sábado, 29 de setembro de 2012

uma relação pornográfica (parte final)



Cessadas as loucuras de amor, deixamo-nos ficar ali no bem bom, jogando conversa fora na jacuzzi, bebericando das flûtes o agora morno champanhe; invertia-se o mais manjado dos clichês da etiqueta sexual: começávamos realmente a nos conhecer depois da foda bem dada. Era com uma espécie de divertida curiosidade que me punha a explorar abaixo da pele que proporcionara química tão certeira; vejam, este tipo de enredo tornou-se uma brincadeira de criança com a internet; na China, usam o renren, no Japão, é o mixi, mas a mais engraçada é a rede da pegação gay: no Grindr os caras botam a foto do membro inferior central, as preferências e urgências, e o GPS já dá a localização para marcar a ponta. É pá e pum, sem delongas nem milongas.
― Contigo não tem tempo ruim, hem menina?, gostei, aprecio mulher que vai direto ao assunto, que sabe o que quer e o que não quer na cama, hmm, quer dizer, não parece ter muita coisa nesta última categoria...
― Bobão... logo você, que fala um monte na hora do rala e rola. Ainda tem champanhe?
― Chega o copo. É, hãm, valeu pela mãozinha que você me deu, aliás, o dedinho... é isso que eu tava te falando, curti sua presença de espírito. Tem mulher que trava nessa hora.
― O prazer briga com a tesão, ex-my love; o que você abre mão de um, você paga no outro. Não tem almoço grátis.
― Hãam?!
― Esquece. Homens não entendem de tesão, entendem no máximo de pinto: o seu próprio. My prreciousss!...
― Hahaha, isso eu consigo entender, e é a maior das verdades, sou obrigado a reconhecer.
...
― Escuta, bem, você, isto é, em casa... com o maridão, também dá esse empenho todo?
― Se é o que você quer saber, mantenho ele bem satisfeito, viu? Pra não andar caçando por aí que nem você... e essa namorada que cê tá enrolando há seis anos? Ainda mantêm a chama acesa, ou já dobraram o Cabo da Boa Esperança?
― Putz, para falar bem a verdade, deu uma embaçada geral na área do playground; não entendo, a minha namorada é um mulheraço: bonita, inteligente, bem sucedida, cheia de amor pra dar... A coisa pra mim nunca vai além de quatro meses, passou disso, o tesão vai na meia e começo a olhar em volta feito marinheiro acabado de descer em terra.
― É lindinho, não adianta usar calendário atrasado, ninguém pára o tempo. Casar vai te fazer bem, aposto. Vem cá, cê topa um jogo comigo?
― Que jogo?!
― Conta pra mim uma coisa que você nunca contou pra ninguém... depois é a minha vez.
― Deixa ver... ah, tá, quando era moleque, no quintal da casa da minha tia havia um terrenão, lá, bastava escavar um pouco e apareciam cacos... é, cacos de qualquer tipo: partes de azulejos, de telhas, travessas, serviços de chá, etc.; era uma riqueza de pedaços de outras vidas, de épocas que já só existiam em fotografias, fragmentos de tempos e pessoas que não conheci, mas que eu podia usar para me montar, me compor... foi assim que eu reconheci o passado, descobrindo no presente um defeito de fábrica, uma falta essencial que se cava atrás do instante presente, debaixo do mundo exterior, o qual percebia simultaneamente que me pertencia e também estava para sempre perdido. Agora você...
― Eu? Bem, eu a-do-ro sexo casual.
― Ah, vá! Não diga, agora que tal contar uma que eu não conheça... sei lá, tipo uma piada de Joãozinho, ou do papagaio...?
― É sério, cara. Entenda, sou incapaz de ter um amante, sabe assim?, tipo fixo... não é a minha, ia me sentir traindo meu marido...
― Caraca, esta é boa! E o que acabou de acontecer aqui, passou-se em outro plano da realidade, foi?
― Foi no plano do sexo, mas não do amor. Não vou pedir teu celular, MSN, nem vou deixar recadinho no teu Face, amanhã é outro dia. Amor e sexo podem ter tudo e nada a ver, isto daqui foi um jogo, bom, mas jogar não é tudo. Pensando bem, jogar outros jogos eu quis dizer, o que não se deve fazer é jogar um jogo só.
― Ah é?! E vai que o teu marido joga este jogo também, você ia gostar?
― Não de ficar sabendo. Olha, eu prefiro fantasiar na cama; mas também, é o risco: o toureiro está em vantagem covarde contra o touro, mas precisa reconhecer que ele também pode morrer. Faz parte do acordo.
― Sim, o exemplo é bom: sempre é uma questão de chifres...
― Se não, fica que nem você aí, tão cheio de medo que a tua mina faça o mesmo que você faz, que não consegue assumi-la até o fim. O outro é tão livre pra mentir como você, e você precisa aceitar isso.
― Não... as mulheres são diferentes, não têm essa necessidade que os ho...
― Kkk, você realmente lê best seller demais, deixa eu te perguntar uma coisinha: você faz isto direto, não faz?, pois bem, com quem você acha que vai pra cama?

