quarta-feira, 27 de abril de 2011

a vida noturna das cobaias - epílogo


[Insatisfeita com os rumos desta história, Rivka Rappoport exigiu conversar com O Autor em particular, diálogo que rendemos a seguir verbatim. Os dois se dirigem a um recinto fechado, situado num metanível. As duas únicas cadeiras do ambiente estão posicionadas uma de frente para a outra. Sentam-se.]

A: ― Que rubrica ridícula é essa aí de cima? E que porra de lugar é este?

RR: ― Segura a língua boçal, só porque saímos da SUA narrativa não quer dizer que os leitores não possam NOS acompanhar aqui...

A: ― Aqui, aqui... isto aqui é lugar nenhum, é uma bosta de um não-lugar discursivo! Palhaçadas deste tipo é que fodem com o pacto ficcional leitor-autor, são o túmulo da verossimilhança e do foco narrativo... este nosso “diálogo” não passa de um excurso inútil e rebarbativo, subproduto da mania das digressões, a modinha das interferências e julgamentos de valor que nos legou o politicamente correto, essa fonte perene dos clichês pós-modernos!... pós-modernidade que, na literatura e na comunicação, aliás, só tem feito proliferar o ruído, o lugar-comum, a irrelevância e a euforia infantilóide ― O Autor tentou levantar-se, indignado, mas uma convenção tácita o prendia à cadeira.

RR: ― Humm, ficou putinho só porque agora não está mais no controle, é? Pois então, bonitão, seus dias de irresponsabilidade demiúrgica chegaram ao fim... você acha que é mole estar na pele dessa nerd sádica em que você me meteu?... Uma carreirista que vai para o Brasil, paga por uma das Big Pharmas, onde irá elaborar protocolos de testes de psicotrópicos em crianças africanas... É ruim, hem?

A: ― Estou farto. Pra mim chega, dar liberdade aos personagens tem que ter um limite... minha filha, acabei de introduzir você na trama, criei um clima, já, já, vai rolar uma tensão sexual entre você e o Oswaldo... serei generoso quando descrever seus atributos físicos mais adiante... ah, e ainda fui condescendente ao não revelar que você matou aquele rato a estiletadas...

RR: ― Sim, claro, Sua Alteza, O Grande Artista, cuidou para que se criasse logo de cara a empatia; primeiro você dá corda forçando a identificação com os meus sentimentos, depois, enforca no repuxo, quando aparecem as conseqüências dos meus atos... Foi isso que você aprendeu nesses cursos de escrita criativa? Eu era para ser só uma personificação da malvada economia de mercado e encarnar o casamento perverso do Saber com o Poder; mas acabei ganhando profundidade e relevo, uma certa ambigüidade de caráter que provoca a aderência do leitor, hipócrita e irmão.

A: ― Você não entende? Este desvio metalingüístico em que caimos, esta maldita dê-erre, faz os leitores fecharem o livro e pular na internet, na TV, no joguinho de celular, no caralho a quatro... a competição é cada vez mais feroz pela deficitária atenção da humanidade... procura outro trouxa, o papai aqui já desistiu de escrever sobre a filhinha rebelde!

RR: ― Filha sua sou sim, mas você não é pai, é mãe. Você me carregou dentro de você, é verdade, mas quem me cria é esse aí, que está nos lendo agora (ou não). Sator arepo tenet opera rotas, o semeador que tem nas mãos as rodas da charrua; será possível que o discurso indireto livre tenha lhe transtornado a esse ponto e você acredite mesmo nisso? Um Taumaturgo que assegura com sua força a rotação do universo...

A: ― ...se Deus pudesse contar a história do Universo, o Universo se tornaria fictício...

RR: ― ... Deus pode muito bem ser apenas mais um frustrado como você, que precisa expurgar nas personagens femininas a rivalidade com a irmã, essa ciumeira que nem vinte anos de divã psicanalisaram... Ela ainda te paga umas contas de vez em quando, não?

