sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

os culpáveis (final)



A vida é um seriado que você vicia antes de saber exatamente qual porra de história se trata, aquele tipo de filme que existem milhares de livros escritos só pra tentar explicar, vou passar a porra da vida aprendendo a ler o tal livro da vida sem ajuda de tutorial no Youtube, enquanto isso, vou fazendo todas as cagadas possíveis nesta encadernação, aliás, tremo só em pensar o que pode ser a minha próxima encarnação com o karma acumulado na atual e contando, vamos ampliar a bigger picture (organizador de fatos nº ∞): as semanas vão passando lentas como conversa de novela, continuamos a dormir na sala, eu no sofá quebrado, o Tomate no chão rachado com meio corpo dentro da cozinha, Faraco e Moura se aboletaram no quarto e grudaram na aba do meu chapéu feito duas cracas, esses dois, sei não, passam o dia inteiro no quarto, dormem na mesma cama, se barbeiam juntos de toalha e peito nu... enfim, depois daquela conversa escalafobética sobre o Capitão Nascimento acredito em tudo vindo desses comédias ― acho que alguém vai ter que desenhar pra mim.
Mas o pior eram as saudades: Brenda, dadivosa Iansã, saiu da minha vida trovejando e sumiu no turbilhão da galeria metamorfoseada num daqueles pitéus de condução, brejeiras gostosinhas que nunca vão ser suas, mas são o verdadeiro sal do transporte público, ó Brenda das minhas bronhas, onde está você?, que rebolava gostoso e manjava dos paranauê, onde andarás nesta paulicéia tão desvairada e cheia de tentações pras morenas safadas de coxas grossas?, confesso que já nem me preocupava com o destino do pobre Uzodima ― os seqüestradores não fizeram um único contato ―, só queria a mina de volta, por outro lado, fui criando uma jeriza danada em relação ao Tomate, sei lá, uma tiriça, tipo inhaca de estar ali socado com 3 marmanjos numa quiti, a ex mulher mandando um oficial de justiça atrás do outro, se pá devo sofrer de claustrofobia misantrópica, e como a mente é uma montoeira de contradições, ficava vindo direto Chucho Valdés na rádio-cabeça: “Se me hizo fácil/ borrar de mi memória/ a esa mujer a quien/ yo amaba tanto/ Se me hizo fácil/ borrar de mi este llanto/ ahora la olvido cada dia más y más...”
― Não sei não, o Dingo parece meio tristinho. O zoológico de Los Angeles ainda não mandou a Cindy pra fazer companhia pra ele.
― Verdade, Ava?, acho que vou mandar uma carta pra esse zoo, se eles forem mesmo bons nisso quem sabe não descolam uma pra mim?
― Prefiro quando você tá namorando, quando tá sozinho, daí você fica triste e perde o trabalho, daí não consegue comprar salgadinho pra nós.
― Hmm, minhas finanças têm andado meio... trash, mas as perspectivas melhoraram, me encomendaram um job num resort 6 estrelas em Koh Phi Phi.
― Onde fica isso?
― Tanto faz, não vou pra lá mesmo, já fico bem feliz de evitar o descanso sabático que a sua mãe quer me dar.
― Pai, você é um homem descansático?
A abrupta queda na taxa sangüínea de todas as drogas que circulavam no meu corpo me deixou mais sonolento, bodeava a qualquer hora no sofá desabado encostando as vértebras diretamente nas ripas do arcabouço, e sonhava, horas a fio, como se não houvesse amanhã, invariavelmente lá estava eu correndo atrás da bela Brenda, mantida cativa numa masmorra pelos terríveis irmãos Trufadalho, que eram a cara de Faraco e Moura, enquanto as artimanhas do perverso Mascarin (a fuça do desgraçado do Tomate) me mantinham longe dos braços e abraços da mulher amada, toda essa atividade onírica, porém, me cansava de morte e, obviamente, não contribuía para melhorar a relação estremecida com o Tomate.
E então, um belo dia, chego na goma e os dois tiras estão arrumando suas coisas.
― Estamos indo, obrigado por tudo.
― Mas, e a investigação, o Uzodima?, bem, de nada, foi um prazer vocês detonarem a minha vida.
― Queria dizer pra você que foi muito importante pra nós, concluímos que não tem mais sentido a gente não morar juntos. O americano deu sinal de vida pra embaixada. Tchau.
Tempos depois o Uzo apareceu em casa, uns 60 Kg mais magro, falando que tinha sido iniciado na umbanda e batizado no movimento, agora ele pagava “cebola” e vivia na sintonia trabalhando pra firma como ‘resumo” da zona sul, pra abreviar uma história longa, no cativeiro ele descobriu o verdadeiro sentido da existência aderindo ao movimento social radical que sempre buscara: o Primeiro Comando da Capital, fiquei tão zonzo com aquele jorro de notícias e realidade mundo-cão que desabei na poltrona, fiquei uns bons minutos ali estatelado após a saída do ex-gordo e ex-amigo americano, até que a minha mão esquerda apalpou um tecido fino no desvão das almofadas do sofá: a calcinha da Brenda!
E então, toda a cena se iluminou por um relâmpago cruzando a minha mente obscurecida, estava tudo ali bem debaixo do meu nariz sedento da brite: a calcinha que faltava, o local do crime e... o filho da puta que estava lá, naquela mesma sala, enquanto eu era interrogado madrugada adentro!, fiz um escândalo de puta pobre e escorracei o Tomate do meu apê, sovando-o com a ira de Thundera escada abaixo e cuspindo-lhe na cara toda a ingratidão.
― Volta pra rua, seu filha da puta, volta pro teu lugar: o nada!, seu mudo de merda, oferenda de esgoto.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