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

uma relação pornográfica (parte 2)



Antes mesmo de abrirmos a porta do quarto, ela já tinha uma das mãos alojada dentro das minhas calças abarcando com destreza todo o meu equipamento geniturinário; a boca de dentes perfeitos me beijava com vigor, a bem dizer, aplicava uma sucção desesperada que ia arrancando a minha língua com freios e tudo. Tateando com dificuldade, consegui ajustar a chave na fechadura.
― Acho que vamos pular a parte do champanhe...
― De maneira nenhuma, você cuida da rolha, e eu, da rola. Vem abrir a braguilhinha aqui no quarto, vem!
― ... vou te ajudar com isso...
― Deixa que esta parte é minha, vou abrir o saco de presentes do Papai Noel... ― respondeu atrevida. Desembaraçada do obstáculo das minhas calças e cueca, ela inicia um trabalho de sopro com tanta gana que os meus bagos são dragados pela garganta profunda.
― Calma aí, você vai engolir meus tomates desse jeito! ― protesto sem muita convicção.
― Ughmmmfmm!?!
― Quê?!
Ela desboqueteia o valioso nervo para envelopá-lo com a camisinha.
― O pepino já tinha ido, gosto de engolir a horta toda.
― Toma teu rumo, cachorrona, depois do café o que você tá precisando mesmo é do leitinho de miápica ― antecipava gulosamente o calor da gruta quente guarnecida por um grelinho frenético, já pressentindo a fúria uterina daquela mulher-diaba.
A chapeleta do meu bilau tornou-se escura, uma imensa e tensa amora prestes a explodir como uma granada entre as mãos da bacante com malemolência de profissional. Plop! Salta a rolha da garrafa de champanhe. Abandona então brevemente a sua presa de carne e passa a aplicar igual tratamento ao gargalo do brüt, sorvendo a espuma do espumante enquanto me empurra na direção da cama e monta na estaca emborrachada, dando início a um galope sem brida que me levou ao zênite... rápido demais!
― Ai, que vergonha, gozei... ― pois é, tenho esse problema; maiormente em situações imprevistas como esta: precocidade na finalização, algumas damas mais exigentes chiam contra este que é um dos gatilhos mais rápidos da zona oeste. A mina, porém, não deixou a peteca cair.
― Que lindo, você gozou pra mim, baby. Mas ainda quero mais, e você vai me dar mais.
Baby?! Não tive sequer o lazer de me indignar com o apelido cuti-cuti: a doidivanas já iniciara uma providencial massagem prostática com o indicador direito, ordenhando o pingolim com a canhota em busca da rigidez perdida. Em situações vexatórias como esta, só mesmo o bom e velho fio-terra para resolver as questões hidráulicas envolvidas na árdua tarefa de reanimação do Ciclope adormecido. A danada estava realmente aproveitando ao máximo o curso de cuidadora no Sírio-Libanês ― será que o meu plano cobre um home care desse nível?
― Humm, humm, olha lá, que fofo, ficou durinho de novo, hmm, gostoso!...
Love labor’s rewarded; depois de auxílio tão luxuoso na cuíca, minha pipa empinou novamente, e debicava infrene, ansiosa por voltar à ação. Não se fez a moçoila de rogada: atirando-se de costas na cama redonda, arreganhou o compasso, descortinando uns lábios superiores, inferiores, maiores e menores cuja cor de morango convidava para uma tradicional socada missionária.
― Ah, benzinho, se é pra let’s go, que seja now ― renovado o orgulho da vara varonil, e com o tarugo devidamente revestido pelo látex galvanizado, resolvi me fazer de caro.
― Anal?! Now? Nada mal, por que not? Quem não arrocha, não atocha; vem meu tigrão, vem ni mim que eu tô facinha!
E vim, ou melhor, fui, com tudo; porta da frente, porta de trás, meia nove sem frescura, sentada reversa na maçaranduba, giratória... uma recapitulação do Kama Sutra em versão de bolso ilustrada. Minha valorosa partner exibia todos os estigmas que identificam a mulher-violino ― aquela que canta no pau ―, a marca d’água da verdadeira safada: encharca o lençol, grita, morde a fronha, senta, rebola, e ainda bate um bolo.

