domingo, 13 de abril de 2014

O seqüestro de Alda Espinosa (final)


Recado dado, dica anotada.
Um alto morro separado de outros derredor. É o lugar onde ficava antigamente o bairro operário da companhia de papel, agora de todo abandonado, sem que haja dele melhor memória que alguns destroços dos edifícios contíguos à estação desativada do trem da Sorocabana. Alguns casebres levantados ao léu na sua desolação, outros em pedaços ladeira abaixo, de mistura com ervas e tojo e pedraria lavada, e em seguida fileiras de casas de alvenaria onde pobres e remediados se dão à lavoura miúda e criação de galinhas e marrecos.
Dona Nelma, a médium, mora no final da rua numa casa de muro baixo, caiada de azul com requadros brancos e em cuja platibanda se vê uma data emoldurada: 1928. O cheiro dos gatos é perceptível a dezenas de metros do portão, mas a quantidade deles no interior da casa, no jardim, espandongados nas janelas, sobre os móveis, deitados ao sol ou nas árvores, impressionam a todos que entram para se consultar. Ex-atriz de novelas da televisão, Nelma recebe os clientes com hora marcada na edícula da casa, um agregado insólito de puxadinhos que ameaça desaparecer sob a proliferação de um cipoal desbordante de mato a crescer livremente pelo terreno sem cercas.
Sentada numa cadeira dobrável de boteco, Alda aceita o chá de erva cidreira que uma assistente transex oferece numa bandeja. Anna tinha ido fumar um cigarro lá fora, deixando-a sozinha com as suas dúvidas na sala de espera da grande sensitiva. A maioria dos consulentes vinha em busca de mensagens de parentes falecidos, filhos inconformados com a orfandade, viúvas sem consolo, diálogos interrompidos, todos ali ansiavam o mesmo ungüento da alma, o mesmo lenitivo para a ausência: contato.
Perdidas no caminho, ela no volante e a co-pilota de olho nas rotas do waze, também tinham perdido a hora: agora precisaria esperar por um encaixe nos horários do fim da tarde. Tome palavras cruzadas, chazinhos e cigarros.
― Aldinha, por que você não gravou a música que te mandei?
― Era sua mesmo? “Eu leio o céu/que é você/eu leio a mão/ no seu seio/e eu sou o véu...”
― “... e o céu é você. Porque o céu é um ser/um prisma do afeto/e o fim é o feto/e o ventre é o tato...” E então, não gostou?
Sentiu uma falange de pêlos se levantando ao longo de toda a espinha. A voz, a marra, as inflexões e as mumunhas, tal e qual, era o jeito do Itamar Assumpção! Pra não dizer cuspido e escarrado, diria esculpido em Carrara. Nunca tinha visto aquilo, nem bem pisara na saletinha penumbrosa cheirando a mofo e gatos, mal e mal iluminada por um lustre tiffany com pedaços do vitral faltando, e a médium já tinha incorporado. Mas assim tinha sido sempre entre eles dois, papo reto, falando na bucha sobre tudo e qualquer coisa, o que se pode e o que nunca se deve falar.
