domingo, 24 de novembro de 2013

os apátridas (epílogo)



Na situação sem saída em que me encontro, não tenho outra alternativa que não seja pôr um fim a tudo. Será nesta pequena cidade dos Pirineus, onde ninguém me conhece, o meu ponto final. Peço-lhe que transmita meus pensamentos ao meu amigo Adorno, e lhe explique a situação em que me encontro. Não há tempo suficiente para que escreva todas as cartas que gostaria.
Nunca li nada escrito por Walter Benjamin. O que conheço das suas idéias é de ouvir falar. Mesmo estas linhas que transcrevi acima, me foram reproduzidas de memória por Henny Gurland, quando a encontrei anos mais tarde em Londres. Depois disso, perdi-a de vista, nunca soube do destino posterior dela e de seu filho. Acabei por me fixar nos Estados Unidos após a guerra, e só agora, exatos quarenta anos passados dos fatos aqui relatados, é que reuni coragem para escrever sobre algo que ainda dói como se tivesse acontecido ontem.
Acredito que sejam as últimas palavras escritas por um dos maiores pensadores do século vinte. A senhora Gurland precisou destruir a carta que as continha, premida pelas circunstâncias ameaçadoras de então. Seguindo as instruções do professor, o manuscrito da mala preta foi entregue a um homem identificado como Charles Marcel numa praça de Madrid depois de contato telefônico.
Naquele dia, retornei rápido para Port-Vendres. Não sentia cansaço algum, estava aérea, despreocupada, com a sensação de que o mundo perdera um pouco do seu peso insustentável. Lembro vagamente de ter encontrado três mulheres na volta, duas das quais conhecia de vista, que também faziam a travessia para o lado ocidental. Conversamos brevemente, trocamos informações sobre o trajeto e nos despedimos. Não dei importância maior ao fato, afinal, eram muitos os que tentavam a sorte nas montanhas naquele período nebuloso.
Poucos dias durou a minha alegria, porém. As más notícias, como de hábito, não tardaram: Walter Benjamin se suicidara em Port-Bou. As autoridades da fronteira espanhola avisaram ao grupo que eles seriam devolvidos à França, faltava-lhes o passaporte com visto de saída da França. Não havia nada a fazer, vigiam novas diretrizes aduaneiras: os vistos de entrada expedidos em Marseilles tinham perdido a validade, legalmente, não poderiam cruzar a Espanha. Os três caíram numa espécie de limbo, uma vez que não possuíam os documentos (cassados) de origem, passavam agora à condição de apatrides, ciganos, não-cidadãos sem eira nem beira.
Vivíamos na era das “Novas Diretrizes”, em que cada escritório governamental de todos os países da Europa parecia dedicar tempo integral a decretar, revogar, baixar e suspender novas ordens e regulamentos imigratórios. Era a barbárie na sua feição burocrática. Sobreviver não era só uma questão de se esconder nos sótãos, porões, campos e florestas, mas também de aprender a passar pelos buracos, desvãos e escaninhos da diplomacia em colapso. Algum funcionariozinho imbecil, em alguma repartição cinzenta, teve uma idéia... e conseguiu quebrar a espinha do Velho Benja!