domingo, 23 de setembro de 2012

uma relação pornográfica (parte 1)



            Um padrão de reconhecimento. Ou um reconhecimento de padrões, tanto faz. Acontece que tenho essa habilidade, ou desenvolvi, sei lá; na verdade talvez não seja grande coisa, apenas o bruto instinto reprodutivo em ação. Sejamos bem diretos: sexo, e da modalidade aleatória, quase um encontro animal. Uma coisa antiga como o mundo, mas que não parece tão deslocada assim na grande cidade ― toda a cidade verdadeiramente grande sempre carrega a história do mundo nas suas veias, nas suas vias, nos cruzamentos em que esbarram os átomos da sua geografia humana. Às vezes, nestas colisões produz-se a faísca primitiva, e então a natureza, como diziam os antigos, segue o seu curso.
            Os reaças, fundamentalistas de todos os credos e patrulheiros da moral alheia em geral, podem até parecer toscos nas suas concepções, mas não se enganam quanto ao fato de que, quando dois humanos se encontram em território livre, o couro pode comer sem muita mumunha e negaceio. O que é do bicho, o homem também come (e como). E não há necessidade alguma daquelas situações clássicas do encontro de desconhecidos: a viagem de trem, o cruzeiro nas ilhas gregas, a micareta em Parintins, ou a mulher do esquimó, hospitaleiramente ofertada. Qualquer preposição pode servir à cópula, é preciso apenas estar vigilante e reconhecer esse não sei quê do andar, que tanto está num jogar dos cabelos, como num olhar que demora um segundo a mais; ou, quem sabe, circula nos infraperfumes que só o sentido feral capta.
            ― Os caixas recebem pagamento em cheque? ― ela perguntou para um dos funcionários de coletinho que orientam os clientes do autoatendimento. Pensando em retrospectiva, acho que também pode estar na voz: aquele acento rouco, praticamente imperceptível na nossa espécie, mas que denuncia a disponibilidade com a mesma precisão do miado das gatas no cio.
OK. Estou fazendo um pouco de literatura, está certo; voltando: depois de me desmarcarem a reunião em cima da hora, aquela tarde de quinta feira já estava perdida. Desisti de voltar ao escritório por causa do trânsito; fui ao banco resolver umas pendengas. Enquanto o gerente consultava o sistema numa das mesas na parte da frente da agência, ela dirigiu-se para o fundo, para a fila dos caixas não-automáticos, aqueles atendidos por bancários de verdade; entediados como os clientes amontoados em fila serpiginosa. A cada minuto, balançava a cabeça dando uma panorâmica lenta que incluía uma espiada rápida na minha direção; da minha cadeira, mantinha-a sob vigilância na periferia do campo visual, e, assim que começava a rotação do rosto, posicionava-me para interceptar os olhos dela com uma mirada firme, frontal e radiográfica.
Enrolei o máximo que pude de modo a sairmos juntos pela porta giratória. Na rua, caminhei alguns passos ao lado dela até lhe dirigir a palavra.
― Posso conversar um pouco com você?...
― Não. Não costumo conversar com estranhos ― ela respondeu de bate-pronto, na chincha; mas uma cova discreta surgiu-lhe na altura do encontro dos lábios, descerrando a partir da direita da boca uma bela fiada de dentes alvos. Segui por ali.
― É, você está certa, talvez seja melhor te convidar para tomar um café. Assim deixamos de ser dois estranhos...
Paramos numa cafeteria das redondezas; pediu um café carioca e uma água com gás, tomei um expresso com meio saquinho de adoçante. Conversamos de boa, contou que era de Jacareí, bem casada, fez questão de frisar; vinha duas vezes por semana fazer um curso de home care para idosos no Sírio. Naquele dia tinham cancelado repentinamente a aula e resolveu ir pagar uma conta.
― Que coincidência, o universo conspirou para que eu te conhecesse ― contei-lhe da minha reunião desmarcada, mas ela não pareceu se impressionar muito com a sincronia cósmica dos nossos destinos.
― Deixa de bobagem, foi só um acaso. Esse teu xaveco tá com a maior cara de autoajuda, precisa de um bom upgrade.
― Hmm, tá, mas bem que a gente podia bebemorar este caso do acaso, não?
― Você quer dizer: tomar uma cerveja no meio da tarde?
― Cerveja não, champanhe.
Saímos dali direto para um motel. Tão logo subiu na garupa da moto, senti o corpão dela colando firme em mim. Tinha pegada, a mina.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