A: ― Puta que pariu! O que mais temo nos meus futuros biógrafos é essa psicologia de boteco, explicar minha obra pelas taras, os complexos e a inveja; um papo de cocô-xixi, o pipi do papai e a tetinha da mamãe... Saco!...

RR: ― “Futuros biógrafos”, hahaha, olha só o pedante, se achando o Chuck Palahniuk dos trópicos... acorda pra vida senhor Narrador Onisciente Intruso, você é um escriba obscuro de uma língua periférica... se ainda escrevesse em inglês ou mandarim, vá lá... falando nisso, por que não estou falando a minha língua mãe?

A: ― Bah, língua madrasta é o que é... Você não imagina o sofrimento que é ficcionar, colocar-se entre parênteses e dar vida ao que é familiar e estranho em você mesmo, se doar... olhe para dentro de si mesma: tudo que vai encontrar é um eu fascista e intoxicado de auto-referência...

RR: ― Pára, pára, que eu vou chorar... quanto altruísmo e doação, quase me faz esquecer a aliteração imbecil: “r” de Rivka, de Rappaport e... de rato! Um recadinho em código para os seus amiguinhos acadêmicos se masturbarem com a vibrante línguo-dental.

A: ― Bom, mas o que é que você quer de mim? Por que me chamou?

RR: ― Quero... hãam, ficar viva...

A: ― Kkkk, a doutora PhD, senior researcher da Clínica Mayo pede misericórdia implorando pela sua inexistente existência?

RR: ― Você poderia não me eliminar antes do final do livro? Assim eu continuo viva indefinidamente, ou até posso voltar em outra história...

A: ― Entendi... só que, em vez disso, vou te libertar de vez, como fez o Pirandello com aqueles seis... Por que você não poderia se tornar Hamlet?, afinal, Sócrates existiu mais ou menos que os heterônimos pessoanos?, quem era Whitman, me, I ou myself? Dizem até que Bioy Casares não passou de um personagem que Borges inventou para escrever o romance perfeito que nunca escreveu...

RR: ― Ei, já ouvi falar disso: Kafka dizia que o Quixote na verdade foi uma criação de Sancho para poder viver uma vida aventurosa; você acha que eu poderia...

A: ― Faça o mesmo que eu fiz, crie um universo, dê-lhe consistência e espere... em pouco tempo assistirá seus personagens ganharem vida... e as coisas sairão inevitavelmente do seu controle...

[Rivka Rappoport viu-se repentinamente sozinha no vácuo. Entendeu que havia somente uma coisa que podia fazer. Ela criou o Céu e a Terra em seis dias. Por uma questão de direitos autorais, nosso relato não poderá ir além deste ponto, Rivka Rappoport assinou com uma grande editora e será convidada especial da Flip.]

sexta-feira, 22 de abril de 2011

a vida noturna das cobaias - 1ª parte



“― Brad costuma seguir uma minuciosa rotina no chuveiro: bate sete vezes no lado direito da cabeça, passa xampu na franja, bate mais sete vezes, desta vez do lado esquerdo, passa creme rinse e bate outras sete vezes. Alterna o lado das batidas para que nenhuma série fique ‘desequilibrada’; repete isto na parte de cima da cabeça e na parte de trás, depois passa para o rosto e o pescoço, e só então, passa para o resto do corpo...” ― a aula da pesquisadora Rivka Rappaport acontecia no salão nobre da Biblioteca Nacional de Medicina do Instituto Nacional de Saúde em Bethesda, Maryland, a alguns metros da avenida Wisconsin e a uns bons quinze minutos de carro do distrito federal, Washington DC.

