domingo, 30 de outubro de 2011






Atrações da Caldeira d a d a Diversidade

1-Música Dj Kblo e Dj João Rocha, bandas: Boy´s Night, Pappas Palace, Anima, Nico Latinidade, Maracatu de Raquel Trindade e banda Gaza. E mais, Tag tool e Guitarrada

2-Cia de Dança de Claudia Souza, Palhaços e Teatro Jandira

3-Desfile Dasdoida em homenagem a Foucault
lançamento Revista Lowcultura e do livro Igapó de Anísio Mello, editora VALER

4-Feira solidária Bazar da Rede Ecosol

5-Alimentação: churrasco Só a Antropofagia no Une, salgados e bebidas

6-Instalações e videos de Janaina Nagata e Nídia Bastos, Playmobil em obras de Lê Machanoscki

7-Oficinas
-silk screen DASDOIDA, cerâmica de Vicente Cardia
-tear+origami João Villares e Silvia Arima
-EVGB sobre eleição de heróis de videogame com Willian JS e Geane Baccar

8- Balcão informativo da Ong Caleidoscópio

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

questão

por que insisti naquela porta
se não havia lá nada
que já não estivesse
fechado

outra tantas mais batalhas
se todas as guerras são a mesma guerra
perdida

ir embora nova terra novo mar
se nenhum navio me leva onde já não tenha
chegado

se a cidade seguirá atrás de mim
com as mesmas ruas que cruzam
as mesmas esquinas

os mesmos subúrbios insensatos
a desembocar nas praças baldias de sempre
por que não há outra terra

outro mar
nem outra casa nem será possível criar
um outro lugar

apenas a velha armadilha
do ideograma chinês
(eu)
?

sábado, 22 de outubro de 2011

Rimbaud era zagueiro de várzea na Vila Manchester

eu sou o pirata
da cara-de-pau
eu vendo sujeitos
à razão social

consumo doses diárias
de autoajuda
o photoshop
da alma

pratico yoga pilates tai chi
maharishi moxabustão
apóio causas perdidas
como a dos ba’hái
e o Curdistão

aprendi com os autoreverses
davida
que maçã prende
mamão solta
branco engorda
preto emagrece
e que a rapadura é doce
mas não é mole
não

(por isso my brother Charles
mesmo sabendo que é abuso
antes de ir
agito e uso)

e eu o barco bêbado
dos bailões do patropi
cabra da peste
a leste
de Bucareste
tive o estalo de Vieira
o insight de Jobs
no Buena Vista Social Club da vida é Wim Wenders
... e aprendenders

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

SENTIDO CONTRÁRIO




















Ele vinha alegre,


ele vinha rindo,
vinha meio grogue,
curtindo o efeito da bebida forte
e sei lá mais do quê.

Ele vinha alegre,
vinha caminhando,

e vinha cantando,

e seguindo a canção.


Vinha bem feliz.

No meio da noite,
porém,
todavia,
vinha o infortúnio
em sentido contrário:

Tá rindo do quê?

Fim da libertè,
da egalitè, e não sei mais o quê.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

a cidade dos vidros


o bulbo branco no teto brilha
um instante e se dissolve
como uma pastilha de sal de frutas
no copo da escuridão


desperto
caindo de guarda-chuva
na zona verde
da manhã


como se mergulhasse numa
floresta
rumo ao imenso
sistema das raízes


ou como se o mar fosse fundo
espelho voltado
para a lonjura do céu
um muro horizontal


o lago de mármore janela
aberta para o centro
da terra
o que é ser rio e correr?


cada pessoa é uma porta
entreaberta
para um mundo
onde há lugar para todos


mariposas loucas de verão
são pequenos telegramas
pálidos
que a noite envia


passeio pela avenida neonazi
skinheads por detrás das nuvens
uma chuva fininha pura
como agulhas de vidro


tudo que está vazio
volta sua face para mim
e murmura não estou vazio
apenas espero


na noite estrelada
dos meninos de rua
o último a dormir
apaga a lua

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

o pintinho amarelinho


            Pois é. Já tive a cor amarelinha, a silhueta roliça e felpuda, o ar carente de bicho de pelúcia que conquista instantaneamente o coração de adultos e crianças. Imagino às vezes que ainda sou uma daquelas bolinhas de vida piante ― como as que vocês ganham em quermesses ou compram nas feiras ―, parecendo uma gema de ovo com pés, asas, olhos e bico.