defeitos são efeitos (especiais)



o coração que age
é a coragem
de uma outra inteligência
força geradora
viva
generosa
lúdica
perversa

há quem se mova nesta força
na inteireza do feminino
no diálogo de portas semi
cerradas

daqui para a frente o padrão
é a instabilidade
e será preciso engolir o divino
na simplicidade

sentir se atravessado
por novas
pontes

a maçaroca da vida
onde a jornada tece
atraso e mudança

a lembrança do salgado
não é só luz e linha
reta

o que move os heróis
e o que os desvia?

o canto revela a alma
                        revela
                        o canto

sábado, 15 de setembro de 2012

a casa das mil portas (parte final)



            Às vezes tenho a nítida sensação de que não chego realmente a conversar com a minha mãe, é curioso, não consigo lembrar sobre o que eu e ela falamos o dia todo, todos os dias ― e é certo que alguma coisa devemos falar, nem que seja sobre o que está faltando na despensa ―; bem, de qualquer maneira, não deixamos de ser uma família que cultiva uma grande arte: a arte de desconversar. Desconversamos sobre tudo e qualquer coisa, principalmente acerca do que não se pode calar. Não vou aqui negar que careça de argumentos (ela os tem, e como!), nem que lhe falte um certo humor farsante; aliás, para ser inteiramente justa neste relato, devo acrescentar uma anedota ilustrativa das pequenas diversões que a personalidade peculiar de mamãe proporciona à nossa rotina.
            Até porque, venho concluindo ultimamente, a minha família não é muito diferente das outras, só a coisa em casa é um tantico mais arreganhada. Há uma questão a respeito da qual parei de alimentar fantasias: aqui ou alhures, na casa ou na rua, é a mesma chanchada que rege homens e mulheres; o que chama a atenção é que ainda sejam tão poucos os que dão a bofetada no seio da massa que oferece a outra face. Os ‘maus’ agem, e os ‘bons’ não reagem ― a não ser quando se tornam maus. Talvez seja mais prático viver por procuração. E assim caminha a humanidade, Urbi et Orbi.
            Era uma daquelas tardes abafadas de um sábado caduco, estávamos na varanda de casa apreciando o movimento da rua ― que não é de grande interesse, porque os moradores deste bairro parecem se deslocar unicamente dentro de carros indevassáveis para quem está de fora, e suas vidas exalam asseio, sucesso e adequação. Entre uma cusparada e outra dos impropérios costumeiros que a minha genitora dedica aos exemplares da sociedade disponíveis, sem que nos déssemos conta, parou uma mulher no portão de casa. Usava roupas simples mas elegantes, tinha presença, a idade era indefinível a um exame sumário, digamos que estaria entre eu e a minha mãe. Nunca a tinha visto nem mais gorda, nem mais magra.
            ― Aqui é o número 115?
            ― Está aí do lado do portão, se recuar um pouco e souber ler, vai descobrir; e se aproveitar pra seguir seu caminho, melhor ainda ― a mãe sabe como poucos deixar alguém desconfortável no mais alto grau; sem ser uma faladora habitual, possui uma habilidade natural para a retórica de guerrilha. Além disso, tem seus momentos.
            ― É que... precisava falar com a senhora...
            ― Moça, religião já tenho, e compras eu mesma faço na loja.
            ― Não, não é isso... é que, hmm, a conversa tem de ser mesmo particular.
            ― Particular mesmo, aqui, só a propriedade. Se não puder explicar, daí, o que quer, já lhe disse: a calçada é excelente para a senhora continuar seu passeio.
