Esta
é uma casa pequena, térrea, espremida num daqueles terrenos-lingüiça de pouco
espaço interno e externo, mas acredito que nunca acabarei de conhecer cada um
dos cômodos que há nela. Na verdade, jamais deixei inteiramente de viver aqui
desde que vim ao mundo, mas também nunca deixei de tentar escapar desta
ratoeira desde que nasci; nesta última vez, voltei para cá em meio às árvores
já floridas, com a nespereira do quintal zumbindo de abelhas e na rua os ipês
sem folhas exibindo seu ouro invernal. O céu está tão azul, o ar seco tão cheio
de luz dourada, que os olhos, acostumados à descolorida penumbra do interior,
parecem cegados pelo esplendor de uma demasiado feliz, quase insuportável,
intensidade, como os de um caburé surpreendido pelos raios do amanhecer, bate
as pálpebras e procura, aflito, seu velho campanário.
Da
varanda avisto ruas baldias e escuras que são menos solitárias que a minha vida,
mas que ainda possuem um encanto, uma harmonia arqueológica, conservada ou
reencontrada, a contrastar com o empalidecimento silencioso deste interior
fechado às pessoas e silencioso à fraternidade, sem roupas no varal debaixo do
sol, convivendo diariamente com a pedra dura das palavras da minha mãe,
palavras que fatiam o compacto do mundo, o real da existência ― e o fio da
esperança. Em todo canto que a vista alcança ressurge a impressão de uma antiga
cidade que não existe mais, substituída por esta outra abstrata, suntuosa e
frenética vitrine de marionetes angustiadas; cada passante parece um
morto-vivo, sobrevivente solitário após um surto de peste; por todo lado
constroem-se reluzentes prédios de cristal e aço, as galerias rebrilham, as
lojas regurgitam: todos são heróis, todos estão no mostruário, entediados
protagonistas de suas frágeis ou férreas teias sociais.
Não
sei como explicar de outra maneira: as portas da casa dos meus pais abrem
sempre para um quarto novo, e neste outro, até então desconhecido, cômodo há
uma nova porta, que abre para mais um quarto com uma porta, e assim por diante
até enlouquecer; não saberia dizer se há um limite, o que posso garantir é que
são quartos e portas comuns, como os de uma outra casa qualquer deste bairro
comum; aliás, como eram as casas
deste lugar antes que a cidade tivesse engolido o bairro inteiro e vomitado
impressionantes boulevards de compras,
serviços, templos e condomínios fechados ― só este pequeno quisto proliferante
de habitação sobreviveu entre dois edifícios multiuso de alto padrão; a vida
foi para um lado, e ficamos eu e a minha mãe anquilosada do outro, teimosas e
lastimáveis relíquias de uma extinta era geológica, arrastando o passo como se
pudéssemos alentar a marcha dos acontecimentos.
Acompanhei o
processo todo, por assim dizer, da janela: os vizinhos se mudaram para bem fora
da região, até meu irmão sumiu logo que pôde; sobraram os gatos-pingados
habituais: sapateiro, borracheiro, o mercadinho, a banca de jornal e a paróquia.
Nunca consegui conversar com o meu irmão sobre as esquisitices da casa, ele sempre
ficava com pressa para fazer alguma coisa importante e urgente, e deixava o
assunto para outra hora; hoje mora longe com a família e jamais nos visita,
manda dinheiro todo dia cinco; parece que a casa dele é normal, e agora já não
falamos sobre assunto nenhum. Quando criança, tentei comentar a estranha
particularidade com alguma das raras visitas e recebi como resposta que não
havia problema, afinal, toda a casa tinha suas manias, era só voltar pelo mesmo
caminho que ninguém se perdia; minha mãe, do outro lado da sala, me fuzilava
com o olhar.
Papai
morreu aos poucos e em silêncio, dia a dia engordando metodicamente, pacientemente,
até não sair mais do quarto, primeiro, e depois, quando ultrapassou os cento e
cinqüenta quilos, sem sair sequer da cama, onde o banhávamos e higienizávamos
como um bicho dócil, trocando duas vezes por dia as roupas e lençóis; no criado
mudo havia um revólver que não conseguíamos tirar dali nem durante o sono dele,
sempre achei que o usaria para tirar a própria vida, mas não, foi-se dormindo,
em paz como um anjo roliço. Parada cardíaca. Morreu sem fazer barulho, sem
explicar, nem se lamentar; nenhum gesto de revolta, explosão ou arrependimento,
conformado com um estado de coisas que não teve forças ou não quis afrontar, subserviente
até o último momento à atitude fria e sarcástica da minha mãe.
―
Esquece o revólver, deixa. Esse aí? Não tem coragem, nunca teve, não ia ser
agora...
Acho
que a minha mãe começou por esquecer a própria idade ― eu mesma já não lembro
quando faz anos, nem quantos ―, até que terminou por se esquecer da compaixão:
não chorou no enterro dos pais, dos irmãos, do marido, e dos cães e gatos que,
aos poucos, deixamos de ter nesta casa, onde os pássaros não vêm e nem
pimenteira se cria. Não tenho a mais leve memória da minha mãe sorrindo ou
chorando. A pessoa que me trouxe ao mundo é uma máscara de ressentimento sem
começo e sem causa; aos domingos, supremo castigo!, tenho de a levar à missa,
as suas dificuldades de locomoção transformam o caminho de ida e volta num
suplício em câmera lenta, os comentários que faz sobre as pessoas que
encontramos na rua, revelam os abismos de fel que rumina eternamente, como a
esfinge do deserto.
―
Olha lá, a Peluda, gasta o que não tem nos lasers e não adianta, continua a
complexada de sempre... Aquele lá, saindo do carrão, todos sabem que tem o
pinto pequeno, pequeno e torto, como uma vírgula, belo monte de merda: trai a
mulher, manipula as pessoas, é fofoqueiro, se acha importante e respeitado, mas
nem sabe que a filha está grávida. Essa que nos acenou, já lhe troquei os
cueiros, uma bela de uma caga-regras, preguiçosa, puritana, alcoólatra, sempre
vem com lição de moral para os outros sem ter nenhuma ela mesmo, não tem
amigas, e o marido tem um caso com outro homem...um mecânico!
―
Mãe!
― Que é?...
― Você não tem
nada de bom pra falar dos outros?
― Cala a boca.
Você é uma árvore sem frutos.
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