Il faut se débrouiller, diziam-nos, é preciso ter a audácia e a malícia de cortar pelo nevoeiro, achar um caminho em meio à derrocada geral de valores que as guerras trazem inevitavelmente consigo. A maioria de nós se virava como podia, forjando tíquetes extras de pão e leite para as crianças, contrabandeando remédios para os doentes, ou falsificando documentos, permissões de qualquer tipo; outros, “colaboravam” com as forças de ocupação. Benjamin não era colaborador, nem débrouillard, mas uma dessas plantas frágeis que a civilização só consegue manter vivas em condições ótimas de razoabilidade e delicadeza.
A única certeza que carregava era a de que, nem ele ― e muito menos seus preciosos escritos ―, em hipótese alguma, voltariam para as mãos da Gestapo. O percurso acidentado o esgotara animicamente, estava certo de não conseguir repetir a façanha. Confessou-me durante a escalada que trazia morfina suficiente para tirar sua vida várias vezes, “caso sobreviesse o pior”. E foi o que acabou fazendo, ao ver-se acuado. Pressionadas pela repercussão do suicídio, as autoridades espanholas foram forçadas a revogar suas diretrizes kafkianas e liberaram seus companheiros de viagem.
Recentemente, o professor Gershom Scholem, melhor amigo e curador da obra de Walter Benjamin, me telefonou de Londres; falamos do seu trabalho e daquela sua última caminhada. Ele se interessou por cada detalhe que consegui lembrar, ao final, disse-me que nunca tinha ouvido falar da tal pasta preta, “até agora, ninguém sabia que tal manuscrito sequer existisse”. O mesmo me foi dito por outra amiga dele, a professora Hannah Arendt. Permanece até hoje o mistério sobre o paradeiro daquela mala cujo conteúdo era mais importante do que a própria vida.
Cada época sonha a seguinte. É incrível como um filósofo tão profundo, vivendo enfurnado em bibliotecas, um crítico apaixonado por autores do passado, tenha sido capaz de antever com tamanha lucidez as múltiplas configurações, padrões e formas do mundo contemporâneo. Vivo na América, o maior shopping center do planeta, onde o Velho Benja nunca pôs os pés, e, no entanto, este país encarna como nenhum outro a utopia destrambelhada que ele profetizou. O Hipermercado onde tudo e todos são commodities, Grandville, estão aqui: no sonho orgulhoso de liberdade, na desmesura dos arranha-céus, na imensidão das highways, no mais fútil dos modismos.
Tudo ainda me magoa tanto.
Às vezes me pergunto se a memória me pregou uma peça, depois, penso que não, poderia ter inventado tudo: os Gurland, a route de Lister, as mulheres que encontrei na volta, a patrulha nazista, mas não a maldita pasta preta à qual aquele pobre náufrago se agarrava. O que conteria? Aparecerá algum dia em um depósito velho de Madrid ou Zanzibar? Será que este livro perdido poderia ter aberto os olhos da humanidade e evitado futuras guerras?
Acontece que a sabedoria não se recebe, é preciso descobri-la por si, merecê-la ao final de um trajeto que ninguém pode fazer por nós, do qual ninguém poderia nos poupar ― porque a sabedoria representa um combate, derrota e vitória: ela é um ponto de vista pessoal sobre as coisas. Isto aprendi no alto da montanha.