            Houve um tempo em que eu era um pintinho amarelinho e a minha vida era simples e feliz andando em volta da mamãe com os meus irmãos e irmãs. Naquela época dormíamos todos bem juntos e quentinhos, exaustos de tanto brincar e empanturrados da ração que os ajudantes de Deus jogavam do céu. Sinto muitas saudades da infância, quando havia dias e noites.

            Tá certo, nem tudo foi flores, cansei de tomar na cacunda dos irmãos maiores quando me atirava sobre o farelo de milho que aparecia magicamente no chão. Havia uma ordem nas bicadas, e ela tinha de ser respeitada; os mais velhos nunca esqueciam de me lembrar disso. Apesar, e talvez por causa, das brigas, a hierarquia de então me parecia não só natural como a única possível. Crescer é que tem sido traumático.

            Mas isso foi há muito tempo. Ou não, é difícil lhes dizer exatamente, tenho a memória muito curta, além disso, o meu cérebro de galinha não permite raciocínios longos sem que os meus escassos miolos comecem a doer horrivelmente. Ainda assim, enquanto me tornava um robusto frango de crista vermelha e penas brancas, aprendi algumas coisas por observação. Por exemplo, recolhi sérios indícios de que a Indesejada vai me pegar antes dos vinte dias de idade.

            Os instintos me mantêm sempre alerta para o perigo ancestral que vem de cima na forma de duas grandes asas, porém, o que realmente sucedeu foi que, um belo dia, os alimentadores ― que supus serem anjos! ― entraram no nosso cercado, cataram a mim e aos meus irmãos pelo pescoço, e depois nos jogaram em um caixote escuro cheio de outros jovens aterrorizados berrando por suas mães. Terminava ali a parte feliz das nossas vidas.

            Girando o pescoço, para onde quer que olhe neste galpão superaquecido em que a luz artificial nunca se apaga, vejo a mesma cena estendida ao infinito: milhares e milhares de gaiolas enfileiradas. Em cada cela individual há serragem, um bebedouro, um cocho e uma barra de alumínio a toda a volta da gaiola que impede os desesperados de se machucar contra as grades. Entre uma fileira e outra, no teto, ficam as nórias, trilhos por onde somos transportados suspensos pelas patas.

            Só se entra ou sai daqui de ponta cabeça.

            Não há muita distração neste lugar. Um zumbido, que a princípio não pareceu tão incômodo, tem deixado os meus nervos exaustos; isto, somado à falta de sono e aos hormônios da comida, ofertada constantemente, me faz viver em um estado misto de cansaço, superexcitação e bulimia. Venho sentindo muita necessidade de sexo, o que na minha situação é um problema, pois o órgão sexual fica embutido; como tive as asas cortadas e o bico serrado logo que cheguei, não dá nem para dar uma catucada no bichinho. Como queria ser um marreco nessa hora!

            Um colega da gaiola ao lado, que dizia ter sido levado por engano a um abatedouro quando criança, contou-me sobre as coisas horríveis que lá se passam. Eram histórias tremendas sobre cabeças mergulhadas na água salgada, correntes elétricas paralisantes, sangrias em vivos, eviscerações e medonhas depenadeiras automáticas. Ainda bem que sumiram com ele, aquilo me fazia mal. Dois episódios posteriores, no entanto, acabaram de vez com as minhas convicções.

            Hoje me encontro entregue à amargura: deixei de acreditar que tudo que estou passando faz sentido, que um dia o castigo acaba e estou livre para andar por um amplo terreiro, onde frangas de ancas largas me facilitam a montada e posso finalmente afogar o ganso. Deus se mantém distante deste mundo de pesadelo, e aqueles a quem julgava servos dos Seus desígnios bondosos, vejo agora como demônios cuja língua articulada e violência sem limites me dão calafrios.

