domingo, 23 de setembro de 2012

uma relação pornográfica (parte 1)



            Um padrão de reconhecimento. Ou um reconhecimento de padrões, tanto faz. Acontece que tenho essa habilidade, ou desenvolvi, sei lá; na verdade talvez não seja grande coisa, apenas o bruto instinto reprodutivo em ação. Sejamos bem diretos: sexo, e da modalidade aleatória, quase um encontro animal. Uma coisa antiga como o mundo, mas que não parece tão deslocada assim na grande cidade ― toda a cidade verdadeiramente grande sempre carrega a história do mundo nas suas veias, nas suas vias, nos cruzamentos em que esbarram os átomos da sua geografia humana. Às vezes, nestas colisões produz-se a faísca primitiva, e então a natureza, como diziam os antigos, segue o seu curso.
            Os reaças, fundamentalistas de todos os credos e patrulheiros da moral alheia em geral, podem até parecer toscos nas suas concepções, mas não se enganam quanto ao fato de que, quando dois humanos se encontram em território livre, o couro pode comer sem muita mumunha e negaceio. O que é do bicho, o homem também come (e como). E não há necessidade alguma daquelas situações clássicas do encontro de desconhecidos: a viagem de trem, o cruzeiro nas ilhas gregas, a micareta em Parintins, ou a mulher do esquimó, hospitaleiramente ofertada. Qualquer preposição pode servir à cópula, é preciso apenas estar vigilante e reconhecer esse não sei quê do andar, que tanto está num jogar dos cabelos, como num olhar que demora um segundo a mais; ou, quem sabe, circula nos infraperfumes que só o sentido feral capta.
            ― Os caixas recebem pagamento em cheque? ― ela perguntou para um dos funcionários de coletinho que orientam os clientes do autoatendimento. Pensando em retrospectiva, acho que também pode estar na voz: aquele acento rouco, praticamente imperceptível na nossa espécie, mas que denuncia a disponibilidade com a mesma precisão do miado das gatas no cio.
OK. Estou fazendo um pouco de literatura, está certo; voltando: depois de me desmarcarem a reunião em cima da hora, aquela tarde de quinta feira já estava perdida. Desisti de voltar ao escritório por causa do trânsito; fui ao banco resolver umas pendengas. Enquanto o gerente consultava o sistema numa das mesas na parte da frente da agência, ela dirigiu-se para o fundo, para a fila dos caixas não-automáticos, aqueles atendidos por bancários de verdade; entediados como os clientes amontoados em fila serpiginosa. A cada minuto, balançava a cabeça dando uma panorâmica lenta que incluía uma espiada rápida na minha direção; da minha cadeira, mantinha-a sob vigilância na periferia do campo visual, e, assim que começava a rotação do rosto, posicionava-me para interceptar os olhos dela com uma mirada firme, frontal e radiográfica.
Enrolei o máximo que pude de modo a sairmos juntos pela porta giratória. Na rua, caminhei alguns passos ao lado dela até lhe dirigir a palavra.
― Posso conversar um pouco com você?...
― Não. Não costumo conversar com estranhos ― ela respondeu de bate-pronto, na chincha; mas uma cova discreta surgiu-lhe na altura do encontro dos lábios, descerrando a partir da direita da boca uma bela fiada de dentes alvos. Segui por ali.
― É, você está certa, talvez seja melhor te convidar para tomar um café. Assim deixamos de ser dois estranhos...
Paramos numa cafeteria das redondezas; pediu um café carioca e uma água com gás, tomei um expresso com meio saquinho de adoçante. Conversamos de boa, contou que era de Jacareí, bem casada, fez questão de frisar; vinha duas vezes por semana fazer um curso de home care para idosos no Sírio. Naquele dia tinham cancelado repentinamente a aula e resolveu ir pagar uma conta.
― Que coincidência, o universo conspirou para que eu te conhecesse ― contei-lhe da minha reunião desmarcada, mas ela não pareceu se impressionar muito com a sincronia cósmica dos nossos destinos.
― Deixa de bobagem, foi só um acaso. Esse teu xaveco tá com a maior cara de autoajuda, precisa de um bom upgrade.
― Hmm, tá, mas bem que a gente podia bebemorar este caso do acaso, não?
― Você quer dizer: tomar uma cerveja no meio da tarde?
― Cerveja não, champanhe.
Saímos dali direto para um motel. Tão logo subiu na garupa da moto, senti o corpão dela colando firme em mim. Tinha pegada, a mina.

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