Havia no ar a expectativa do laboratório chefiado pela Dra. Rappoport ganhar um apoio financeiro substancioso com a campanha nacional de conscientização sobre o transtorno obsessivo-compulsivo. “―... seus rituais envolvem não só a ordem que acabei de lhes descrever, mas também a forma correta de jogar a água e, uma vez terminado o banho, finaliza com a maneira correta de pendurar a toalha. Se ele, no decorrer do circuito completo do banho, inverter alguma das fases ou estiver em dúvida quanto a ter seguido uma alternância estrita das batidas nos lados da cabeça, ele tem de recomeçar tudo do princípio”.

“― Soltos ou em cativeiro, normalmente, os ratos passam um terço da vida acordada se arrumando. Arrumar o pêlo lhes permite regular a temperatura, devido à evaporação da saliva, bem como influencia o comportamento sexual, pela ativação do estro nas fêmeas via os diferentes odores da saliva do macho. Mas o ato de se arrumar também ocorre durante a frustração e o conflito; nessas ocasiões, os ratos se arrumam mais ainda... de toda forma, eles exibem um padrão fixo de se arrumar, tão complicado quanto o de qualquer um dos nossos pacientes.”

A lavagem dos ratos é sempre da cabeça para a cauda: primeiro o focinho é higienizado pelas patas dianteiras umedecidas, em seguida é lambido o resto do corpo, coçar e farejar o rabo encerram o ritual. Inúmeros agentes químicos e lesões cerebrais despertam o programa de arrumação corporal; se retirarmos da pituitária o hormônio adrenocorticotrópico e o injetarmos no cérebro da cobaia, o bicho começará a se lavar exatamente como faz em estado natural. Há também uma série de drogas que fazem com que o rato pare de se lavar. E era uma destas promissoras moléculas que a equipe da Dra. Rivka tinha acabado de sintetizar; ela precisava convencer os decanos do poderoso N.I.H. a investir numa pesquisa com cheiro de Nobel.

“― A questão é saber se alguns animais se arrumam demais devido ao stress da vida em cativeiro...” ― ela já estava acostumada a ver a cena ao acender as luzes pela manhã no laboratório de genética animal: entre as milhares de gaiolas, verificava-se que em algumas todos os camundongos amanheciam com os pêlos e os bigodes completamente cortados.

Todos, menos um. “― O chamado ‘rato-barbeiro’ só age de noite, em geral é do sexo masculino e nunca há mais de um por gaiola...” ― nem ela nem ninguém podia jurar o que quer que fosse sobre a interpretação correta daquele tipo de comportamento, mas lhe fornecera um modelo animal para testar uma linha de medicações que iriam revolucionar o tratamento de pessoas sofrendo de tiques, obsessões, superstições e compulsões que iam desde verificações e lavagens estereotipadas até manias esquisitas como arrancar todos os pêlos do corpo.

Na platéia, o executivo de uma grande empresa farmacêutica européia ouve com atenção cada palavra da palestra; Oswaldo Canhenho Jr vai convidar a cientista americana para uma aula magna no Colégio Latinoamericano de Neurociências, a ser realizada no seu país de origem dali a seis meses. Ele já sabe que o pleito da Dra. Rappoport não receberá verbas federais. Só espera que a fala dela termine para se apresentar pessoalmente, encontro que mudará dramaticamente a vida de ambos.

“― ...em toda a hierarquia zoológica existem exemplos de padrões inatos de limpeza do ninho ou toca, como a retirada de fezes, o enterro de dejetos, defecar longe de casa... hábitos tão básicos para a sobrevivência que fazem parte do repertório de quase todos os mamíferos” ― o que a pesquisadora não consegue explicar a ninguém, nem à sua terapeuta, é o desalento que o seu trabalho vem lhe provocando ultimamente. Rivka Rappoport começou a suspeitar que nunca vai ter um trabalho laureado com o prêmio máximo da ciência; no momento, porém, tudo que pode acessar conscientemente dos seus próprios sentimentos é que começou a sentir algo pelos ratos do laboratório.