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

os apátridas (3)



            ― Lisa, você nunca reza? Mamãe está lá dentro, rezando pelo komischer Kauz...
― Hehehe, você tem razão: ele parece mesmo uma coruja. Não, eu não rezo nunca... minto, rezo sim: pra esta loucura em que o mundo mergulhou acabe logo.
― Não consigo dormir, quer que eu fique de guarda?
― Obrigada, José, acho que nenhum de nós vai pregar o olho esta noite.
― O professor me disse que nunca houve uma guerra boa, nem uma paz má...
― Viu só? Não se preocupe, ele é muito inteligente, vai saber se virar.
A cena se gravou feito cicatriz na minha memória. Entre tanta gente que ajudei a escapar, a imagem daquele sujeito franzino no limite das suas forças físicas, e mesmo assim tão agarrado ao seu senso de dever, ficou para sempre em mim. Durante toda aquela noite branca pensei que tinha descoberto uma razão para continuar, havia finalmente um sentido no que eu fazia. Qualquer pessoa vale a pena ser salva de uma morte estúpida e inútil. Como todos os outros, o Velho Benja lutava por salvar a própria pele, a diferença é que, de uma maneira que então apenas intuía, ele o fazia também por nós. Pessoas assim fazem acreditar que a humanidade vale o sacrifício, que a barbárie não terá a palavra final.
Levantamos acampamento antes do sol surgir por trás dos montes; com alguma dificuldade, achamos a pequena trilha ladeada a noroeste pelo rochedo e seguimos, acelerando inconscientemente o passo rumo à clareira. Contornei o azinheiro quase correndo. Lá está ele! Sentado no mesmo lugar, na mesma posição do dia anterior. Sua aparência estava ainda mais amarrotada, a barba por fazer ainda maior, seus olhos de sonhador perdidos como nunca. Atiramo-nos sobre ele num impulso de alegria descoordenada, tropeçávamos uns nos outros, abraçávamos e beijávamos o constrangido intelectual.
Mein schätze, mein liebe Professor, como... como foi...?
― Oh, por favor, não chorem. Estou bem, nada me aconteceu, como podem constatar.
― Sozinho... aqui, ao relento... na noite fria!
― Por pior que seja, o presente é finito, encerrado na esfera do vivido, só a lembrança é sem limites, porque contém a chave para tudo que veio antes e depois. Vamos em frente.
Esquecer e partir. Foi o que fizemos imediatamente, era tudo que fazíamos desde que a praga do conflito descera sobre a Europa arrastando nossas vidas num turbilhão insensato de sangue e horror.
A subida foi ficando progressivamente íngreme, a trilha, mais e mais interrompida por mato bravo. Mantínhamos a orientação pelo platô dos sete pinheiros à nossa direita. Em certos momentos, a route Lister se aproximava da estrada oficial; antigo passo de contrabandistas, muitas vezes nosso caminho corria encoberto apenas pelo ressalto no bordo da encosta. Acima de nós poucos metros, escutamos soldados do Reich conversando enquanto fumavam numa parada. Prendemos a respiração petrificados, o idioma alemão agora provocava estas reações instintivas de medo.
Enfim, avistamos a vinha que indicava o melhor ponto de travessia da cordilheira. Não havia pista alguma no chão, a inclinação era praticamente vertical; subíamos agarrando as cepas lenhosas, carregadas da uva escura e doce de Banyuls. Pela primeira e única vez, o professor fraquejou, avisando formalmente que a escalada final estava além da sua capacidade. José e eu tomamos o pobre homem nos ombros, carregando a ele e sua bagagem morro acima ― respirava pesadamente, mas não fez uma queixa, nem um suspiro, apenas espreitava minuto a minuto a mala preta.
Quando alcançamos um vale estreito entre os espigões de pedra, paramos para comer. O vento soprava furioso, arrancando o chapéu da senhora Gurland. A água acabara. Comemos pouco, na verdade, ninguém comia muito: primeiro, tinha sido o campo de concentração, depois, o racionamento. Nossos estômagos haviam encolhido, nossos corações, também: estávamos sentados ao lado do esqueleto de um animal, e dois abutres sobrevoavam as nossas cabeças.
Enquanto os outros descansavam, resolvi sair para uma exploração das redondezas. Uma curta volta em meio a rochas escavadas pelo degelo, e então, vi. Lá embaixo, reaparecia o Mediterrâneo: do lado de onde viéramos, a costa francesa, do outro lado, bem à minha frente, o azul do mar da Catalunha. Com o Roussillon atrás, a norte, surgia diante de mim La Côte Vermeille, o mais magnífico arranjo de falésias, morros e vegetação, na qual o outono se divertia exibindo uma paleta luxuriante de todos os tons de vermelho, ocre, e laranja que existem na imaginação e fora dela. Estava embriagada de beleza e acrodementia, o mal das alturas.
― Se me permite uma citação de Proust, diria que esta é a beleza que nos promete um tipo de felicidade desconhecida, um prazer tão outro, que morremos sem saber que ventura seria essa...
Herr Benjamin, que susto! Não esperava que fosse o primeiro a me alcançar...
― Os Gurland estão vindo já. Senhora, não tenho como agradecê-la suficientemente pelo que fez por nós. É dona de uma grande alma, Fräulein...
― Pare, professor, peço-lhe. Já me fez chorar o que não chorei em meses... Veja ali, uma estrada de verdade! Sigam direto por ela até Port-Bou, têm os visas para atravessar a Espanha e chegar a Portugal, mas isso já está cansado de saber... Não posso me arriscar a ser pega em território espanhol sem visto.
― Adeus, e até breve!
― Adeus, vão agora.


sábado, 16 de novembro de 2013

os apátridas (2)