            ― A senhora não me conhece, mas eu sou da sua família... quer dizer, distante... veja, o assunto é muito delicado para lhe falar assim, da rua...
            ― Ah bom, mas por que não falou isso antes? Se é da família, então a coisa muda de figura... mas é que, sabe o quê?, gente velha desconfia de tudo mesmo, veja só: estava ainda agorinha preocupada com uma desconhecida mesmo querendo entrar na minha casa... tu tá me achando com cara de panhonha, é menina?
― Nossa, a senhora está levando tudo pro outro lado... Pelo amor que tem a Deus, me escute, eu preciso muito da sua ajuda...
― Hum, agora você conseguiu, começou a me fazer acreditar em você, família é sempre essa água: quando aparece sem avisar, com certeza é pra pedir alguma coisa! Olhe em volta ― e apontava as paredes de reboco descascado, a nespereira xexelenta, a balaustrada e o jardinzinho da frente tomados por capim-gordura ―, não sobrou muito, né?
― Só espero que tenha sobrado um pouco de boa vontade...
― Que é que você quer dizer?
― ...(suspiro) a Maria Eduarda... minha filha, precisa de um transplante... de medula, virei mundos e fundos, paguei investigador, e vim lhe procurar, não pra amolar, nem para ter direito a nada...
― Pera, pera, pera aí, direito? Direito a quê, tenha a bondade de me explicar...
― A senhora não vai me deixar entrar? Por favor, falo aí onde está, assim, na calçada, não... Buf, acredito que... que uma de vocês duas tem grande chance de ser a doadora...
― Certo então, porque a sua tia torta foi casada com o contraparente da família da terceira sogra do meu avô, você acha que tenho que dar um pedaço de mim... para a sua filha?
― A sua neta! Minha filha é sua neta, por caridade, eu não queria lhe contar dessa maneira: você, a senhora, é a minha mãe de sangue... um rapaz, há muito tempo, Antônio Nunes se chamava; foi engravidar adolescente, e ainda naquela época... Nunca quis lhe conhecer, não tive essa curiosidade, não sei, estava em paz até minha filha adoecer. Estou sendo transparente: você não me abortou, e lhe agradeço; você me deu, não a culpo, fui bem criada; sei que para a senhora sou uma completa estranha vinda do nada, mas agora preciso tanto, lhe suplico... é a minha menina!
―...
― Desculpe... não era minha intenção...
― Você fique aqui ― disse para mim, e então, começou com a outra ― Você aí, isso, vá entrando no portãozinho... me espere bem aí.
Antes que eu piscasse, aconteceu: ela tirou toda a roupa e abalou-se na direção da mulher, que, a esta altura, se detivera estupidificada no meio do caminho. Uma máscara lasciva tomava-lhe o rosto, que mal podia ser reconhecido sob a cabeleira de loba e os requebrados selvagens ― uma senhora que usava andador para ir à missa! A cantilena gutural que lhe saía das entranhas, inarticulada e melódica como a das carpideiras mouras, nem era o mais impressionante, fiquei abismada foi com o tamanho que ela havia adquirido: minha mãe estava enorme, sacolejante como uma daquelas hipopótamas do Fantasia; e esfregava-se na outra, passava a língua, dizia-lhe coisas no ouvido, roçava nela as partes e as tetas pendentes, enquanto executava desajeitadamente os passos da sua dança canhestra.
A moça fugiu dali correndo e não voltou mais.
Pena, podia ter vindo me ajudar a cuidar da velha; este meu ramerrão é muito igual, dividindo com mais alguém, quem sabe, me sobraria algum tempo para o lazer. Dar uma saidinha é bom de vez em quando.