            Os galináceos enxergamos muito bem (disso depende a sobrevivência), o que nos dá acesso até aos minúsculos dramas da vida dos insetos. Faz muito tempo, quiçá uns bons três dias, acompanhei de perto as desventuras de uma formiga-macho; chegada a época do acasalamento, e sem acesso às fêmeas, violentou uma operária, cujos órgãos atrofiados impedem a cópula, provocando-lhe a morte em meio a dores atrozes. O alarido provocado pelos meus colegas, atiçando o agressor com furiosos cacarejos, serviu-me de lição sobre a verdadeira natureza das aves.

            Recentemente ocorreu uma alteração na rotina férrea desta penitenciária, talvez um feriado religioso; o fato é que havia menos tratadores e estes apresentavam um comportamento selvagem, distante da indiferença habitual. Os chefes não estavam. O churrasco fedorento que prepararam me embrulhou o estômago, beberam de uma água com cheiro acre e se puseram a rir e a cantar. A certa altura, abriram uma gaiola e arrancaram de lá um frangote recém-chegado, que passaram a torturar por diversão.

            O coitado foi apanhado pelo pescoço e forçado a beber o líquido malcheiroso, depois soltaram a pobre criatura completamente grogue no meio da roda. Chutavam-no de lá para cá a cada vez que se aproximava de um deles. Assisti horrorizado um dos demônios, o que tinha os olhos mais injetados, pegar um cutelo e decepar a cabeça do rapaz. O corpo dele ainda cambaleou alguns passos antes de cair no chão remexendo as patas.

            As gargalhadas daqueles sujeitos não me saem mais da cabeça. Diante disto, o que posso esperar? Mas pensemos pelo lado bom, eventual/raro leitor, você poderá saborear a minha história e a minha carne macia e anabolizada até o fim: desfiada na sopa, assada ou frita, quem sabe até mesmo poderá cravar seus bem tratados dentes no meu coração na ponta de um espetinho. Não guardo ressentimentos, não se pode culpar ninguém por ser o que é; afinal, o problema da vida é o mesmo para todos: sempre haverá por último um enigma impossível de resolver.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Não sou comunista
humanista
socialista
nenhum -ista
que já exista

fecho os olhos
pedindo que o amanhecer
não venha
apenas
a duras
penas

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

um caminho sem chão


entre o poeta e a poesia existem caminhos
tempos
que ele estilhaça para sair de todos
os existentes caminhos

porque este ser tão construído
com poesia
não é da ordem do mapa
da geografia

porque um poeta busca nessa
ausência de lugar
o seu universo
único

em cada estrada que vai
de nada a lugar nenhum
procuro sempre além
do encontrável

escrevo exatamente porque
não sei
que idioma vozes margens ou veredas
me inundarão com a Vida

entrevejo uma nação
encantada
que só pode ser dita pela palavra
por inventar

e a todo poeta compete um percurso
lento e cego
que não se presta a revelações
senão esquecimentos

já que só existe uma verdadeira
ameaça
a invasão de um território único homogêneo
a anular

lá quando
os sonhos
sonham

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

a curadora (parte final)


