quarta-feira, 28 de agosto de 2013

die Präparatoren (parte 4)


Quando menina, tinha medo do monstro que vivia embaixo da cama.
Era o medo em estado bruto, sem cara, sem nome, sem nenhuma razão. Não imaginava como ele seria, nem o que poderia fazer comigo. Sabia apenas que bastava nascer o dia para o terror ir embora.
Agora sei mais.
Na verdade, são muitos os monstros, e assisto às barbaridades que fazem com o meu corpo como se tudo estivesse acontecendo em outra pessoa.
Hoje sou uma mulher com medo de perder o seu homem. Por isso faço qualquer coisa que me manda fazer, por isso estou na garupa da moto dele indo para um motel imundo onde vinte criaturas medonhas vão passar a noite comigo.
Agora, o dia vem e o terror não vai embora.
― Você não gosta de mim, Fidencio. Não de verdade.
― Por quê?
― Se gostasse mesmo de mim, não me dividia com outros homens...
― Quantas vezes vamos voltar a esse assunto? Nós vamos ganhar um bom dinheiro com os avá yvýpe, e daí a gente vai viver em outro lugar melhor. Nadi, não podemos desistir agora, estamos quase conseguindo juntar o preço da liberdade. Liberdade, Nadi, a melhor coisa do mundo!
Fidencio quer morar em Copacabana, bem junto à praia. Lá não precisaremos lembrar, porque o Brasil é um lugar feliz e sem passado; com dinheiro, viveremos como flechas, sempre em frente, rumo à felicidade e ao esquecimento. Porque a dor é um rio de má água correndo para trás.
― Não sei. Eles dão medo, não temem Deus nem Tupã, vivem na escuridão do inferno, ninguém sabe direito onde. Achava que era tudo mentira do povo, histórias de Teju Jaguá, mas são de verdade. Não gosto deles, quem conhece tem nojo. Trazem a sombra na alma, fazem tudo ao contrário, igual Japeusá, pra confundir as pessoas e tirar vantagem delas.
― Eles trazem é o bolso cheio, isso sim. Chegamos.
Descemos. Ele acende um cigarro, vai até a portaria e fala com alguém atrás de um guichê. Volta com uma chave na mão.
Nunca entra, me deixa sempre na porta dos muquifos e fica lá, vigiando. Talvez não suporte ver o que se passa lá dentro. Talvez não consiga imaginar que aquilo está acontecendo com outra pessoa.
― Quarto quinze, segundo corredor.
― Você não pode vir comigo, só uma vez?...
― Escuta, esquece essas caiporices de índio, nós tamo nessa pra se dar bem. Sair deste buraco. Te espero aqui, tá bom?
A estrada do perdão é asfaltada com os cacos das dores passadas. Nas poucas vezes quando sonho, estou andando num chão lodoso como um passado, e todos os habitantes do manicômio sem cor da minha vida entoam uma canção de fantasmas, uma melodia monótona de vergonha e culpa.
― Ah, Mädchen, nós a aguardávamos ansiosos... por favor, entre.
Os homenzinhos sempre começam com uma conversa gentil de gente educada, depois, vão ficando agitados, violentos, e só falam naquela língua chiada e venenosa deles. É como se esquecessem de mim, de tão ocupados comigo. Mas eu não esqueço dos pássaros mortos na minha mochila de escola, nem do dia em que o cachorro da casa apareceu degolado.
― Isso, tire a roupa toda, mostre esse seu corpo maravilhoso, nossos convidados querem que desfile antes de fazer os lances...
Estavam muito excitados e mais agressivos do que o costume. Fiz sexo oral em vários deles, alguns me introduziam aparelhos. Até que entendi: era o leilão de uma escrava sexual. Algum demônio ia me comprar e levar pras cavernas!
Fiquei bastante machucada. Pedi a eles a única coisa que me dá conforto após horas de estupro: uma barra de sabão pra me lavar. Na parte interna da embalagem do sabonete escrevi usando o lápis da maquiagem: “Seqüestrada, vão me levar Serra de Maracayú”.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

die Präparatoren (parte 3)