domingo, 9 de setembro de 2012

a casa das mil portas (parte 2)


Aquilo me pegou no meio. Como essa mulher sabe despejar veneno bem em cima do nervo, escolhe vibrar precisamente, dentre as fibras do sensível, a corda que mais dói! Plenamente consciente, enfiava o dardo na chaga aberta, a ferida que não fecha, e o pior, referia-se a um fato inquestionável. Sou maninha feito galho seco, ramo que engruvinha a flor e sonega o fruto — é só o que posso concluir a esta altura: fui para a cama com todos os homens que pude sem tomar nenhum cuidado e nunca engravidei. Agora, que já desisti tanto do sexo como do amor, desconfio se a minha esterilidade não terá sido um contrapeso à indecente arquitetura da casa, uma forma de frear a expansão infinita destas paredes, de impedir que a melancolia entranhada nelas inunde o universo com sua água negra.

Até o nosso nome deixará de se perpetuar: meu irmão optou por usar, nele e nos filhos, o da família da mulher — dizer que a lei passou a permitir tais e tantos absurdos. No dia em que minha mãe soube disso, quebrou um dente de nervoso. Para mim tanto se me dá, mas gente de idade não pensa assim; acho que começam a pensar no futuro, justamente a única coisa que ninguém controla.

Há certas coisas que a gente precisa ganhar o mundão para entender acerca daquele mundinho de onde viemos, por exemplo, certa vez fui parar em Mato Grosso por conta de um companheiro da época e vimos um descampado coberto de cupinzeiros imensos, murundus que pareciam chaminés do inferno brotando da terra gasta.

— Isto aqui é terra perdida, essa bicharada nem adianta combater.

— Mas não dá pra jogar veneno?...

— Não adianta. Tem de matar a fêmea, e achar o lugarzinho que a bicha se acoita não é fácil. Enquanto não pegar a rainha eles reconstroem tudo rapidinho, a diaba fica lá, botando milhões de ovos por dia e os outros roendo tudo que é barro, pau, restolho... uma começão danada!

Entendi de repente que vivia num termiteiro, que aqueles quartos que surgiam atrás das portas de casa, eram as antecâmaras de uma torroada construída de muco e detritos, argamassada com a baba de horrores proveniente daquela mulher magoada e feroz. Minha mãe. No dia do enterro do meu pai, voltamos as duas do cemitério, cansadas e sozinhas. Um chuvisco interrompido castigava a tarde escura; poucos parentes distantes tinham comparecido à cerimônia, mas ninguém se aproximara muito da viúva ou da filha do falecido. Meu irmão, para variar, viajando, enviou uma coroa de flores. Ela foi descansar um pouco no quarto que há muito deixara de ser do casal.

Não era normal o que se passava comigo, sentia-me completamente desperta, febril, com uma espécie perigosa de lucidez nos pensamentos e a energia impaciente de quem tem uma tarefa inadiável para realizar. Sem compreender direito o que fazia, dirigi-me ao quarto que o morto havia ocupado nos últimos anos; o mesmo em que havia sido velado, conforme a vontade da família e contra a vontade da funerária. Abri a gaveta. Procurei o estojo de munição. Carreguei o tambor da arma com as balas. Só lembro nitidamente do êxtase que me preenchia a alma, atravessei o corredor a toda pressa, nem sei se entrei ou não com cautela; era como se o chão ondeasse e eu flutuasse na corrente turbulenta de um rio.

Aproximei-me sem rodeios e sentei numa cadeira ao lado da cama; ela deitara vestida sobre as cobertas, apenas tirando os sapatos, não parecia dormir realmente, a respiração superficial de quem apenas cochila. Inclinei a cabeça, quase encostando meu rosto no dela. Ficamos assim por um longo hiato, podia sentir a aragem leve do seu hálito na minha face. Ali estávamos, cara a cara como sempre estivemos, e ela não queria me ver, como sempre. Engatilhei o revólver e encostei-lhe o cano no centro da testa acima dos olhos. Tive a certeza de que estava acordada.