            Aquela era uma jornada sem volta para o Velho Benja (como chamávamos o professor), a senhora Gurland e o filho, José. Não pra mim: meu marido permanecera em Marseilles tentando obter o visto de saída da zona de ocupação. Naquele outono e no inverno seguinte ajudei centenas, talvez um milhar, de pessoas a atravessar a fronteira por aquele caminho, em condições ainda mais adversas e grupos maiores. Chegava a fazer quatro, cinco, travessias por semana, nenhuma delas, no entanto, me marcaria da mesma forma.
            A França tinha virado uma nação em fuga, la pagaille complète, ou o caos total, como diziam os nativos, um país inteiro movendo-se em direção ao sul. Atrás de nós, inúmeras vilas e cidades mortas, lugarejos sem vivalma onde cachorros e galinhas vagavam perdidos, e um único ruído ao longe, trazido pelo vento, o matraquear sinistro das esteiras dos tanques alemães. Nos portos da costa meridional, tornaram-se costumeiros relatos de planos de fuga tão audaciosos como improváveis, multiplicavam-se notícias de navios fantásticos, guiados por capitães de fábula, conduzindo fugitivos com vistos para destinos ignorados por Atlas e passaportes de países que deixaram de existir.
            Não estávamos com sorte. Muito antes da floresta de faias, castanheiros e abetos, na qual caminharíamos mais abrigados, ouvimos comentários dos trabalhadores da vindima indicando a presença de soldados nas cercanias; fomos obrigados a contornar os campos abertos, abrindo passo custosamente por entre touceiras e capinzais densos. Mantinha os movimentos do Velho Benja sob estrita observação: marchava em ritmo lento e incrivelmente constante, sobraçando o calhamaço, consultando o relógio constantemente.
            ― Que tanto confere no relógio?
― Madame, descobri que o máximo que agüento são dez minutos de marcha forçada, por isso é que fico lhe pedindo um minuto de descanso entre estes períodos.
― Posso lhe evitar essa canseira adicional, professor, eu o avisarei...
― Muito grato, porém, só consigo suportar condições iníquas se estiver totalmente absorvido por uma tarefa, enquanto controlo o tempo, ponho a minha mente a serviço de salvar a minha vida.
― Bem pensado. Escutem, vamos parar dez minutos, já estamos caminhando há quatro horas e meia. Senhora, na sua musette temos pão do posto de racionamento, tomates e um arremedo de marmelada do mercado negro. Bebam pouco, por favor, não sei se encontraremos fontes de água na região.
― Com sua licença, será que posso...?
Este era o professor pedindo tomates, o mundo se desintegrando cultural, moral e espiritualmente, mas nada seria capaz de fazê-lo abandonar seus modos de cortesão de Castela. Em qualquer época que vivesse, seria um cavalheiro de antigamente. No inverno anterior, antes mesmo da rendição, o governo francês começou a prender os refugiados do leste em campos de concentração co-administrados pelos nazistas. Meu marido, que o conheceu no campo de Vernuche, perto de Nevers, descreveu assim seu companheiro de prisão numa carta: “... mente aguda e clara como cristal, uma inquebrantável força interior, e o mais despreparado dos seres humanos para os assuntos práticos da vida”.
A cabana escondida por urzes e giestas não passava de um celeiro semi-destruído pela vegetação invasora, e o tal riacho a noroeste estava seco. Seguimos por encostas e vales pedregosos durante mais ou menos duas horas em silêncio. O tempo todo rememorava as instruções de M. Azéma: saia antes do amanhecer, misture-se aos vindimadores na subida, carregue apenas uma musette (pequeno saco a tiracolo), não fale. Guardas de fronteira facilmente identificariam nosso sotaque. As condições físicas do Velho Benja, porém, deterioravam minuto a minuto; sob a barba grisalha percebiam-se manchas vermelhas a tomar-lhe a face. O sol ia alto no céu, todos ofegavam desgastados pelo calor e o cansaço.
            ― Bom, bom, pelo nosso mapa, devemos estar bem perto de uma clareira e...
            ― Lá está, lá está! A clareira, a clareira!
            ― Shh, José, não grite!
            ― Ok, não gastemos fôlego à toa, vamos nos acalmar e fazer uma parada um pouco maior...
            Achamos a pequena trilha com uma ligeira inclinação à esquerda, então, o enorme rochedo a noroeste, finalmente atingimos a clareira. Vi quando o pobre homem desabou na grama exausto. O lugar não era propriamente seguro, e não tínhamos sequer alcançado a metade do caminho. Mãe e filho já aguardavam para partir, mas ele não se mexia.
            ― Você está bem?
― Sim, vou ficar bem. É melhor vocês três prosseguirem, eu fico.
― Como assim, fica?! Não vou deixar ninguém pra trás, além do quê, esta é uma região de touros selvagens, de contrabandistas e lobos... Tem idéia do que pode lhe acontecer?
― Não poderão me carregar montanha acima, nem ao menos até o abrigo. E a senhora, como me protegeria de um touro? Voltem para a cabana, passem a noite lá. Amanhã cedo, continuamos. Se algo me acontecer, a senhora Gurland saberá a quem entregar meu manuscrito na Espanha.
            Acabei por concordar, o raciocínio era linear: o coração dele não agüentaria esforço adicional, sua cota diária se esgotara. Quando partimos, estava sentado numa pedra agarrado à pasta preta ― em nenhuma circunstância largava o cartapácio, sua missão era arrastar aquele monstro e a si mesmo até o outro lado. A garganta me apertava como se fosse chorar a qualquer momento, deixar um homem daqueles numa situação daquelas me angustiava o peito com o peso de todas as montanhas dos Pirineus. Era uma situação de pesadelo, sentia-me largando um parente querido, abandonando uma criança sozinha no meio da floresta com a promessa de retornar na manhã seguinte.


