domingo, 30 de março de 2014

O seqüestro de Alda Espinosa (#3)


Tomada por um branco total radiante, na posse precária de faculdades mentais em pleno apagão, dirigiu-se a ele caminhando firme para disfarçar o desconcerto. Anna fazia as desnecessárias apresentações quando aconteceu a bizarrice: uma moça que estava no saguão surtou e se atirou aos pés do Caetano, beijando-os, banhada em lágrimas. Foi aquele constrange geral, teoricamente, ali não devia ter ‘bicos’. Ninguém sabia de onde ela tinha vindo. Alda agradeceu ao Pai do Céu que alguém pagou o mico, porque a moça fez exatamente o que ela mesma esteve prestes a fazer.
            ― Caetano... Caetano...
            ― Fale, Alda, que foi que te deu?
            ― É que, eu tô aqui falando merda sem parar, tô tendo um ataque de falação e não consigo conversar com você.
            ― Normal, isso também me aconteceu quando entrevistei o Mick Jaegger.
            ― Tudo que eu não queria é que você me visse como a velha louca e esquisita que sou... e agora me pego tagarelando sem parar do canteiro de ervas de poder lá da minha casa!
            ― Olhe, mais importante do que tudo isso é a fruição da imensa grandeza de sua música, suas parcerias, a generosidade deste show... a grande beleza é coisa que paira acima da guerra de idéias e egos.
            ― Ah, como gostaria que o Beleléu estivesse aqui...
            ― Hum, o Nego Dito, é verdade. Personalidade artística rebelde, sempre me impressionou esse modelo. O samba, por intermédio de seus gênios, é a afirmação de um poder de outra natureza.
            ― Disseram que você não vinha, que tava viajando...
            ― Estava sim, cheguei agorinha. Sempre que dá, passo na Bahia as duas festas do 2 de fevereiro: o presente de Iemanjá no Rio Vermelho, e o encerramento da festa da Purificação em Santo Amaro. Minha casa é no Rio Vermelho, conhece não?, da varanda dá para ver os barcos que se arrumam em frente à igreja de Santana e partem para o local em alto-mar onde o presente será jogado, não sem antes virem margeando a costa para virarem em ângulo reto em direção ao horizonte; digo vêm, porque é justamente à frente da minha varanda que eles mudam de rumo. Antigamente eram sobretudo velas que coalhavam o mar, hoje são lanchas e escunas, todas brancas, a exceção sendo a grande embarcação cinzenta da Capitania dos Portos. Fazendo espuma e deixando rastro, todas seguem o saveirinho que leva o presente. A igreja da Purificação em Santo Amaro é uma jóia barroca, adoro os azulejos, o teto pintado, as pessoas religiosas do Recôncavo. Mas fico intoxicado de beleza é na praça: o parque de diversões cheio de crianças, o chafariz apinhado de grupos de samba de roda, de burrinha, de bumba-meu-boi, sobretudo as pessoas conversando nos bancos, nos passeios, nas alamedas. Minha gente.
            ― Caê do céu, você fala a língua dos anjos, abre a boca e as palavras vêm direitinho cair no lugar certo. Isso é tão difícil, criatura!
            ― Deixe de bestagem, menina, nem tudo que reluz é puro, nem tudo que é ouro brilha, mas tudo que brilha pode cegar.
            ― Viu só? Já tenho vontade de anotar o que cê disse e fazer uma música.
            ― Então, quando alguém já tem esse privilégio de tocar um instrumento, vai querer mais o quê? Acho que você pede da arte o que ela não pode lhe dar, considere, a poesia se paga com a vida, e nada mais. Glória, aclamação, reconhecimento, são bilhetes da loteria dos trouxas, já vivi demais para acreditar em falsos brilhantes.
            ― Ai, mas será que não existe alguma outra coisa? Vou ficar, assim, sempre de alma arregaçada, com os nervos feito fio desencapado, sempre o mesmo coração cata-vento girando no vendaval?
            ― A beleza é um país estrangeiro, no qual reconhecemos, tão logo o visitamos pela primeira vez, a pátria perdida de onde nunca deveríamos ter saído. Isto para mim é a Bahia, princípio e fim de tudo que faço.
            ― Sim, você tem a Bahia, sempre vai ter. Mas, e eu, que saí novinha do Mato Grosso? Não tenho pra onde voltar, sou urbana, confusa como a vida que levo.
            ― O importante é saber se situar dentro de uma linha evolutiva. Como eu: o tropicalismo é a conseqüência necessária da música que vem de Caymmi e passa por João Gilberto, na minha imodesta opinião, é o próprio processo de internacionalização da música brasileira. Sossegue, você também tem seu lugar num certo desenvolvimento destas linhas de força.
            ― É tão duro poetar com os boletos atrasados, os cachês de fome, a casa cheia de filhos, os perhaps da vidinha.
            ― Esqueça, se você não tem o Recôncavo, tem São Paulo: prédios feios e crack, violência e vulgaridade. Sua única amiga é a música. Um adulto criativo é uma criança que sobreviveu. Não devem ser muitas as que conseguem, a julgar pelo escasso número de adultos no mundo. A vida não é para qualquer um (a arte sim), ela é um rio largo, informe, e sempre pode acontecer de nos tornarmos quem mais temíamos.
            ― Só uma última coisinha, sei que cê não pode ficar muito, como é que você faz isso?
            ― Isso, o quê?
            ― Esse truque: seus pés não tocam o chão, Caetano.
            ― Ah, é uma coisa que aprendi há muito tempo, vivo a dois centímetros do chão real das coisas. Levitação discreta. Permite que eu acompanhe a topografia da realidade, mas com um certo descolamento crítico, um surf ontológico. Ninguém percebe, aposto com você que a moça que acabou de beijar meus pés não se ligou.