― Tenta mesmo assim, nada sobre você pode me surpreender ― não era verdade; naquele exato instante, sentia-me, sim, surpreso em descobrir que não estava apaixonado por ela (e nem ela por mim); o que me aguilhoava era curiosidade, com largas doses de gratidão.
― Tudo começou há dois anos, a gente pensando em parar a banda, repensar a carreira, quando um empresário nigeriano, Mr. K, veio falar com a gente depois de uma canja no Studio SP...
― Hmm, daí que veio o link com...
― Deixa eu terminar... o Mr. K passou a lábia em nós, quando vimos, estávamos no avião, fazendo pinga-pinga no continente... só fomos descer no Malaui, daí, mano, horas, dias, dentro de umas lotações sinistras, que eles chamam de candongas, até chegar na tribo do maior xamã africano vivo: Kalelwa Obalasanje. Naquela noite teve festa na cubata, deram umas bebidas fermentadas pra nós, umas paradas bem esquisitas... caímos no baticum da galera, mano, entrei numa gira bem lôca...
― Peraí, cê não tá me dizendo que, então, você virou uma poderosa xamã e, com um único beijo, fez o que dez anos de análise, tarjas-pretas, yoga, vegetarianismo, eletrochoques, magnetoterapia e três tentativas de suicídio, não puderam fazer por mim?...
― Escuta...
― Ah, e detalhe: estou bem há cinco meses seguidos, isso nunca tinha me acontecido desde...
― Você quer me escutar até o fim? Bom, não é que eu tenha virado feiticeira, mas é que fomos iniciados pelo Obalasanje... uma honra muito grande, na verdade, é uma espécie de dom, que o Mr. K detectou na gente logo de cara...
― ... e que, com certeza, não era o dom musical!
― Quer parar? Saco! Olha, eu nem devia estar contando isso para você, pode ser perigoso se você der com a língua nos dentes...
― Certo, estou começando a achar que caí nas garras da máfia africana, aquela que vai desbancar a yakuza e a máfia russa.
― Você ainda brinca? Pois é disso mesmo que se trata, tem uma galera ganhando um bom dinheiro com isso... cara, não fica magoado comigo, de certa forma, foi você que pediu para isso acontecer.
― Isso o quê? Fala logo, até parece que você me roubou um rim...
Uma expressão de puro pavor atravessou o rosto dela por meio segundo; afastou o copo, como se contivesse a bebida mais amarga de todas. ― Você já ouviu falar em ngangas? Não?, pois foi nisso que me transformei, os ngangas são responsáveis por manter o mundo dos mortos e dos vivos em equilíbrio, sem eles, os vivos se esquecem do aqui e agora, e os mortos retornam do além-túmulo...
― Ok, digamos que você trabalhe na portaria da casa do capeta, mas, e daí?
― Daí que, quando nos beijamos, eu suguei a sua alma.
― Cruz-credo, pé de pato, mangalô três vezes! Como assim, sugou a minha alma?! O que é que é isso, tá me zoando, mina?
― Não, não estou. Entenda, isso não pode ser feito com qualquer um, precisa a alma querer sair do corpo... quando bati os olhos em você, senti logo toda a enorme escuridão da sua vida, o sofrimento todo que você carrega, a vontade que havia em você de começar de novo... enfim, você já estava cansado de carregar seu próprio fardo, e resolvi ajudar.
― É mole uma conversa dessas? Simples assim: você vem, faz um boquete espiritual, some no mundo, e estou curado; é perfeito demais, um tratamento gratuito e indolor. Mas, e não vai me fazer falta, digo, andar por aí sem a minha alma velha de guerra? Devo evitar espelhos e a luz do sol, agora que perdi a sombra?
― Deixa de ser bobaldo; fica sussa, dá pra viver perfeitamente sem alma nos dias de hoje, repara em volta: milhões de zumbis indo e voltando do trabalho, comendo, trepando, enchendo o planeta de lixo, se matando uns aos outros... quem repara se mais um ou menos um está meio desligado, vivendo por viver?
― Hmm, não tem mesmo nenhum efeito colateral?...
― Bom, você não vai mais conseguir se apaixonar por ninguém, mas também... já era assim antes, não é? É como se tivessem compactado as tuas emoções num equalizador, nem picos de paixão, nem vales de melancolia, nem expectativas ilusórias, nem amargas decepções; fala a verdade: há muito você sonhava com isso.
― Verdade. Agora, e o que vocês fazem com essas almas roubadas?
― Alto lá, não fui eu que roubei sua alma, foi ela que pediu pra sair... nas turnês, vamos ficando lotados de almas dentro da gente, então, voltamos para o Obalasanje que as retira e depois comercializa; você não imagina o quanto tem de gringo desalmado neste mundo que está disposto a pagar uma bala para poder voltar a sentir alguma coisa. Mesmo que seja sofrimento.
― E se eu quiser ir até lá e recuperara a minha alma?
― Entenda isso, bro, você não é rico e cheio da nota, você é um classe média mal remediado; se tu cai nas mãos dos caras errados nesse meio, fodeu, vai se tornar doador involuntário de órgãos...
― Mas, e você, tá fazendo uma grana nisso, não?
― Tipo, é verdade que sempre quis desenvolver algum dom especial em mim, e o Mr. K me ganhou com esse lero, mas também tenho que pensar no futuro. Você sabe, viver de música neste país...