A cabana era feita de grandes toras, sumariamente desbastadas e unidas nas extremidades por encaixes entalhados, sem a utilização de pregos. Tinha dimensões pequenas, resumindo-se a duas peças: o dormitório e a sala de jantar, que também fazia as vezes de cozinha, sala de estar e lareira. Lá fora, via-se um cercadinho para banhos, o abrigo da lenha e a fossa. O cômodo maior, onde conversavam, assentava diretamente no chão; o teto ficava oculto por um forro de ripas de madeira, e as frestas entre os troncos que formava as paredes estavam vedadas com argila, de modo a proporcionar um isolamento total. Uma porta de madeira, duas janelas com meias cortinas de renda, e a abertura no telhado para a chaminé, tais eram os meios de aeração e iluminação natural. O mobiliário escasso compunha-se de alguns bancos rústicos em frente à lareira, a mesa de refeições com quatro cadeiras, um forno a lenha, panelas e talheres, além de dois lampiões a querosene pendurados na parede.
Silberblick estava sentado numa cadeira austríaca de palhinha. O silêncio não se deixava quebrar. Fidencio, sentado de frente para o velho, se pegou pensando em como seria fácil matar aquele homem raquítico apenas com a força das mãos. O serzinho balançava suavemente como se perdido em divagações longínquas, subitamente, esticou para diante o pescoço onde os músculos se destacavam na pele apergaminhada, encarando-o. O gesto pareceu deformar todo o espaço ao redor, criando um túnel diretamente ligado aos pensamentos do interlocutor.
― Como se chamava ela mesmo?
― Ela, quem?
― A moça. A que nos causou aquela encrenca toda em Ycuamandiyú...
― Nadi, Nadi Kaiaguá.
― Uma pena o que aconteceu, uma moça tão nova... Teria, o quê, uns dezesseis anos?...
― Quatorze. Mas o senhor não me chamou aqui pra falarmos do passado, né?
― Entendo. O assunto ainda lhe incomoda... pra nós também envolveu considerável risco, quase arruína nossa atuação, hã, sigilosa. Não é boa política deixar os prazeres prejudicarem os negócios, nem vice versa. Você, afinal, teve os maiores constrangimentos, fugiu do país por uns bons anos, não foi? Cinco anos nos Estados Unidos, uma fase difícil...
― Não posso reclamar. Nossas relações têm sido bastante compensadoras, o senhor sabe, desfruto de uma situação muito acima do que jamais imaginei ― Fidencio se esforçava por desviar a conversa daquele episódio antigo de duas décadas.
― Muito bom, meu caro, satisfação e comércio devem andar de mãos dadas. Assim como a guerra e os negócios. Veja, há tantas maneiras de perder uma guerra quanto de ganhá-la, e, no entanto, nós perdemos ganhando a última delas.
― Não sei se estou seguindo o seu raciocínio...
― Muito simples: o Terceiro Reich perdeu a guerra para os americanos e os russos. E o que eles fizeram? Trataram de impor suas regras econômicas, seu poderio militar e sua cultura ao mundo. Exatamente o que teríamos feito. Perceba a singela grandeza do feito, as nossas doutrinas triunfaram sorrateiramente: a idéia de raça dominante sobreviveu na de nação hegemônica, e as técnicas de propaganda que garantem a dominação das elites e o controle das massas adquiriram uma importância maior do que em qualquer outra época histórica. Estetizamos a vida, Fidencio, vencemos. Só não se pode anunciar isto em alto e bom som.
― Herr Silberblick está dizendo que ganharam a batalha ideológica?...