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

os apátridas (1)



Port-Vendres, Pireneus Orientais, França. 25 de setembro de 1940.

            Na minha frente estava um homem de olhos pensativos atrás de óculos grossos aparentando bem mais do que os seus quarenta e oito anos, um menino de quinze e a mãe dele; à nossa frente, uma cadeia de montanhas e horas de escalada íngreme, margeando estradas por onde circulavam patrulhas francesas e alemãs. A Espanha ficava além das escarpas, dali em diante, era o mundo livre. Deveria guiá-los sozinha pela trilha mais a oeste, depois que a Garde Mobile fechara a estrada do cemitério de Cerbères, a passagem mais difícil, a de maior altitude e dificuldade. Eu desconhecia completamente la route de Lister.
            ― Minha senhora, aceite nossas apologias pela inconveniência, o senhor seu marido disse que poderia nos ajudar na travessia para a Espanha...
            ― Ele disse, é? Acho que essa é mesmo uma coisa que ele diria... mas talvez não tenha lhe dito que esta vai ser uma maratona vertical, disse?
            ― Tudo vai ficar bem, espero... que seja seguro. Sou doente cardíaco, teremos de andar devagar. Na viagem de Marseilles para cá, encontrei a senhora Gurland e seu filho. Pode levá-los também, senhora Fittko?
            ― Cardíaco?! Começamos bem... se essas são as boas, agora, as más notícias: primeira, ficamos reduzidos à metade da água e mantimentos; segunda, não sou a melhor guia pra esta região, na verdade, nunca fiz a rota oeste, tudo que tenho é um mapa desenhado de memória pelo prefeito. Topam o risco?
            Todos aceitaram. O maior risco seria esperar, ponderou o professor. O crescente trânsito na fronteira intensificara a vigilância, cada dia era mais perigoso que o anterior. Na guerra vivemos num presente aplastado, de traição, camaradagem, confusão e terror generalizados, sem nenhuma fresta de futuro, os dias nascem únicos, monolíticos, e o amanhã se distancia na bruma das miragens incertas. Não se desperdiçam oportunidades nem tempo, em tempos de guerra.
            Um dia antes estivera em Banyuls-sur-Mer, no gabinete do prefeito. Monsieur Azéma trancou cuidadosamente a sala com duas voltas da chave, para só então descerrar um sorriso de luminosa bonomia mediterrânea. Contou emocionado os lances da passagem usada pelo lendário general Enrique Lister, comandante do exército republicano, a quem dera apoio durante a Guerra Civil. “Ali se lutou pelo mesmo motivo desta guerra: fascismo ou república?”, teorizava o antigo militante socialista. Mostrei-me interessada na possibilidade de haver uma trilha. “Pouco provável, já são mais de três anos sem uso. Veja: as curvas a fazer pelo meio de descampados e áreas cultivadas, até atingir a floresta; dali, siga o riacho a noroeste e chegará à pequena cabana escondida entre urzes e giestas; quando avistar o platô dos sete pinheiros, mantenha-o sempre à direita ou vai cair muito ao norte; finalmente, a vinha que conduz ao ponto certo de atravessar a cadeia de montanhas. Depois do topo, já é a Espanha.”
            Estas instruções, rabiscadas a lápis num papel manchado, me pareciam pouco mais do que os mapas do tesouro das brincadeiras de criança. Mas era este guia que eu apalpava, dobrado no bolso das calças, enquanto reunia meu grupo de falsos camponeses saindo pra trabalhar às cinco horas da manhã. Era um começo de outono seco, o clima prometia calor insano na caminhada e frio na travessia dos picos.
            ― Professor, o senhor foi aliviado de carga, só pra levar essa pasta preta abarrotada de documentos?! Além de se cansar à toa, compõe o pior disfarce de lavrador francês que já vi.
            ― Este é o meu novo manuscrito...
            ― Mas, por que trazer isso na viagem? Veja só, o senhor arqueia com o peso!
            ― Senhora, precisa entender que esta mala é a coisa mais importante para mim. Não posso me arriscar a perdê-la. É o manuscrito que deve ser salvo, ele é muito mais importante do que eu neste momento.


