Ora,
para mim, toda esta história de seqüestro faz-me pensar imediatamente num bando
de criminosos dentro de um muquifo sórdido à espera do resgate, ou um remake
vagabundo de Sem orquídeas para Miss
Blandish, clássico noir dos anos quarenta. No plano maior da minha vida,
começo a distinguir uma estranha simetria entre a maneira como conheci os pais
dos meus filhos e o reencontro com Anna. São coincidências demais: a carteira
esquecida na festa, o telefonema, a mesma cafeteria para devolvê-la, porém, ao
invés do rancor de classe nutrido em divergências estéticas e frustração, minha
amiga e produtora traz a solução cristalina ― dar cabo do antigo eu.
― Simples
assim. Seqüestramos Alda Espinosa, e só vai existir Alda E de agora em diante,
a sua personalidade musical solo. Não foi isso que te disse o Darrua?
― Foi. Fizemos
uma parceria maravilhosa, eu e o Darrua. Você sabe como são os poetas, sempre
têm esse pé, como dizer, lá do outro lado... Musiquei aqueles poemas divinos
dele, daí ele quis porque quis jogar os búzios pra mim, divinar de verdade, e
foi então que me chegou a mensagem: eu tinha que assumir o “ê”, que é um som de
índio, e também um indicador de ligação.
― Muito legal
essa coisa do “E” sem ponto, porque não é Alda E., não é questão de
abreviatura, mas de abertura, associação. Você é a maior tecedora de laços, a
pessoa mais generosa que conheço.
― Tenho oito
irmãos, todos músicos. Eu sou a sétima, quase não nascia, tive o mal do simioto,
demorei pra vingar. Vovó Alda morreu comigo ainda na barriga de mamãe, senão ia
me chamar Lucina Mara. O irmão caçula só veio sete anos depois de mim.
― Uma oitava
completa de irmãos musicais...
― É mais
ainda, veja, na escala maior existem sete notas, mas não sete tônicas: duas são
semi-tons, o mi e o si. A sétima nota, o si, é mais uma transição, uma
preparação para o dó da oitava de cima, até porque não existe dó bemol. Sabe?,
isso define a minha vida até aqui.
― Aí mora o
problema: uma família de músicos, os Espinosa, fica difícil individualizar sua
voz no meio deles. É um belo nome, filosófico e tudo, mas a verdade é que
Espinosa tem dono.
― Hahaha, de
Alda E ninguém é dono, nem herdeiros, nem gravadora!
― O que não te
faltam são herdeiros musicais, Alda.
Anna tinha
deixado o feijão fradinho de molho na véspera, descascou grão por grão tirando
o olho preto, passou tudo na grelha mais fina do moedor de carne, bateu a massa
do feijão até ficar bem leve e estourar todas as bolhas de ar, temperando com
sal e cebola ralada. Enquanto punha no fogo a frigideira com azeite de dendê,
deu uma espiada no panelão onde ferviam inhames pelados e com casca na água pura;
com a colher de sopa jogou os bolinhos na fritura, e já começou a refogar
noutra panela o dendê junto com o camarão seco, a cebola, o alho, o gengibre, a
pimenta, mais uma pitada de sal. Terminou o molho do ipetê e do acarajé quase
ao mesmo tempo que apurava o ponto do purê.
― Vixe mãe,
Anna, que tanta cozinha, mulher?
― Ah, minha
querida, nós não vamos chegar no terreiro de mão abanando. Você é filha de
Iansã, não é?, então, cozinhei ipetê, acarajé e bobó de inhame. Ali, trouxe
também champanhe, catinga de mulata, cordão de frade, gerânio rosa, açucena,
rosas brancas e amarelas. Não vai faltar nenhuma das obrigações.
― Tá certo,
Iansã pode se tornar muito ciumenta e vingativa, se eu não conseguir explicar
direitinho... é tempestade, raio e facão! Espero que esteja nos conformes.
O terreiro de
Mãe Magdalena das Pedreiras estava cheio na quarta feira à noite, a função já
ia longe na madrugada quando a entidade decidiu que era hora de atender as demandas.
As filhas de santo rodopiavam no salão, levantando o vento que traz a chuva
para lavar a terra e semear a paz, o batuque seguia os cantos, as danças se
sucediam, mas só ao amanhecer é que sua luz se manifestou por inteiro.
― Eparrei Oyá!
― Alda se ajoelhou, a orixá estava incorporada, o respeito era máximo.
― Minha filha
voltou, é? Ou vai me renegar de novo que nem quando tu virou evangélica?
― Perdoa meus
descaminhos, mãe.
― Oiá Funán,
Adagangbará! Tá querendo o quê com essa mania de mudar de nome?
― Ee...
― Shiu, não me
venha com mini-dramas, miligramas, essas lágrimas mundanas! Oiá não podia
parir, mas alcançou depois de sacrificar um carneiro. Tu teve cinco filho, de
três pai diferente, mas não devia, porque não tinha cabeça pra isso. Tu só
namorou gato mimado, seus ex são desafinado.
― Pois é, sempre
tive o dedo podre pra homem...
― Tem desespero
não, fia, Oiá ganhou seus poderes dos amantes que teve: de Ogum ganhei nove
filhos e o direito de usar a espada; de Oxaguiã, o escudo; de Oxóssi, a caça;
com Exu, o poder do fogo e da magia; de Logum Edé, vieram os frutos d’água; só
assosseguei com Xangô, que me trouxe o dom do encantamento, da justiça e dos
raios. Único que não quis nada comigo foi Obaluaê.
― Minha Iansã,
peço sua bênção, quero fazer minha música tocar no rádio, tocar na novela. Um
pouco de grana e sucesso não fazem mal a ninguém, mãinha.
― Sucesso,
sunssê diz?, com essas melodia e ritmo reguingado? Menina, Mãe Oyá ouvia canção
de escravo muito antes de tu nascer, acha que eu não sei de onde vem a tensão e
o movimento? Acha que eu nunca ouvi heavy metal? Ocê canta: “Vou dizer em sol,
vou dizer em si, vou dizer em fá, o que vim fazer aqui”, e ainda quer povão no
teu show? Tua corda tá é bem do amarrada na caçamba do Itamar!
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