoso na minha cabeça; “Ainda a sinto em mim”.



quarta-feira, 16 de setembro de 2015

a menina sentada (2)





            Gozado como isso me importava tão pouco naquele momento, estava mais preocupada com o paradeiro da minha irmã: não a via nem ouvia em lado nenhum, mas distinguia sons estranhos vindos da cozinha. Como se estivessem jogando todos os utensílios ao chão.
            — Onde você está? Já acordei, tô pronta.
            Silêncio completo.
            Saí a paso doble em direção à área de serviço, e foi então que a vi, ou melhor, senti. Dei um giro em câmera lenta no centro da sala. Antes mesmo de me virar, sabia que ela estaria lá. Sentada no sofá do living, muito direita, os braços largados ao longo do corpo, as mãos apoiadas no assento ao lado das pernas descruzadas e inquietas.
            Quase machucava a maciez esbranquiçada da pele em contraste com o veludo adamascado da roupa, as pernas finas enfiadas em meias brancas e sapatinhos envernizados de boneca, os cabelos negros presos numa tiara de cor igual ao vestido. O ar de bicho enxotado, um pequeno ser repleto de medos absurdos e coragens bobas.
            — Deixa eu te ajudar, acho que... bom, esquece.
            Nem sabia o que estava dizendo, apenas reagia a torrentes de afetos com o que conseguia reunir de doçura gratuita. Ela não respondia, apenas ficava ali, balançando o tronco e as pernas. Às vezes atirava-se de cabeça pra trás, como fazem os bebês.
            Aquilo me desconcertou, não conseguia impedir seus movimentos nem argumentar com a garota. Divaguei. Fixava a tinta branca da parede, descascada por alguma infiltração de umidade, que parecia a ponto de se romper. “A natureza vai entrar na sala”, pensei.
            — Olha, me espera aqui, não sai. Vou buscar minha irmã ali na cozinha e a gente prepara uma coisa gostosa pra você.
            Sim, essa era uma boa idéia: pedir ajuda a alguém, alguém que descobrisse alguma saída, ou, que pelo menos tivesse um pouco mais de sangue-frio diante daquela situação. Normalmente não deposito tamanha esperança numa pessoa da família, mas sempre seriam duas cabeças a pensar em vez de uma.
            Duas cadeiras de plástico, frente a frente, separadas por uma mesa com tampo de fórmica, em cima do fogão, igualmente desoladas, duas chaleiras. Afora estes objetos, tudo estava revirado na cozinha: as gavetas arrancadas, os talheres espalhados pelo chão, as travessas e caçarolas em desvario, como se cada coisa inanimada houvesse despertado do seu sono e voltado à vida.
            Minha irmã ao lado da geladeira, com a porta escancarada, devorava uma taça de morangos ― ela sabe muito bem que esses morangos são meus, não me importo que ela se sirva de qualquer outra guloseima. Menos essa.
            Para minha surpresa, já sabia.
            ― Sim, eu vi. Por que tanta surpresa? Ela esteve lá o tempo todo, sempre vai estar. Não podemos fazer nada quanto a... o que está feito, está feito.

            

sábado, 12 de setembro de 2015

a menina sentada (1)




          Cheguei em casa meio cedo. Tinha um monte de outras coisas a fazer naquela tarde, mas combinei com a minha irmã e ela já estava lá me esperando. Estava muito cansada, como ultimamente sempre estou, aliás, nos últimos tempos não venho sentindo nada além disso. Cansaço.
          — Só preciso de uma meia horinha de sono.
          — Você está pálida, tudo bem?
          — Um pouco de tontura, vai passar.
          Só sabia que precisava dormir um pouco. Descansar.
          A cabeça parecia aumentar de tamanho, dilatava e encolhia feito um balão, pesando. Abaixei as persianas, fechei a porta do quarto e deitei vestida sobre a cama. Um zumbido fino persistia no ouvido. Dormi de repente um sono como de tardes chuvosas, como antigamente, quando eu sentia mais do que pensava.
          Mas não chovia, lembro da minha irmã espiando dentro do quarto e dizendo algo sem que pudesse entender as palavras. Era já o mundo do sono e seus abismos sem explicação. A porta se fechou novamente, uma onda de alívio se espalhou a partir do meu peito.
          Enfim, só.
          — Uma hora deu. Você tá bem?
          Levantei-me, alisei a roupa, ajeitei os cabelos, esfreguei o rosto sentada na beira da cama.
          — Já vou. Tô melhor, obrigada.
          O barulho de um gaveteiro caindo.
          Não havia necessidade de acender a luz, conhecia todos os caminhos daquele cômodo. Caminhei no escuro até à porta, abri, corri os olhos pela sala vazia acostumando com a claridade. Ao fechar a porta atrás de mim, reparei que ainda estava na cama.
          Deitada.