É difícil achar um lado positivo nos ratos. Eles são sujos. Eles transmitem doenças, eles guincham, eles se multiplicam sem parar, têm costas peludas e barrigas oleosas. Eles fogem e se esgueiram o tempo todo, mas reagem quando acuados e partem para o tudo ou nada. Na semana passada ela surpreendera uma reação num roedor prestes a receber uma dose letal de medicação. Ele a olhou dentro dos olhos. Primeiro sentiu pena, depois desprezo, então, viu-se tomada por uma raiva cega que a fez fugir imediatamente antes que o matasse.

O que a levou a suspeitar que talvez existisse alguma coisa naquelas criaturas ― a mesquinharia desenfreada? O egoísmo congênito? O apetite voraz, que lhe cai com tamanha naturalidade e que tão cruelmente a lembrou dela mesma?


[Insatisfeita com os rumos desta história, Rivka Rappoport exigiu conversar com O Autor em particular, diálogo que rendemos a seguir verbatim. Os dois se dirigem a um recinto fechado, situado num metanível. As duas únicas cadeiras do ambiente estão posicionadas uma de frente para a outra. Sentam-se.]

domingo, 17 de abril de 2011

Os Fukushima - epílogo


― Olha pra mim vagabundo, vê quem vai te mandar pro inferno ― Iuri estava numa clareira com a arma engatilhada a poucos metros de um bandido que caíra na fuga e tentava desesperadamente recarregar a garrucha. ― Minha Nossa senhora, não pode ser... você?!

― ... ― Yuriko não conseguia falar, contra a vontade dela os olhos se encheram de lágrimas. Estava vestida como se fosse um homem.

― Por que você tá assim? O que é que você tá fazendo no meio desses caras?... ― tentou ser durão por alguns segundos, mas correu para abraçá-la chorando como a criança que estava deixando de ser.

― De que outro jeito eu ia te procurar? Meus pais não queriam me deixar sair de casa, os celulares mudos... as estradas todas zoadas... escuta, os outros não podem saber que... você sabe...


Iuri voltou para junto da queda d’água e chamou o tio para uma conversa a sós. Queria se despedir e também pedir-lhe a bênção. Contou que estava partindo com a matula, pediu para ficar com a arma que portava e para levar uma das montarias. Hideo ouvia os argumentos do adolescente calado, a cara trombuda. Pensava, pesava os prós e contras da história toda.

― Moleque, como é que vou dizer pro seu pai e sua mãe que deixei você ir embora com um bando de marginais?

― Tio, ser feliz não é só se agarrar a um lugar a vida toda, diz pra eles que torçam por mim. Quando chegar a hora, que vai ser a hora de todos, vou estar do lado dela e vou estar feliz. É o que importa.

Mário Hideo Fukushima tomou o rumo de casa com a noite caindo e o ânimo surpreendentemente leve; não perdera nenhum homem em batalha, recuperara uma parte do milho roubado e sabia que estava fazendo exatamente o que queria fazer, vivendo exatamente a vida que desejou para si. Lembrou de uma passagem quando tinha mais ou menos a idade do sobrinho, época em que a sua família estava longe de ser a potência econômica de hoje. Fazia a ronda nos puteiros da região, mas não tinha um tusto nem pra puxar um gato pelo rabo; pedia uma cerveja que tinha de durar a noite toda e ficava lá, fazendo-se de amigo das “tias”. Até que uma marafona lhe abriu os olhos e disse: “Marinho, não se engane, você aqui só faz papel de tonto, a gente chama caras como você de ‘chimbador’: o sujeito vem, sente o perfume do amor, passa a mão, admira a mobília e... não faz nada! Guarde, espere, e só apareça quando puder ter uma dama de verdade”.