― É que... é que, bem, não parecia muito coisa sua, cê sabe, melô chiclete, não tinha nem tempo composto... Como é que eu ia saber ao certo?
― Ao certo, ninguém sabe nada. Dureza mandar canção através de nego que não saca tchongas de música, quando o cavalo é pangaré não tem cavaleiro que adiante. E que porra é esta de mesa branca?, eu sou preto Alda, Pretobrás!
― Foi o jeito, não tem internet com o lado daí. Não brigue, não negue, me abrigue...
― Mesmo que mal eu diga, entregue-me mel. Hahahaha!
― Você continua o mesmo. Pensei que a eternidade ia sossegar teu facho, Beleléu.
― Uma ova, cê acha que isto aqui é um domingo no parque, sossego e calma? Também se leva catiripapo na alma.
― Bom, mas tu ganhou tudo agora: songbook, homenagens, regravações mil...
― É o de sempre: artista bom é artista morto. Tá só faltando o filme com o Lázaro Ramos me interpretando nas telas, e a biografia não-autorizada, mas essa vai demorar: é que o Satanás anda ocupado.
― Hehehe. Continua antenado no movimento, você.
― Tu também Alda, quando te vejo cercada desses jovens, uma molecada talentosa pacas, conectando uma geração com a outra, ai menina, me dá uma vontade de estar aí contigo!
― Nem diga, cara, sinto tua falta todos os dias. Estou com você, lado a lado, o tempo penso no que você disse, let’s dance, e não last dance.
― Mas tu continua bunda mole a vida toda, não podia logo negociar vinte shows com o SESC?
― Bicho, sabe que escutei você no meu ouvido quando definimos a agenda de shows?
― Claro, nega, eu tava do lado de cá berrando! Continua tudo igual aí, a mesma turminha de egos inflados e mentes anoréxicas, quando será que o patropi vai crescer? Nossa indústria cultural é o reflexo do país da bandalha, da mesquinharia, sempre a velha celebração da esperteza burra, o triunfalismo carnavalizante.
― Como sei do que cê tá falando, sofro isso na pele todos os dias...
― Mas então, pra que foi que me chamou, me arrancando do desassossego dos mortos?
― Nem sei direito, tinha tanta coisa pra te perguntar... mas agora, com você aqui, me embananei toda. Que é que eu faço, ou melhor, que é que ainda tenho de fazer?
― Ah, não, sem essa breguice de me perguntar o sentido da vida! Enquanto ela dura, andamos às cegas, depois que acaba, menos luz ainda, Alda. Você sabe aonde vão as palavras que não dizemos? Pra onde vai o que quisemos fazer e não fizemos? O que não nos permitimos sentir? Pois bem, tudo isso se acumula na inteligência do corpo, vira lágrimas, azedume, insônia, nostalgia besta, mágoas, por isso te digo: não deixa escapar nenhum som, nenhuma canção que você puder botar no mundo. Alda, você anda de Mercedes, mas não tem bens. Que se fodam os bens materiais! Alda, tudo que deixamos de dizer não morre, nos mata.
― Eu te amo, palmeira do deserto.
― Também. Do amor ninguém escápula.