― Estou dizendo mais: estou dizendo que essa é a única batalha que não se pode perder, o privilégio de atribuir significados. Vivendo aglomerados em grandes números, que outra coisa esperar dos humanos senão micro ou macro fascismos? Olhe à sua volta: você vive semi-absorvido em redes virtuais repartidas em comunidade altamente hierarquizadas. As idéias que defendo se espalharam como vírus, e os vírus não podem ser derrotados porque se infiltram nos DNAs alheios, se replicam, se transmitem adiante, se inscrevem no código, embaralhando as cartas do devir. Nossa Kultur antecipou tudo que temos hoje, ela é a grama no canteiro de flores do Ocidente, foi a primeira a iluminar o lado escuro do humanismo ao aprimorar sua tecnologia social mais primitiva: o controle pelo medo/desejo. Transformamos o mal numa commodity para as multidões.
Desabotoou o casaco, deixando à mostra uma submetralhadora presa ao ombro por uma correia, tirou do bolso interno um objeto. Depositou-o na mesa, era um aparelho de som a pilha. Ligou o aparelho, o chalé foi preenchido por música sinfônica. Saboreou a música por um tempo antes de voltar a falar.
― Bernhard e Elizabeth Förster se decidiram pelo Paraguai há mais de cento e vinte anos, quando fundaram a colônia Nueva Germania. Que honra para o seu país, meu amigo, servir de berço para o Novo Homem! O primeiro experimento eugênico, uma comunidade de quatorze famílias puramente alemãs mudou-se para em San Pedro em fevereiro de 1887. Após a falência do nosso amado patrono, simulamos o seu suicídio e passamos para a clandestinidade, que, no nosso caso, implicou viver abaixo da terra em galerias subterrâneas, longe de um mundo que ainda não estava preparado. Depois de 1945, naturalmente, fomos o destino preferencial de muitos oficiais e dirigentes nazistas... um motivo extra para nos mantermos atuantes, mas fora do radar.
― Então é por isso que o seu povo tem esse aspecto... diferente?
― É. A falta de sol deformou-nos o corpo, porém, não alterou nosso espírito. Me diga, esta música o agrada?
― Sim, é bonita, e parece importante...
― A terceira sinfonia de Mahler. Um judeuzinho impertinente, como ele mesmo disse, três vezes apátrida: natural da Boêmia na Áustria, austríaco na Alemanha, judeu no mundo inteiro. Em toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado; não poderia definir melhor esse povo infecto! E por que você acha que estou escutando essa música degenerada que, em diversos momentos, não se prende a tom algum?
― Não faço idéia.
― Simples, caro rapaz, aberrações como esta serviram de arauto para a decadência, o afastamento da disciplina tradicional, o desencadear da besta nas artes e no ser humano. Ouça agora isto... ― o alemão acionou os botões do aparelho de som, mudando para uma música terrível, assustadora e irregular como um tiroteio.
― Hmm, dessa eu não gosto! Parecem instrumentos tocados por macacos.
― Hahaha! Excelente observação. Você está ouvindo o Quarteto para o Fim dos Tempos, uma obra composta no campo de concentração de Görlitz por outro desses quasímodos que tanto se esforçaram por destruir a beleza e a harmonia no mundo. No frio glacial da Silésia, inverno de 1941, milhares de prisioneiros se juntaram aos oficiais e soldados alemães para ouvir quatro virtuoses tocando um piano desafinado, um violoncelo sem uma corda, um violino e uma clarineta. E sabe por que estavam lá meus compatriotas? Porque se tratava de música, porque a música faz ressoar fundo o dionisíaco instinto vital, o espírito trágico da vida!
Fidencio se deu conta de que também ele era um preparador do Apocalipse, também ele ouvia as palavras do anjo como um leão que ruge: “Não haverá mais tempo, mas no dia em que soar a trombeta do sétimo anjo se cumprirá o mistério de Deus”. Também ele era uma avá yvýpe, tinha se tornado um deles.