as melhores coisas do mundo não são coisas




sonho de desejo
objeto de consumo
nem tudo que reluz
é puro
nem tudo que é ouro
brilha
mas tudo que brilha
ofusca



sábado, 29 de março de 2014

o rio ávido da vida



e se as pontes fossem abraços
enredo de cipós e rama
e seiva
suspensos cabos pilastras
tomadas de trepadeiras mato
e mais nada?

e se as avenidas fossem risíveis
rios de capim santo
margaridas leitos transbordando
tulipas
a rebeldia líquida
da flor?

e se os edifícios fossem gigantes
com folhas e galhos
assustados metros quadrados
playgrounds no asfalto amarelo
ou jardins?

e se nós
a bolha a moda
a média o urgente
dólar e a bolsa
explodíssemos em sinfonias
de trânsito
templo ao tempo
perdido?

quarta-feira, 26 de março de 2014

UM CALENDÁRIO DOS MORTOS
















Lá fora era domingo, e o mundo resplandecia de sol e ingênua alegria.
As pessoas davam mil voltas na praça, ausentes e distraídas, feito peixes num aquário. Uns liam o jornal, outros falavam ao telefone, ninguém se olhava nos olhos.  Povo besta!

Sentada na beira da cama,  arredou uma mecha de cabelo da testa,  pensando noutro domingo, outro quarto e outra vida. Bem diferente daquela, vida com gosto de vida, vida  com cheiro de vida.

Na beira da cama, meditou sobre o quanto já tinha navegado através dos igarapés e dos igapós do amor, e nas muitas vezes que já tinha se perdido e corrigido a rota. Muitas vezes. Muitas vezes...

Na beira da cama, pensou que nunca tinha vivido um Amor, com "A" maiúsculo. Um amor grande e escandaloso, daqueles que nunca se acabam ou que, quando acabam, costumam deixar cicatrizes, patrimônio, bens imóveis, móveis e semoventes, descendência, herdeiros necessários e legatários...

Pensou, na beira da cama,  que sempre vivera somente aquele amor efêmero e indecente de escambo, que nada deixa senão a marca ensebadinha de digitais na borda da alma.

Lembrou  que tinha pertencido, pelo menos em tese, a vários homens. Dos quais, todos mortos: era, então, a ex- amante dos mortos. Mortos recentes e mortos antigos, que quando muito ficam vivos na lembrança dos vivos, assombrando as esquinas vazias da memória e entristecendo os domingos, sem querer ir embora de vez.