            Um movimento convulsivo, independente da vontade, sacudiu-a: a boca se contraiu; um sorriso atravessou-lhe brevemente o rosto, mas, rapidamente, a comissura dos lábios tornou a vincar o costumeiro esgar de sarcasmo. Ela sabia de tudo, e esperava, talvez estivesse esperando por isso o tempo todo! O silêncio continuava, passeei o aço frio do cano pelas têmporas até chegar na raiz dos cabelos, como se um momento de ternura não pudesse faltar numa execução digna desse nome. Um torvelinho de ideias e sensações desencontradas varria o meu cérebro, e eu descobria, com toda a força do meu ser, que entre nós duas se travava um duelo de vida ou morte, o qual havia chegado ao capítulo final. Luta tremenda e equivocada que consumira a melhor parte da vida de nós duas.

            A minha mão começou a tremer. A obviedade do desfecho de repente dissolveu as certezas que me inflavam; um assassinato é sempre tão inevitável quanto inútil, tudo está no momento — e o nosso momento havia passado. De que adiantaria, então, puxar o gatilho, lutar, correr, sorrir, chorar, ganhar... ganhar o quê, se tudo o que importa já foi perdido?

            Ambas perdêramos, e agora sabíamos disso.

            Jamais falamos do acontecido; como seria de se esperar, ela reconheceu sem dar o braço a torcer: o trabuco deixou a gaveta e hoje descansa dia e noite sobre a sua mesinha de cabeceira. Carregado.

           

domingo, 2 de setembro de 2012

a casa das mil portas (parte 1)