domingo, 18 de agosto de 2013

die Präparatoren (parte 2)


A garçonete segue os meus movimentos com cara de nojo e pena e descaso. Está cansada, é gorda e já desistiu.
Engulo o café. No tampo da mesa e no encosto da cadeira dobrável a ferrugem vai apagando o nome da cerveja Polar. Pingos do café acumulado embaixo da xícara salpicam a minha camiseta de manchas marrons.
Suspiro aliviada.
A nova pessoa que estou me tornando é fissurada em café, e ainda não tinha tomado nenhum até àquela hora. Acendo um cigarro sem me importar com a opinião da garçonete.
Incrível como essa outra que apareceu faz coisas que eu detestava poucos meses atrás. Café e cerveja estão no topo da lista, mentir para os meus pais também.
A fumaça do cigarro irrita meus olhos. O bar de beira de estrada toca música brasileira.
Lá fora cai uma chuva indecisa, os carros sacolejam na rua enlameada.
O pior foi descobrir que já não consigo viver sem a pessoa que me faz sofrer. Penso em morrer com a mesma freqüência que tomo cafés, cervejas e fumo cigarros Mustang. Todos vícios que peguei dele.
Se o meu pai não andasse sempre tão ocupado bebendo, e a minha mãe não estivesse sempre com um filho na fralda e outro no peito, talvez tivessem percebido que eu já fui.
Bato a cinza do cigarro na direção da linha que separa o chão molhado do seco. Os pequenos rolos de cinza se desmancham sob o bombardeio impiedoso das gotas da chuva.
Mas pode ser que as coisas sejam assim mesmo, e os pais só estão esperando que eu vá embora, sofrer com o meu próprio marido bêbado. Embarrigar, engordar, se entediar, como a mulher atrás do balcão.
Ela espanta as moscas com o pano encardido que leva pendurado no ombro.
Ele não chega, não ouço o barulho da moto vermelha chegando na chuva. Chega cada vez mais atrasado, cheio de pressa, coisas importantes pra fazer em outro lugar. Então me dou conta de que estou ficando igual a todas as mulheres, minha mãe, a professora, a garçonete, a loira do cartaz na parede descascada. Esperando, esperando, com a paciência das árvores, a teimosia das montanhas, a eternidade das planícies do céu
Quando o conheci era só um garoto mais velho do colégio, um pouco vesgo, a grossa sobrancelha única sublinhada pelos cílios longos e negros. Dizia coisas bonitas, às vezes, numa língua estranha. Riu da minha crença no mundo prometido além do grande rio, o ywy mara ey, a Terra sem Mal.
― Isso é coisa de índio velho. Hinterwelt. Não existe nada depois do mundo, nem atrás, ou antes dele: a única coisa que há e pode haver é o agora. Estar vivo é estar do lado dos fortes, os fracos só sobrevivem pra servir aos vencedores.
― Quando os fracos sobrevivem se igualam aos fortes. Você fala qualquer coisa, diz e desdiz...
― Oh, mas que chato, uma contradição! O desdito tá dito, então, sem problemas. Eu sou imenso, contenho multidões.
Durante seis meses foi simpático comigo, sempre dizendo que eu era linda, me levava pra casa na garupa da moto. Qualquer garota gosta deste tipo de atenção. E assim ele foi me conquistando, até que um dia desviou o caminho e me levou pra casa dele.
Confessou seu amor por mim naquela tarde.
Fomos para o quarto ouvir música, tomamos uma bebida que devia estar cheia de droga. Fiquei completamente balão. Mesmo assim foi muito mágico.
Começava ali o inferno e terminava o céu.
Fidencio tinha armado tudo. Dias depois, me contou o que tinha acontecido e mostrou as fotos. Falou que ia levá-las pro meu pai ver, espalhar cópias na escola, mostraria pro povoado inteiro, se eu não o obedecesse.
Por que faz isso comigo, que o amo tanto?
A partir daí, começou a ir me buscar algumas vezes por semana, depois que os meus pais vão dormir. Saímos escondidos e ele me leva pra casas abandonadas da região, porões escuros, onde fico até as quatro horas da manhã sendo estuprada por cerca de dez homens por noite.
No início, estava tão assustada que demorei pra perceber quem eram aqueles homens. Os avá yvýpe, uma raça esquisita de seres das profundezas da terra. Anõezinhos pálidos e maus, que falam numa língua áspera, imperativa.
Às vezes é um por vez, outras, aparecem juntos e usam objetos que me deixam dolorida. Virei escrava dele, um menino atuando como recrutador dos habitantes de Nueva Germania. Acho que ganha um bom dinheiro com eles.
Depois que me deixa em casa, pouco consigo dormir antes de hora de acordar e ir pra escola. Sem entender porque eu ando tão cansada, meus pais me levaram ao pajé. Mas não consegui contar nada.
― Só se vive na sua vez. Tomar o partido da vida é assumir a maior de todas as tarefas: melhorar a raça humana, incluindo o extermínio implacável de tudo o que for degenerado e parasita ― disse ontem quando me trazia pra casa de madrugada.