Ela estava certa. E agora, com o prazo encurtando feito um pavio, mais ainda perda de tempo seria viver no faz-de-conta, na mágoa disfarçada de saudade, ou mesmo praticar a violência desenfreada. O problema está justamente no tempo que se leva para perceber: sabemos imediatamente quando (quanto e como) sofremos, antecipamos milhões de dores imaginárias, o que muitas vezes só descobrimos depois é o tempo em que éramos felizes e não sabíamos. A velha história do farol que só ilumina para trás. Levantou a vista para o céu estrelado e os seus olhos procuraram imediatamente Buluc Chabtam, que lá estava, cada vez maior, o seu brilho mortífero engolindo progressivamente as Três Marias. Pensou nos dois adolescentes fujões, depois pensou nele mesmo, na mulher e nos filhos. Ainda lhes restava mais alguns meses.

sábado, 16 de abril de 2011

Os Fukushima - parte 2


― Iuri, seu tio não gosta de ver você desse jeito. Você faz um bom trabalho no computador, como quando recebeu o aviso de que a represa da Ponte Nova tinha estourado, mas não pode ficar o dia inteiro ligado nisso. Não há mais tempo pra ficar banzando, descubra o que é a coisa mais importante de todas na sua vida e faça o que tiver que fazer.

― Hideo-san, não tenho feito outra coisa... estou atrás dia e noite da única pessoa que me interessa. A Yuri, tio... a merda é que a internet agora passa a maior parte do tempo fora do ar...

― Yuri? Ah, sim, Yuriko! Ela é da família Tomome, não?... hmm, aquele pessoal lá como é que ficou? Lá também se arruinou uma barragem, não foi?, a Ribeirão do Carmo...

― Agora tenho uma informação, ela foi vista aqui perto, a leste de Ribeirão do Pote...

― Hmm, aquilo lá tá tudo alagado, a rodovia submergiu e o mato virou várzea... peraí, acho que é lá que estão muquiados aqueles vagabundos que cataram nossa colheita de milho, a gente podia chegar lá e tomar deles de volta ― Hideo calculava unir o arriscado ao útil, quer dizer, arriscado para o sobrinho, porque não havia garantias de encontrar a menina, mas útil para o seu grupo, onde vários homens estavam precisando descarregar sua testosterona contra um inimigo externo antes que se voltassem contra a própria comunidade.

Partiram cedo na manhã seguinte. O grupo reunia doze homens armados, três mulas e botes infláveis.

Por volta das duas da tarde, após descerem a estrada do Paraitinguinha, avistaram o talude derruído de uma pedreira que ficava contígua à rodovia Rolim de Moura. Um capiau passou com uma rede de pesca e um saco de juta. Cuidando para não serem vistos, os Fukushima resolveram cortar o caminho do pasto subindo por uma picada até o topo do morro, onde seguiram por três quilômetros de encosta até uma espécie de anfiteatro de erosão natural no meio das colinas. Um córrego descia morro abaixo partindo de uma garganta, parando ali como que para respirar numa lagoa escura e ampla rodeada por pedras. Cada um parou também para se refrescar, os homens se embrenharam na vegetação atrás de uns preás, o chefe da expedição sentou-se numa pedra à beira da lagoa e acendeu o cachimbo enquanto observava o sobrinho.

Um barulho na folhagem atraiu a atenção de ambos por um segundo; quando se viraram, na margem oposta havia um sujeito com uma cano serrado, à esquerda de onde Iuri se encontrava e bem de frente para Hideo. O cano da espingarda era um túnel escuro e indecifrável mirado diretamente neste, que permanecia cachimbando com toda a calma do mundo. Ninguém dizia nem fazia nada; os três apenas ficaram ali, sem se mexer do lugar, fixados no silêncio opressivo. Um gavião-carijó saiu do arvoredo batendo rapidamente as asas, até que ganhou altura ao pegar uma corrente de ar quente; lá do alto, soltou um guincho agudo que cortou os ares como um arrepio. Iuri entendeu que deveria entrar em ação para o tio escapar da cilada; jogou-se para trás do tronco de uma árvore disparando o revólver calibre 32 na direção do cara no outro lado do lago.