Da beira da cama, olhou a folhinha amarelada na parede amarelada, que dizia que já era domingo, mas ela sabia que precisava ser paciente, precisava saber esperar, pois os mortos sempre se atrasam .



foto: "Mulher Nua" - Carybé

(CASOS LIGEIROS 17/01/2009)

sábado, 22 de março de 2014

O seqüestro de Alda Espinosa (#2)




            Noite de lançamento do novo disco, a sala de espetáculos lotada, alto verão no Rio de Janeiro. Na platéia, políticos, artistas, amigos e personalidades trocam abraços, sorrisos, posam para selfies. Se a longa carreira de Alda Espinosa não lhe valera sucesso popular nem estabilidade financeira, ficava patente que ao menos obtivera o reconhecimento de uma geração: a apoteose merecida e tardia de uma artista completa. Todos ali tinham vindo testemunhar seu carinho à compositora de tantas canções fundamentais da trilha sonora de suas vidas.
            Ela falava diretamente ao tempo, e como Nana Caymmi, podia responder que se ele aprisiona, eu liberto, que o tempo adormece as paixões, eu desperto. Alda podia até esquecer, mas já não seria esquecida. Pela primeira vez ela tinha uma produtora ninja, Anna negociara tudo: captação de recursos, gravação, mixagem, shows, entrevistas para rádio e televisão, notas em colunas especializadas, canções gravadas por artistas consagrados, etc.. Anna, uma dessas amigas que pareciam ter nascido no seu jardim, um ser elemental, poesia e pragmatismo; Alda e Anna, uma parceria genial e óbvia.
            ― Um, dois... um, dois, três...
            A bateria e o baixo entraram, logo a seguir, as guitarras. A voz esperava na garganta da cantora, pausada, traindo a vacilação de não ser nada, nem sequer música, apenas um esforço de som. Por um momento deu a impressão de uma máquina posta em marcha após milênios de inatividade, como se atravessasse toda a história para ser ouvida. Para fazer música não são necessários instrumentos, intérpretes, partituras, teoria, teatro, público... a única coisa realmente necessária é a música. O auditório captou o mistério de pronto: era uma oferenda, um regalo de arte e uma mensagem. Sobretudo uma mensagem. Não se tratava do pop redondinho do rádio, havia ali melodias sofisticadas, pouco óbvias, toda uma região de ritmos distante do muzak dos elevadores e pegpagues da vida. A harmonia parecia combater a si mesma, num afã insensato de exprimir-se, de dizer coisas estranhas, nunca ditas antes, e essa vontade se disseminava além do razoável. Todo mundo sabe que há coisas que não podem ser ditas com palavras, o que ninguém sabe é quais coisas são essas. Havia invenção e risco nas divisões, aparições e sumiços na clara obscuridade do palco, os amplificadores funcionavam como a caixa preta surrealista: de um lado, entrava o inesperado, do outro, surgia qualquer coisa. As frases se repetiam segundo a casualidade do metro, cadências e células rítmicas avançavam independentes, criando séries abertas como as coleções de selos. Excessivo esforço se despendia para lograr um efeito minúsculo, o menor e mais significativo de todos: a comunicação. As diversas unidades e medidas se recuperavam no artístico do gesto, no meio da levada dançante pressentia-se uma dinâmica de intenções, que ora se economizavam voltando-se sobre si próprias, ora se transmutavam em pura emissão de energia. A forma que tomava este mecanismo de excesso-carência autoconstituía sua expressão vital, mas tudo isto ainda era apenas preliminar à canção, a concertista, de olhos fechados, tateava delicadamente os contornos de um continente desconhecido.
            O público aplaudiu de pé por dez minutos ao final do segundo bis.
            Alda ainda se recuperava no camarim quando Anna confirmou que ele tinha vindo. Aquele momento de se livrar da pele que usava no palco parecia-lhe o despertar de um sono de pedra; sempre se perguntava, enquanto reassumia os pensamentos, a postura e a voz da sua persona comum, como é que se acaba por voltar à mesma identidade entre tantas possíveis.
            Entrou em choque, lá fora, em pessoa, aguardava Caetano Veloso.