domingo, 6 de abril de 2014

O seqüestro de Alda Espinos (#4)



            Ora, para mim, toda esta história de seqüestro faz-me pensar imediatamente num bando de criminosos dentro de um muquifo sórdido à espera do resgate, ou um remake vagabundo de Sem orquídeas para Miss Blandish, clássico noir dos anos quarenta. No plano maior da minha vida, começo a distinguir uma estranha simetria entre a maneira como conheci os pais dos meus filhos e o reencontro com Anna. São coincidências demais: a carteira esquecida na festa, o telefonema, a mesma cafeteria para devolvê-la, porém, ao invés do rancor de classe nutrido em divergências estéticas e frustração, minha amiga e produtora traz a solução cristalina ― dar cabo do antigo eu.
― Simples assim. Seqüestramos Alda Espinosa, e só vai existir Alda E de agora em diante, a sua personalidade musical solo. Não foi isso que te disse o Darrua?
― Foi. Fizemos uma parceria maravilhosa, eu e o Darrua. Você sabe como são os poetas, sempre têm esse pé, como dizer, lá do outro lado... Musiquei aqueles poemas divinos dele, daí ele quis porque quis jogar os búzios pra mim, divinar de verdade, e foi então que me chegou a mensagem: eu tinha que assumir o “ê”, que é um som de índio, e também um indicador de ligação.
― Muito legal essa coisa do “E” sem ponto, porque não é Alda E., não é questão de abreviatura, mas de abertura, associação. Você é a maior tecedora de laços, a pessoa mais generosa que conheço.
― Tenho oito irmãos, todos músicos. Eu sou a sétima, quase não nascia, tive o mal do simioto, demorei pra vingar. Vovó Alda morreu comigo ainda na barriga de mamãe, senão ia me chamar Lucina Mara. O irmão caçula só veio sete anos depois de mim.
― Uma oitava completa de irmãos musicais...
― É mais ainda, veja, na escala maior existem sete notas, mas não sete tônicas: duas são semi-tons, o mi e o si. A sétima nota, o si, é mais uma transição, uma preparação para o dó da oitava de cima, até porque não existe dó bemol. Sabe?, isso define a minha vida até aqui.
― Aí mora o problema: uma família de músicos, os Espinosa, fica difícil individualizar sua voz no meio deles. É um belo nome, filosófico e tudo, mas a verdade é que Espinosa tem dono.
― Hahaha, de Alda E ninguém é dono, nem herdeiros, nem gravadora!
― O que não te faltam são herdeiros musicais, Alda.
Anna tinha deixado o feijão fradinho de molho na véspera, descascou grão por grão tirando o olho preto, passou tudo na grelha mais fina do moedor de carne, bateu a massa do feijão até ficar bem leve e estourar todas as bolhas de ar, temperando com sal e cebola ralada. Enquanto punha no fogo a frigideira com azeite de dendê, deu uma espiada no panelão onde ferviam inhames pelados e com casca na água pura; com a colher de sopa jogou os bolinhos na fritura, e já começou a refogar noutra panela o dendê junto com o camarão seco, a cebola, o alho, o gengibre, a pimenta, mais uma pitada de sal. Terminou o molho do ipetê e do acarajé quase ao mesmo tempo que apurava o ponto do purê.
― Vixe mãe, Anna, que tanta cozinha, mulher?
― Ah, minha querida, nós não vamos chegar no terreiro de mão abanando. Você é filha de Iansã, não é?, então, cozinhei ipetê, acarajé e bobó de inhame. Ali, trouxe também champanhe, catinga de mulata, cordão de frade, gerânio rosa, açucena, rosas brancas e amarelas. Não vai faltar nenhuma das obrigações.
― Tá certo, Iansã pode se tornar muito ciumenta e vingativa, se eu não conseguir explicar direitinho... é tempestade, raio e facão! Espero que esteja nos conformes.
O terreiro de Mãe Magdalena das Pedreiras estava cheio na quarta feira à noite, a função já ia longe na madrugada quando a entidade decidiu que era hora de atender as demandas. As filhas de santo rodopiavam no salão, levantando o vento que traz a chuva para lavar a terra e semear a paz, o batuque seguia os cantos, as danças se sucediam, mas só ao amanhecer é que sua luz se manifestou por inteiro.
― Eparrei Oyá! ― Alda se ajoelhou, a orixá estava incorporada, o respeito era máximo.
― Minha filha voltou, é? Ou vai me renegar de novo que nem quando tu virou evangélica?
― Perdoa meus descaminhos, mãe.
― Oiá Funán, Adagangbará! Tá querendo o quê com essa mania de mudar de nome?
― Ee...
― Shiu, não me venha com mini-dramas, miligramas, essas lágrimas mundanas! Oiá não podia parir, mas alcançou depois de sacrificar um carneiro. Tu teve cinco filho, de três pai diferente, mas não devia, porque não tinha cabeça pra isso. Tu só namorou gato mimado, seus ex são desafinado.
― Pois é, sempre tive o dedo podre pra homem...
― Tem desespero não, fia, Oiá ganhou seus poderes dos amantes que teve: de Ogum ganhei nove filhos e o direito de usar a espada; de Oxaguiã, o escudo; de Oxóssi, a caça; com Exu, o poder do fogo e da magia; de Logum Edé, vieram os frutos d’água; só assosseguei com Xangô, que me trouxe o dom do encantamento, da justiça e dos raios. Único que não quis nada comigo foi Obaluaê.
― Minha Iansã, peço sua bênção, quero fazer minha música tocar no rádio, tocar na novela. Um pouco de grana e sucesso não fazem mal a ninguém, mãinha.
― Sucesso, sunssê diz?, com essas melodia e ritmo reguingado? Menina, Mãe Oyá ouvia canção de escravo muito antes de tu nascer, acha que eu não sei de onde vem a tensão e o movimento? Acha que eu nunca ouvi heavy metal? Ocê canta: “Vou dizer em sol, vou dizer em si, vou dizer em fá, o que vim fazer aqui”, e ainda quer povão no teu show? Tua corda tá é bem do amarrada na caçamba do Itamar!