Hideo mergulhou para se esconder na mesma pedra em que estava sentado; ele ouviu o estampido dos tiros do sobrinho serem engolidos pelo da espingarda, que soou como um canhão ribombando nos morros da vizinhança. Sobre a sua cabeça, ramos de árvores e arbustos se rompiam como papel rasgado, lascas das pedras alvejadas se soltavam ao seu redor com um som metálico, a superfície da água verrumada por balas perdidas. O tiroteio generalizou-se num alvoroço fumacento e furioso; seus homens disparavam apavorados, fogos vindos do meio da capoeira respondiam, os projéteis passavam assobiando, perdendo-se no meio do mato ou escavando o lenho dos troncos com estalidos secos. Após um tempo, que pareceu durar horas, mas não passara de vinte minutos, a balaceira cedeu completamente. Pouco a pouco, os Fukushima se reagruparam em torno do chefe. Iuri tinha desaparecido.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Os Fukushima - parte 1


Supunhetemos
que de repentelho
o mundo se escabaçasse,
o que siririca de nós?
Nádegas, nádegas, nádegas...


Nos últimos tempos, essa cantilena, vinda de um ponto longínquo da infância de Hideo, irrompia-lhe no pensamento a qualquer hora do dia ou da noite; às vezes trauteava-a distraidamente em momentos vagos, até que se desse conta de que o fazia e parasse encabulado. Não tinha muitos ultimamente, os tais momentos ociosos, que lá isso não podia se dar a muitos desfrutes reflexivos; era uma situação muito delicada no mundo inteiro, e ele, na condição de homem de ação, tinha sido chamado a assumir uma liderança que lhe fora negada nos tempos da bonança. Se no plano coletivo a conjuntura era catastrófica, pessoalmente, Hideo experimentava, aos cinqüenta e seis anos de idade, uma inédita sensação de realização e plenitude: estava tão ciente como os outros de que ia morrer no cataclismo que se avizinhava, mas o reconhecimento tardio lavava-lhe a alma.

Tudo começara há quase um ano, quando a notícia começou a escapar dos meios científicos; a princípio, houve discórdias na confirmação independente dos dados, até que finalmente a comunidade dos astrônomos entrou em acordo que um calhau de cem quilômetros de diâmetro estava em rota de colisão com a Terra. Logo ficou óbvio que a espécie humana não sobreviveria ao impacto: o trambolho era dez vezes maior do que aquele que havia exterminado os dinossauros. O SKA, Square Kilometer Array, maior radiotelescópio do mundo, situado na África do Sul e o LINEAR, Lincoln Near-Earth Asteroid Research, consórcio da Força Aérea Americana, da Nasa e do Laboratório Lincoln do MIT, confirmavam que duas pedras gigantescas haviam se chocado no cinturão de asteróides que fica entre Marte e Júpiter, desprendendo um bólido batizado sarcasticamente com o nome do deus Maia dos sacrifícios humanos: 2012 Buluc Chabtam.

Hideo Fukushima meditava sobre a balbúrdia que era finar-se o mundo de maneira tão sem sentido, uma desorientação em escala planetária se instalara: as instituições, os freios éticos, as religiões, tudo despencara num fenômeno global e simultâneo em que se assistiu ao derretimento dos laços sociais no decorrer de poucas semanas. O Apocalipse com hora marcada da ciência suplantava os pânicos milenaristas das profecias, mandando o esmalte civilizatório para a casa do chapéu; as pessoas abandonavam suas casas, suas famílias, as cidades ficaram desertas, bandos erráticos em busca de alimento tornaram-se a principal ameaça. A paralisação da infraestrutura energética levou à suspensão geral do transporte e das comunicações, o mundo voltava a ser local. Toda a cultura, tecnologia e desenvolvimento se mostraram impotentes para deter o emissário cego da morte e do caos; seria castigo divino por conta da pílula e do casamento gay, os séculos de queima de hereges e combustíveis fósseis, ou apenas a indiferença moral da natureza?