domingo, 11 de agosto de 2013

die Präparatoren (parte 1)



            ― Não há síntese que faça ponte entre os contrários. A história do mundo acontece aos trancos e barrancos, tropeçando em contradições não resolvidas, mas disputadas até que haja vencedor e vencido. O todo pode ser pensado, não vivido. Só se pode viver aumentando ou suportando os dilemas, cada um experimenta desde sempre o dilaceramento de contrastes hostis. Nascemos de um determinado lado dessa contradição, isso faz parte da contingência do existir, assim como não escolhemos o próprio corpo, a comunidade da língua, nem aquelas comunidades de corpos chamadas família, povo, etc. Não escolhemos nosso lugar, apenas o podemos aceitar. E, no entanto, é preciso permanecer fiel à terra...
            Fez uma pausa.
Respirou fundo. Virou o rosto, semi-encoberto pelo chapéu de abas largas e os óculos escuros, desviando o olhar do verde da paisagem coado pela renda branca das cortinas. Afastou-se da janela, descobriu os olhos faiscantes.
Era a primeira vez que Fidencio Estigarribia se encontrava com um deles. Sentia os pêlos do braço se eriçando contra a sua vontade. Diante dele estava um homem pequeno e encurvado, de voz débil, vestindo roupas antiquadas alguns números acima da sua envergadura franzina.
Um macaquinho usando um grosso casaco escuro naquele calor. Sim, parecia um monito de jaleo, movendo-se ridiculamente pela cabana de madeira em despropositado estilo bávaro. Sem embargo, pressentia nele o aço de uma determinação desconhecida. Lembrou do que sempre lhe haviam dito sobre aquela gente: nunca andavam desarmados.
Aguardava, sabia que ainda não era a sua vez de falar. Não deveria se iludir com a aparente fragilidade física.
― E exatamente por ter permanecido fiel a nós em todos estes anos de colaboração, é que vim conhecê-lo pessoalmente. É, desde cedo percebemos que havia um talento incomum em você... desde que era um Präparator...
O desgraçado golpeava no ponto mais dolorido. Sem pressa: consciência, autocontrole e cálculo. Aquilo era uma referência direta ao passado que não queria lembrar, ou seja, precisamente o que não podia esquecer.
― De fato, Herr Silberblick, trabalho com vocês desde os tempos do meu saudoso pai. São bons negócios: quando o senhor ri, eu rio também. E são business variados, sempre trazem proveito e aprendizado, devo dizer.
― Desculpe se o corrijo, mas você não trabalha com-nosco, e sim para nós. Não somos o seu único negócio, Fidencio, somos o seu cliente indispensável, o cliente que é seu dono. Sem nós você está falido, perde a proteção policial e o apoio político. Uma vida difícil, não? Agora me diga: como é que você imaginava a minha aparência? Um gigante de três metros, ou uma criatura de orelhas longas, olhos vermelhos e presas salientes?
― É verdade, são essas as lendas que correm por aí... Mas não sou de acreditar em chupa-cabra, senhor. Aceito o que vejo.
― Ah, muito bom, muito sensato de sua parte. Há nisso uma grande ironia do destino, veja, nós, que pertencemos a uma raça superior, nos tornamos seres diminutos, de ossos frágeis e quebradiços, intolerantes à luz, encurvados e frágeis como símios. São os azares da história... Foi necessário que nos escondêssemos, passamos a viver ocultos; os índios nos chamam de avá yvýpe: os homens do fundo da terra!