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

a curadora (parte 2)


Acabei descobrindo um padrão que se repetia nas apresentações do grupo auto-intitulado os curadores: invariavelmente eles tocavam em festivais ou concertos beneficentes, sempre em palcos coletivos; aquela banda meia-boca não segurava um show solo, nem aqui, nem na China. Musicalmente falando, o som do The Healers é uma salada de ritmos, citações, samples e influências que não vai para lugar nenhum em termos artísticos; um pupurri tosqueira que não diz ao que vem. O empresário deles devia ser um Midas, um mago, ou o melhor empresário musical do mundo, para conseguir promover aquela sonzeira cansada.
Estava louco de expectativa para reencontrá-la, mas, ao mesmo tempo, experimentava uma leveza inédita em três décadas de vida: flanava. Vagabundeava a esmo pela cidade, tirava fotos com o celular, refletia, parava de basbaque numa roda de taxistas e comentava qualquer coisa; estava tomado pelo vírus da observação, que é primo do da vadiagem. Saía bundando por aí de manhã, de tarde, à noite, acompanhava a coleta do lixo, os consertos da rede de TV a cabo, a entrega dos jornais, os congestionamentos, as discussões dos mendigos.
Foram meses de turnê mundial dos curandeiros do afrobeat, Escandinávia, Europa Oriental, Sudeste Asiático, então, finalmente, um show único no Brasil. Para meu azar, Salvador. Como atualmente só trabalho de frila, não foi problema enforcar a sexta-feira e me jogar na ferveção do circuito Barra-Ondina. Estava uma muvuca ensandecida em torno do palco, constatei in loco que a animação do calendário de festas em Salvador é mesmo do balacobaco. Baiano não nasce, estréia.
Lá pelas tantas, saquei que ela já tinha me visto, mas brincava de esconde-esconde; só que não estava disposto a desistir tão fácil da minha vocalista, cacei-a com o fanatismo de um cão perdigueiro, um seguidor de Xuxa dos tempos modernos. Até que praticamente esbarramos um no outro numa curva do backstage. Gata encurralada, não havia para onde correr.
― Oi...
― Oi. Então, cara, desta vez você gostou?
― Bem, médio... mas eu preciso, quer dizer, dá pra gente sair fora e conversar noutro lugar?
Saímos dali, fomos para um quiosque onde pedi duas margheritas. Demorou um tempão para trazerem as bebidas, mas agora já tinha perdido toda a pressa. Ela me pareceu mais relax, aparentemente, tinha parado de fumar.
― Hãm, o que é que você fez comigo?
― Não sei do que é que você está falando...
― Sabe sim, desenrola a fita aí, vai.
― Você que pediu, não vai acreditar mesmo...

domingo, 2 de outubro de 2011

a curadora (parte 1)


O inferno dentro de mim durou poucos instantes, não mais que uns dois ou três minutos, mas, desde aquela tarde, voltaria de tempos em tempos, em períodos cada vez mais longos e eternos. Provavelmente cinco horas ou mais. A proximidade da noite sempre me trouxe uma espécie de melancolia feliz; tenho doze anos, estou deitado de costas no tapete da sala a olhar para o lustre, esparramado no chão da minha casa. Na parede uma foto antiga, daquelas coloridas à mão, retratando meus avós, que pareciam prestar atenção em todos os móveis e sombras e silêncios da sala e também olhar para mim.
Pela primeira vez me pergunto quem são eles, o que há dentro do rosto deles, de quem eu carrego semelhanças e a distância que vai dos vivos aos mortos; o que faz com que eles sejam eles e não eu? Meus pais saíram para visitar a minha tia que tinha sido operada, era um domingo e podia me entregar à vadiagem. Era bom demais ficar só e somente ser. Em seguida fecho os olhos e penso no escuro quem sou eu e o que faz com que eu seja eu e não aqueles outros, que também são eu, mas que já não são. Sou então atingido pelo susto assombroso, a consciência de que também um dia serei uma foto cafona na parede, um inseto preso pelo alfinete.