sábado, 9 de novembro de 2013

a escolha do Supremo (final)


― Vem cá Gaúcho, duas mil e seiscentas, e mais uns quebrados?!
― Pelo menos! Essas são as cadastradas no sistema, fora as que a gente pega por aí e nem põe no currículo...
― Não dá, cara, é muita precheca!...
― Já fiz a conta, a média dá quase uma mulher a cada dois dias. Claro que não sou trouxa que nem os manés que vão no Bamboa, no Photo, no Bahamas, e pagam trezentos, quinhentos, por um programa que sai por cenzão na Augusta. E são as mesmas minas!
― Ah, sei não... vamos auditar esses números, a gente tem aí o cadastro do Casarão, não é?
― Isso mesmo, o dono ali é o cara, tem várias franquias, e lá não tem tempo ruim: é de segunda a segunda, a qualquer horário. Trinta e cinco pro quarto, mais bebida, o resto é da vagaba.
― Então, o mala tem mais de três mil no cadastro, e você, Gaúcho, tá dizendo que papou a maioria delas? Mano, tu gastou um picho nervoso em buceta!
― Ah tá... pelo menos com o sexo pago a gente sabe quanto custa, pra mim saiu duzentos e cinqüenta mil. Ponto. Em vez de carrão, gastei em mulher; meu sonho de consumo é chegar no scout do Renato Gaúcho: cinco mil.
― É, mas o cara sendo jogador de futebol, celebridade, fica mais fácil... Nunca te aconteceu de se apaixonar, tipo, ficar de love, a mina fazer no amor...
― Hã-hã, meu negócio é dar uma. Acabou? Próxima. A fila anda e a catraca gira. Toda vez que eu vejo um otário sair de mão dada pro quarto com a vadia, já começo a rir.
― Gauchão não quer romance, negócio dele é pontuar!
― Ah não, ficar de mô-mô pra cá, benzinho pra lá? Tô fora. A melhor maneira de sair de uma folie à deux é com um ménage à trois, uma paixão platônica se cura com uma trepada homérica!
― Hmm, mas então... se pá, capaz de tu ter papado a patroa do Futuro Sogro! Quer dizer, na época que ela tava na viração...
― Ei, ei, muita calma nessa hora... Vamo deixar mulher de amigo de fora da conversa, como dizia o meu avô: nunca beba sozinho, não jogue a dinheiro, nem coma a mulher do próximo, esse é o segredo da vida longa e sem encrencas.
― Ah, mas que pode ter acontecido, lá isso pode...
― Putanheiro de responsa come, paga, e vaza. Olha, pra cês terem uma idéia, já fui expulso de suruba por mau comportamento, mas comigo não tem essa de talarico... mulher dos outros pra mim é homem.
Os moleques ainda ficaram me apertando durante uma hora, mas não abri o bico. Não sou besta. A verdade não é coisa que se publique em jornal, muito menos se pode soltá-la na internet, ou em papo furado de mesa de bar. O fato cru e cozido é que sou um especialista em mulher da vida, enxergo de longe, elas podem estar vestidinhas de santas na balada, no shopping, na missa, na praia, em festa chique de gente bacana. Reconheço na hora que bato os olhos, e elas também.