os culpáveis (7)


Descobri ― mais exausto que estarrecido, e menos indignado do que deveria ― uma escala global-local da cidadania: assim como eu era mais gente que o Tomate, e por isso apanhei civilmente pouco na DP, a vida do Uzodima era incomparavelmente mais valiosa que a minha, e por isso ganhei duas tornozeleiras humanas na minha aba durante um longo mês, a versão gaiata de Starsky e Hutch passou a gerenciar cada aspecto do meu caótico cotidiano: da marca de café que abastecia seu insaciável apetite por estimulantes, ao papel higiênico folha dupla completamente fora do orçamento doméstico, saídas vigiadas, celular grampeado e confiscado, computador hackeado, encher a lata?, arrastar a vizinha do terceiro prum tetê-à-tête?, dar uns tecos na nine?, nem sonhar, tio, Faraco e Moura impuseram disciplina espartana e abstinência forçada a tudo aquilo que antes eu chamava vida pessoal.
A coisa começou errada de cara, logo ao chegar rolou um bafão com a Brenda, aliás, depois daquela dê-erre nunca mais nos falamos, mas me adianto, ela estava usando aquela sainha deliciosamente micro, liberado antes de mim, o Tomate também estava lá no apê de olhos pregados no chão, mesmo assim dava pra ver o estrago feito na faccia do coitado, um molambo cambaio de gente, a Brenda, ao contrário, veio pra cima fervendo na veia: sangue no zóio e faca no dente, ignorou a presença dos tiras e soltou a cachorrada em mim, sublinhando o rap de xingos com tapas e arranhões distribuídos sem dó.
― Custava atender a porra do telefone, custava?, seu merda! Uma mensagem, uma explicaçãozinha que seja... daí, lá pelas tantas, chega esse cretino todo fudido que não explica piçiroca nenhuma. Seu calhorda, cagalhão!
― Amorzinho, posso explicar tudo mais tarde? Sabe o que é?, tive uma noite do cão...
― Ah, sim, claro que você vai ter uma explicação, sete um é contigo mesmo, mas quer saber?, cansei do teu xaveco, papudo. Você quer é o Nelson Rodrigues todo: eu correndo nas delegacias e hospitais atrás do idiota que me faz de idiota, comigo não, cachorrão, tô por aqui dessa sua vida farra-pinga-e-foguete!
― Meu bem, vamo lá no corredor?, pelo menos lá, ao contrário destes cavalheiros, os vizinhos já conhecem os detalhes tão pequenos de nós dois ― na verdade, apesar do cansaço e dos safanões da Brenda, tava seco pra dar um cata naquelas coxonas. Sem dar bola pro bafafá, Faraco e Moura se instalaram no meu quarto sem a menor menção de pedir licença.
― E esses daí são o quê?, seguranças do Love Story que você levou o gringo? Vai tomar no cu, filho da puta presepeiro!
Fomos pra fora do apê, àquela altura minha pitchula choramingava lamurienta deliciosamente fazendo biquinho com a boca rosada e limitando as agressões a poucas (mas doloridas) muquetas eventuais, um assunto foi levando ao outro, e, antes que ela conseguisse perceber a falta de transição dramática, estávamos dando um amasso federal junto à banca do vendedor de balas e doces do andar, quando fiz nova e estonteante descoberta: minha musa estava sem calcinhas!, fato que em condições normais até faria parte dos nossos joguinhos sacanas, naquele momento me jogou num abismo de sofrimentos chifronésios otelianos, tamanha saliência não ornava com o manto da indignação que recobria a minha amada.
― Mas que porra é essa?, tem alguma coisa que cê precisa me contar, Brendinha?
― Não muda de assunto. Só... esqueci, foi tudo. Quem deve explicações aqui não sou eu.