― Sim, mas aí já não existe fantasia: onde e como vocês vivem é um segredo completo. Nem mesmo eu, que trabalho há tantos anos pra...
― Perdão, Fidencio, mas... em que você acredita?
― Como assim? O senhor quer dizer, se a sua gente vive mesmo embaixo da terra? Ou se são...?
― Monstros? Mas claro que vivemos sob a terra, como acha que sobrevivemos mais de cem anos em perfeito anonimato? Negociar conosco é seguro porque não aparecemos, não fazemos barulho, nem incomodamos ninguém... Não lhe parece? Só que a minha pergunta é sobre as suas crenças mais, digamos, espirituais...
― Bem, sou devoto da Virgem de Caacupé...
― Que interessante, muito importante ter uma crença... Presta-se um grande desserviço ao espírito quando o separamos dualisticamente da vida material. Assim não o podemos defender. Bem ao contrário, o espírito deve ser reintroduzido na vida cotidiana, antes, a vida espiritual era o objetivo natural, o supremo valor. Isso acabou nos tempos modernos. O complicado e imprevisível mecanismo da sociedade tornou-se um universo de meios, que não se relaciona mais com um centro de significados. A consciência moderna fica perdida nesse emaranhado de meios, porém, a atividade humana pede que haja fins, valor em suas ações. Se queremos liderar um grupo qualquer, seja ele uma cidade, uma empresa, ou um povo, devemos criar um mito adequado a unir tal coletivo em uma visão comum. A religião tradicional simplesmente empalideceu, não se crê mais, apenas há a vontade de acreditar. A existência do mais valioso para o humano, a eterna eficácia daquelas forças que transformam o homem em homem, depende de que em algum lugar do mundo exista um mistério, isto é, uma força espiritualmente geradora que ligue as almas, que seja exercida e transmitida adiante. Que em algum recinto sagrado do mundo, e repetidamente, uma matriz formadora de mistério reúna dois ou três em nome do deus vivo. Só isso preserva o mundo.
As palavras ressoavam na cabana de decoração sóbria, mas Fidencio perdera o fio da conversa e havia retornado a uma época remota. Mesmo que tivesse vivido mil anos não teria conseguido esquecer aquela garota.

* Do alemão, die Präparatoren, os taxidermistas.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

a máquina de inventar passados




quanto mais cresce a memória (mais cresce)
a morte
porque o fantasma que anima
o homem é uma máquina
de esquecer e lembrar a crescer
para a morte
e não digo isto tristemente
porque também é fato
a memória disfarçando (se) de vida
torna (a) menos amarga
mais digna sutil tênue e talvez
menos provável
um hoje grande e mutante
pede menos a eternidade preguiçosa
dos ídolos
mas o câmbio o desaparecimento
a cooperação na libido
universal
atuar sem nome e não ser (um puro nome)
ocioso
não acreditar na arte como curso preparatório
extensão conhecimento (da vida)
apenas uma forma desperdiçada
de buscar fugindo caminhar
se perdendo
viver é viajar durante o inverno
e a noite
procurar uma passagem pelo céu
onde nada
luz