            

quarta-feira, 19 de março de 2014

O seqüestro de Alda Espinosa (#1)


            Por mais que eu tenha ensaiado com os músicos, ficado duas, até três horas, na passagem do som, no ajuste dos retornos, testando cabos e caixas, combinando as marcações com o hold, ainda estranho esse momento de vácuo: as conversas cessam, as luzes baixam, chega a hora de entrar em cena. A hora da estrela.
            Aí não contam a tarimba, os anos de estrada, aí o que vale é ter estômago, o ponto exato que concentra todo o espaço à minha volta. Apenas um aperto naquele lugar indeciso onde termina o peito e começa a barriga, no entanto, a partir deste nó de tripas vem a alma até o meu gogó e faz o cântaro cantar.
            Quando piso no palco, somem os desvãos, os enganos, todo o medo de ser ― cada canção é um porto, uma porta, um parto, e uma partida. Tenho de me esfoliar, deixar de ouvir a mim mesma, simplesmente ignorar e fluir, voltar ao clímax do começo do mundo. As metamorfoses da vida são incontáveis, sequer vale a pena tentar entendê-las... Há que entrar.
Fixo-me num olhar, numa pessoa. E basta um sorriso para ficar gravado a todo sempre. Basta um anônimo escondido por óculos de hastes de acetato, eis que o demônio da imagem prega na minha memória. Sofro de um tipo de memória, ao que me consta, afeita a se apegar livremente.
            Encaro ligeiramente vesga o microfone, respiro, mergulho em queda livre para o alto, na direção do túnel prateado que despejam os holofotes e canhões de luz. Uma viagem desde o início da minha carreira até o agora, que é o presente, mas o presente reconstruído inteiramente no seu pretérito explicado, algo assim como o tempo verbal do tempo.
            A verdade está em nós sem ser dita, a dor não pensa. Muitas vezes, culpa-se o próximo pela infelicidade que nós mesmos trouxemos para dentro de casa; freqüentemente, inserimos a própria história nas entrelinhas do que outros escreveram. Fantasmagorias truncam o radar da realidade: ouvimos o que não está na partitura, lemos além do que foi escrito, projetamos frustrações, desejos, e esperanças na tela de smartphones. As brigas com ela, cada vez mais feias, agora acontecem todos os dias.
            ― A minha vontade era rasgar a sua bíblia e o seu véu de beata em mil pedacinhos!
            ― Já não é o bastante interromper os meus salmos com Darwin, Dawkins, pontos de macumba e gargalhadas forçadas?
            ― Será que é tão difícil perceber o puro sadismo da sua atitude?
            ― E por quê? Só porque ouso querer atingir a paz em meio ao caos? Parece que isso te incomoda demais...
            ―Me pergunto, vez e sempre, como isso pode ser: tragédia em cima de tragédia, e você ali, ajoelhada, rezando.
            ― Ninguém se importa, porra! Todos estão inseguros e tudo sussa, o mundo acontecendo e ninguém se ligando no movimento. Eu tenho fé por nós duas.
            ― Na época, acreditei que a sua fé vinha da persistência, e através dela, a sua persistência, voltei aos bancos de madeira, às novenas, aos rituais.
            ― Você nem sabia ao certo o que estava fazendo, mas voltou. Voltamos...
            ― Não é isso, não, é justo o contrário... Como é que você, musicista, cantora, compositora, pode ficar tão apegada àquilo que não funciona mais?
            ― É esse seu trabalho solo,. está lhe subindo à cabeça, a sua nova melhor amiga pra sempre encheu você de sonhos loucos...
            ― Que bom que ainda posso sonhar loucamente! Talvez seja porque estou viva, ao contrário de você, meu bem.
            ― Ontem, meu bem, contei até cem, hoje já nem sei... Escuta, o nome vai ser esse mesmo?...
            ― Sim. É disso que se trata: o que vim fazer aqui.
            Acontece que nunca mais voltamos às boas, aos bons e velhos tempos, a relação estava bastante desgastada. Claro, “relação desgastada” é um dos mais sórdidos clichês de fim de caso, no game over do amor nem sempre primamos pela originalidade ― e, menos ainda, pela suavidade ou clareza de propósitos.
            Neste último quesito, porém, estou tranqüila sobre o que devo fazer: vou seqüestrá-la e dar um fim nela, a outra, a mais velha das duas. Estou cada vez mais certa de que só assim vou ter sossego.