Foi assim com a ucraniana do Aber e com a esposa do Futuro Sogro, que tracei depois de estar casada com o coitado. Pra não dar B.O., paguei o serviço de ambas. Não sou chegado em diz-que-me-diz-que, sexo pago sai sempre mais barato. O resto é contorcionismo de nego que quer tirar as meias sem tirar os sapatos. Exibicionismo barato.
― Senhoras e senhores, caros colegas, hoje, pela primeira vez numa escolha do Supremo, o aniversariante (eu, Gaúcho) fez o bolo que será em breve servido a todos. Isto não foi por acaso ou capricho, pensei muito sobre a melhor maneira de pôr em relevo a razão do meu voto, que coincide com a visão desta empresa na qual trabalhamos, nossa missão junto aos clientes e parceiros nesta jornada de quinze anos. Por que, no fim das contas, o que é a 1Q84? Uma empresa de serviços. Portanto, nosso trabalho é servir, entregar produtos e serviços de qualidade que facilitem a vida dos nossos clientes, que, por sua vez, servem aos seus próprios clientes e ao público em geral. Peço a vocês que reflitam comigo sobre a arte de ajudar, assistir a quem precisa, este equivalente comercial do amor ao próximo, tão pregado pela cristandade; pensem nisso: que pode haver de mais nobre do que servir a uma grande obra, colaborar no desígnio maior, aquele do Ser Supremo? Servir a Deus tem, desta forma, o valor máximo; servir aos outros, é a decorrência natural. É necessário ter a coragem de servir à sociedade, pois esta é uma servidão que liberta, ao contrário da desobediência às regras, geradora da violência e da baderna. Na desordem, perdemos todos, sem lei e sem um propósito, o ser humano cai na tirania do todos contra todos: o mundo Mad Max. Perdido o comando, abandonado o sentido de comunhão e serviço ao próximo, mergulhamos no pior dos cenários, aquele no qual, em vez de servir aos melhores, somos escravizados pelos brutos. O que é melhor?, ter um senhor, ou ser tiranizado por vários? A verdadeira essência do servir não é a obrigação, o “tenho que fazer porque me mandaram”, não, meus caros, a potência contida nesta aptidão humana vem da devoção, a devoção a uma idéia. Um punhado de homens e mulheres determinados por uma idéia comum pode conter um exército de milhões; lembrem dos Trezentos de Esparta: para resistir ao invasor bárbaro, antes é preciso se tornar sujeito grego. Ora, sujeito, súdito, cidadão, é aquele que se sujeita a uma idéia-guia, um conjunto de valores, e por isso mesmo, passa a ser dono do seu destino. (...) Aprender a viver é aprender com derrotas e perdas, as vitórias vêm em conseqüência deste aprendizado. A todos aqueles que aspiravam à Supremacia Bourne, peço que aprendam a perder. A vez de cada um chegará, havendo o merecimento. Então, pra encurtar a história, and the winner is...”


terça-feira, 5 de novembro de 2013

TRÊS MARIAS



Três pontinhos juntos
no escuro do céu
navegam na noite: são as três marias.