            Esta é uma casa pequena, térrea, espremida num daqueles terrenos-lingüiça de pouco espaço interno e externo, mas acredito que nunca acabarei de conhecer cada um dos cômodos que há nela. Na verdade, jamais deixei inteiramente de viver aqui desde que vim ao mundo, mas também nunca deixei de tentar escapar desta ratoeira desde que nasci; nesta última vez, voltei para cá em meio às árvores já floridas, com a nespereira do quintal zumbindo de abelhas e na rua os ipês sem folhas exibindo seu ouro invernal. O céu está tão azul, o ar seco tão cheio de luz dourada, que os olhos, acostumados à descolorida penumbra do interior, parecem cegados pelo esplendor de uma demasiado feliz, quase insuportável, intensidade, como os de um caburé surpreendido pelos raios do amanhecer, bate as pálpebras e procura, aflito, seu velho campanário.
            Da varanda avisto ruas baldias e escuras que são menos solitárias que a minha vida, mas que ainda possuem um encanto, uma harmonia arqueológica, conservada ou reencontrada, a contrastar com o empalidecimento silencioso deste interior fechado às pessoas e silencioso à fraternidade, sem roupas no varal debaixo do sol, convivendo diariamente com a pedra dura das palavras da minha mãe, palavras que fatiam o compacto do mundo, o real da existência ― e o fio da esperança. Em todo canto que a vista alcança ressurge a impressão de uma antiga cidade que não existe mais, substituída por esta outra abstrata, suntuosa e frenética vitrine de marionetes angustiadas; cada passante parece um morto-vivo, sobrevivente solitário após um surto de peste; por todo lado constroem-se reluzentes prédios de cristal e aço, as galerias rebrilham, as lojas regurgitam: todos são heróis, todos estão no mostruário, entediados protagonistas de suas frágeis ou férreas teias sociais.
            Não sei como explicar de outra maneira: as portas da casa dos meus pais abrem sempre para um quarto novo, e neste outro, até então desconhecido, cômodo há uma nova porta, que abre para mais um quarto com uma porta, e assim por diante até enlouquecer; não saberia dizer se há um limite, o que posso garantir é que são quartos e portas comuns, como os de uma outra casa qualquer deste bairro comum; aliás, como eram as casas deste lugar antes que a cidade tivesse engolido o bairro inteiro e vomitado impressionantes boulevards de compras, serviços, templos e condomínios fechados ― só este pequeno quisto proliferante de habitação sobreviveu entre dois edifícios multiuso de alto padrão; a vida foi para um lado, e ficamos eu e a minha mãe anquilosada do outro, teimosas e lastimáveis relíquias de uma extinta era geológica, arrastando o passo como se pudéssemos alentar a marcha dos acontecimentos.
Acompanhei o processo todo, por assim dizer, da janela: os vizinhos se mudaram para bem fora da região, até meu irmão sumiu logo que pôde; sobraram os gatos-pingados habituais: sapateiro, borracheiro, o mercadinho, a banca de jornal e a paróquia. Nunca consegui conversar com o meu irmão sobre as esquisitices da casa, ele sempre ficava com pressa para fazer alguma coisa importante e urgente, e deixava o assunto para outra hora; hoje mora longe com a família e jamais nos visita, manda dinheiro todo dia cinco; parece que a casa dele é normal, e agora já não falamos sobre assunto nenhum. Quando criança, tentei comentar a estranha particularidade com alguma das raras visitas e recebi como resposta que não havia problema, afinal, toda a casa tinha suas manias, era só voltar pelo mesmo caminho que ninguém se perdia; minha mãe, do outro lado da sala, me fuzilava com o olhar.
            Papai morreu aos poucos e em silêncio, dia a dia engordando metodicamente, pacientemente, até não sair mais do quarto, primeiro, e depois, quando ultrapassou os cento e cinqüenta quilos, sem sair sequer da cama, onde o banhávamos e higienizávamos como um bicho dócil, trocando duas vezes por dia as roupas e lençóis; no criado mudo havia um revólver que não conseguíamos tirar dali nem durante o sono dele, sempre achei que o usaria para tirar a própria vida, mas não, foi-se dormindo, em paz como um anjo roliço. Parada cardíaca. Morreu sem fazer barulho, sem explicar, nem se lamentar; nenhum gesto de revolta, explosão ou arrependimento, conformado com um estado de coisas que não teve forças ou não quis afrontar, subserviente até o último momento à atitude fria e sarcástica da minha mãe.
            ― Esquece o revólver, deixa. Esse aí? Não tem coragem, nunca teve, não ia ser agora...
            Acho que a minha mãe começou por esquecer a própria idade ― eu mesma já não lembro quando faz anos, nem quantos ―, até que terminou por se esquecer da compaixão: não chorou no enterro dos pais, dos irmãos, do marido, e dos cães e gatos que, aos poucos, deixamos de ter nesta casa, onde os pássaros não vêm e nem pimenteira se cria. Não tenho a mais leve memória da minha mãe sorrindo ou chorando. A pessoa que me trouxe ao mundo é uma máscara de ressentimento sem começo e sem causa; aos domingos, supremo castigo!, tenho de a levar à missa, as suas dificuldades de locomoção transformam o caminho de ida e volta num suplício em câmera lenta, os comentários que faz sobre as pessoas que encontramos na rua, revelam os abismos de fel que rumina eternamente, como a esfinge do deserto.
            ― Olha lá, a Peluda, gasta o que não tem nos lasers e não adianta, continua a complexada de sempre... Aquele lá, saindo do carrão, todos sabem que tem o pinto pequeno, pequeno e torto, como uma vírgula, belo monte de merda: trai a mulher, manipula as pessoas, é fofoqueiro, se acha importante e respeitado, mas nem sabe que a filha está grávida. Essa que nos acenou, já lhe troquei os cueiros, uma bela de uma caga-regras, preguiçosa, puritana, alcoólatra, sempre vem com lição de moral para os outros sem ter nenhuma ela mesmo, não tem amigas, e o marido tem um caso com outro homem...um mecânico!
            ― Mãe!
― Que é?...
― Você não tem nada de bom pra falar dos outros?
― Cala a boca. Você é uma árvore sem frutos.

Eunicianas#3



você telepatiza

em voz frame

poemimagem

som

em movimento

 

peixe pesca palavra

palavra

pesca

peixe

 

você nem sabia que eu

era

anarquista

comunista

ludita

anacoreta

 

nem quão estreita é a porta

que nos solta

dos sonhos

 

toque meu nome da próxima

vez que você me

encontrar


 

o corpo

perdeu a casa

perdeu a cama

perdeu o perdão

e o dia

construiu arranha-céus

de teto

baixo