― Você que tava cantando naquela banda... hã, como é que chama, The Wailers? ― fui para aquela balada na fé, no flyer vinha a programação da noite temática: Afrobeat. E ainda trombo com a vocalista de uma das bandas no fumódromo da casa noturna, bem do meu lado.
― Eu mesma. E aí, gostou?
― Mais ou menos. A sua voz, é estranho, parece, tipo, várias vozes diferentes lutando entre si... aí, na boa, você não devia ter feito aquele cover da Amy...
― Hmm, é... o lance da voz sempre me acontece nesta fase do ciclo... Ei, relaxa, cara, não é esse ciclo que você tá pensando... sabe o que é?, tenho a mesma idade que ela e...
― Desculpa, eu aqui só dando pitaco...
― Que nada, você é fofo, sincero.
― Bom , não vai cair na maldição dos cantores de vinte e sete... sabe?, me preocupo com o Justin Bieber, ainda vamos ter que agüentar por mais dez anos!...
― Hahaha, boa, mas o pior é mais vinte anos de Restart...
Caímos na risada. Dali a pouco fui buscar umas cervas pra nós, a mina fumava um cigarro atrás do outro. Não desgrudamos mais o resto da noite, o papo fluía fácil com se nos conhecêssemos há mile ano. Lá pelas tantas, bebaços, nos pegamos num puta amasso. E como ela beijava! Fiquei ligadão, mas não deu pra arrastá-la dali para onde quer que fosse, ela precisava ir com os músicos, viajavam de manhã bem cedo.

Em retrospecto, percebo que fiquei doente desde então; como se tivesse me distraído de mim, ou do que eu pudesse ser, e até do sentido mais trivial da vida. Sofri diversos surtos depressivos depois daquele ‘aviso’ aos doze anos, cheguei às vezes a pensar que seria sempre assim, com aquela opressão no peito, aquele demônio do meio dia a obscurecer o meu destino. Foi como se houvesse perdido a familiaridade com as coisas mais comuns que faziam parte do meu cotidiano como comer um doce, jogar bola ou roubar frutas do terreno do vizinho ― hoje digo que me assustei com o susto de existir e, periodicamente, escorrego da existência de fato para um espaço onde eu me estranho e não me reconheço.
Quando conheci a cantora estava numa destas crises, mas, estranhamente, não fiquei trancado em casa desta vez, saía todas as noites. Balada de segunda a segunda. Passei a seguir os passos da banda The Healers pelo twitter; uma improvável turnê pela África: Luanda, Johanesburgo, Maputo, Nairóbi, Brazzaville, Dakar, Kinshasa e... Mogadíscio! Uma zona de guerra, um lugar em que até os marines tomam suadouro... Não fazia o menor sentido; de mais a mais, uma bandinha mequetrefe daquelas, como é que fazia um sucesso internacional de dar inveja em gente grande?
O que motivou a minha súbita conversão em groupie é que constituía para mim o maior mistério e a maior bênção: depois daquele beijo, não sentia mais nada. Acreditei então que a Era Glacial da Alma derretera. Estava me sentindo como nunca imaginei que fosse possível desde aquele domingo perdido na infância, que parecia finalmente ter acabado. Precisava encontrar com ela de novo de qualquer jeito.

HORAS VAGAS















Horas vagas,
horas longas,
horas vagas e sem importância,
longas horas da gente - outro tempo.

No terreiro.

Cantam chatas
e agudas
e ocultas,
milhões e milhões de cigarras.

No ramo da acácia balança um pardal.

Dois pardais,
três pardais, mil pardais!

O raio de sol
fura a moita de antúrios
e avencas
e inhames,
e bate no caco de vidro, reflete.

E brilha. Rebrilha. Reflete.

No caco de vidro,
na gota de chuva,
na bacia de roupa de molho,
na pocinha escura de água da chuva.

Longas horas,
horas longas,
olhando coisas,
sentindo coisas,
sem pensar, tão somente deixando existir.

E os pardais, mais pardais, mais pardais...

sábado, 1 de outubro de 2011

o dia que ia chegou

todo amor procura
dos pés ao negror
profundo

triste canta
o juriti
delícias atravessam

o amor tudo move
montanhas aluviões teu dorso
assomam

caminhos abertos a bala
do facínora
os fracos e fortes mata

rios abismam o corpo amado
na encosta do tempo formam
cascata

junto deles
nasci

todo louco salva mundos
Multiversos
com sua loucura

vai chegar a hora
em que tudo que te resta
serão esquecidas

lembranças que por engano
te mantêm
ainda