Em tempos tão confusos, o clã dos Fukushima ocupava um território privilegiado no cinturão verde da Grande São Paulo e dispunha da tecnologia adequada para subsistir, já que havia se estabelecido entre os principais fornecedores da região horti-fruti-fungi-flori-granjeira de Salesópolis. A extensa rede fluvial, as matas de proteção a mananciais, a experiência com agricultura orgânica e a disponibilidade de enxofre, carvão e salitre ― ingredientes da pólvora ―, fazia daquela uma região auto-suficiente, desde que ali houvesse uma comunidade disposta a defendê-la. Hideo foi o primeiro a perceber isto e a convencer todos de que se se espalhassem, nada mais os juntaria; morrer por morrer, quanto mais tarde, melhor, e, permanecendo juntos, não estariam à mercê dos roubos, assassinatos e estupros das gangues nômades.

A mãe e os cinco tios, que o haviam preterido na sucessão da empresa familiar que fundaram, aplaudiam-no agora que, por um golpe do destino, ele tomava as rédeas e mantinha a todos unidos em torno de um objetivo comum: sobreviver enquanto desse. Como líder, sabia intuitivamente que a saúde de um grupo depende do bem estar de todos e cada um e por isso é que andava tão preocupado com as atitudes de Iuri; o sobrinho era o geninho da informática, passava o dia conectando-se aos fiapos de conexão que alguns abnegados ainda conseguiam manter na internet, mas o emburramento sorumbático do garoto ficava cada vez mais evidente. Era o tio querido do garoto, que o escolhera como padrinho da perda da virgindade; Hideo levou-o à zona e o apresentou a cada uma das putas pelo nome, como cavalheiro que era.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Saude não é Higiene



Freud decifrou o enigma da mulher. Depois o trancou na instituição psicanalítica. Até hoje, a professora diante do piano sentencia: penisneid

! Efeitos d´isso: se a assertiva provocar indignação, o homo sapiens (demens) se dedica a escrever o Livro Negro da Psicanálise. Se o assombro produzir identificação secundária com o agressor, então se dedica a defender a mínima diferença. Se for uma pessoa encantada, pode criar uma Terapia, como fez a artista plástica Lygia Clark. Em 1911, Sabina Spielrein escreveu: a “Destruição com Causa do Devir”. Boa coisa pra lembrar neste dia mundial.

Saúde!

despertar

mesmo que as idéias e as imagens faleçam

em descrever

assim é a imersão no instante-distância que

sempre esteve ali

como se nos tirassem um capuz

da cabeça

que amplitude infinita que alívio

ver o que não foi visto antes como

se a calota da cabeça explodisse e

um bando de pássaros revoasse para fora do

ninho escuro

de repente não há mais causa nem efeito

e tudo apenas se reflete no espelho

nada

pode amarrar ou desamarrar não há fogo

nem fogueira

as coisas como elas são transparentes

bruxuleios ilusórios do

desejo que não mais te fustiga/escraviza

você

apenas está no irremediável fluxo até

mesmo as metáforas que te dei estão

fundidas num

todo sem margens abrangendo o

estado de compaixão a sabedoria as bênçãos a claridade a

ausência

do pensamento este é o despertar do sonho que sonhava

a si próprio

um profundo senso de humor brota de dentro e você

sorri

divertido com a inutilidade do que até então te

preenchia e

só agora te dás conta que inexiste algo além

a procurar nada mais a ser

esperado


segunda-feira, 4 de abril de 2011

o silêncio da água


EU é uma outra
presença
um mala sem alça
EU é um outro
ausente
uma perna sem calça

o ser é a caça
do tempo
o humano sua
doença

Samba Shiva, samba
vai consultar Ifá
ensina a deixar
toda mágoa pra trás

o homem divide tudo por zero
carregando às costas
a má consciência
judaico
cristã
islamo
confucionista

plurivíduo
unimúltiplo recém-nato
apenas saído do
azul
do manto de Iemanjá

Samba Shiva, samba
vai consultar Ifá
ensina a deixar
toda mágoa pra trás