Uma era eu,
uma era você,
a outra era ela.

uma, virou freira,
a outra virou puta,
eu virei saudade, ainda estou virando...


domingo, 3 de novembro de 2013

a escolha do Supremo (4)


Se eu tivesse que arriscar uma hipótese ousada, diria que grande parte dos adultos não ultrapassa algum estágio determinado da infância, e que, por este motivo, a face da maturidade decalca invariavelmente uma caricatura da meninice. É como se o homem feito fosse um filho eterno da criança que foi ― e nunca deixou de ser. Ninguém cresce muito.
Tempos atrás, a rapaziada da firma resolveu marcar a happy hour de sexta feira num puteiro. Embora relutando por ser o chefe deles, acompanhei-os. A zona é a minha segunda casa, modéstia às favas, manjo tudo da etiqueta do brega, posso dizer, sem me achar a última bolacha do pacote, que conheço biblicamente a maioria das meninas do meio, suas tretas e comédias. Fato: elas vêm de lares desestruturados; mito: as que ficam na vida, gostam do rock and roll; fato: beijam, sim, na boca; mito: gozam, de verdade e não; fato: fazem um bom pé de meia, e se estabelecem; mito: cafetão já era, quase todas se autoempresariam. Amor verdadeiro, se pintar, entra de sócio; dono, só do coração.
O puteiro é um lugar perigoso para as almas juvenis. Seu ambiente de farsa feérica, o clima de parque temático dos encontros furtivos, emana neblinas que inebriam os virgens no mel da sedução feminina. Pois foi nesta visita que o Futuro Sogro, uma lamentável figura que usava enchimento na cueca, conheceu a esposa. Enquanto o infeliz não subiu ao altar, sofreu um calvário de chacotas dos colegas; uma vez amarrado na cruz do matrimônio, porém, estava criado o impasse: ninguém se atrevia a zoar um sacramento. O nascimento da filha do casal deu o mote.
― Aí moçada, olha aí as fotos da minha princesa...
― Puxa, parabéns, se tem um cara que merecia essa alegria era você...
― Como se chama?
― Brenda. Que foi... que silêncio é esse? Cês não gostaram do nome?...
― Bem, quer dizer... é que, tu não deu só um nome pra tua filha, tu deu a ela uma profissão!
― ... das mais antigas...
Num dado momento, tivemos de fazer uma escolha: ou permitir todos os apelidos, ou proibir geral. O que é do homem, o bicho não come. Senão some. Não teve jeito. No caso do meu sócio, a opção liberatória envolveu certas delicadezas: já era público o seu hábito de freqüentar sessões de swing, como ele mesmo frisava, um programa familiar, com a mulher, e coisa e tal. Até aí não havia irregularidade, segue o jogo. O detalhe foi uma certa festa de fim de ano na Nefertiti, famosa casa de sexo grupal.
― Escuta, cara, sabe com é, a notícia vazou nas redes sociais...
― É... não adianta esconder, o que aconteceu, aconteceu... Agora, nego por aí tem uma boca mole do carai... ― e olhava em volta, procurando adivinhar a identidade do dedo nervoso.
― Mas... ela, ela  tava lá com quem?...
― Com quem?! Ora, com quem?, com o inútil do marido dela! É foda, o camarada não tem o direito de ir com a patroa na casa de swing, sem ter que dar de cara com a mãe e o padrasto?
― Pensa pelo lado bom: sua mãe tá aproveitando bem a ajuda mensal que cê dá pra ela...
― Mamma Mia!
― Ah, cês tudo vão ralar o cu nas pedras, nessa porra de empresa mais se fala que trabalha!
A escolha do Supremo é um sufrágio à maneira germânico clássica: há apenas um grande eleitor, o aniversariante do dia. Um verdadeiro mistério a popularidade de que desfruta. O Supremo é simplesmente o cara que recebe a primeira fatia do bolo, nenhum outro privilégio, nada de imunidade ao trote dos companheiros durante o seu “reinado” ― que dura até ao próximo aniversário. Há um mandato extremamente curto, quando dois fazem anos na mesma semana. Não obstante, cria-se um frenesi em torno da escolha, com apostas a dinheiro, intensa especulação, palpites, cotação dos top five, campanhas por determinados candidatos, etc.
No passado, houve casos de fraude eleitoral, com compra de voto, jogo-de-comadres (eu te escolho, você me escolhe), escolhas de protesto, ou de bajulação, e tudo mais que faz parte do barro demasiado humano. A solução foi obrigar o eleitor a justificar sua preferência proferindo um discurso, o qual é julgado no seu grau de sinceridade. Uma escolha fracamente defendida, dá origem a um Supremo pouco considerado.