―
Lisa, você nunca reza? Mamãe está lá dentro, rezando pelo komischer Kauz...
― Hehehe, você
tem razão: ele parece mesmo uma coruja. Não, eu não rezo nunca... minto, rezo
sim: pra esta loucura em que o mundo mergulhou acabe logo.
― Não consigo
dormir, quer que eu fique de guarda?
― Obrigada,
José, acho que nenhum de nós vai pregar o olho esta noite.
― O professor
me disse que nunca houve uma guerra boa, nem uma paz má...
― Viu só? Não
se preocupe, ele é muito inteligente, vai saber se virar.
A cena se gravou
feito cicatriz na minha memória. Entre tanta gente que ajudei a escapar, a
imagem daquele sujeito franzino no limite das suas forças físicas, e mesmo
assim tão agarrado ao seu senso de dever, ficou para sempre em mim. Durante toda
aquela noite branca pensei que tinha descoberto uma razão para continuar, havia
finalmente um sentido no que eu fazia. Qualquer pessoa vale a pena ser salva de
uma morte estúpida e inútil. Como todos os outros, o Velho Benja lutava por
salvar a própria pele, a diferença é que, de uma maneira que então apenas
intuía, ele o fazia também por nós. Pessoas
assim fazem acreditar que a humanidade vale o sacrifício, que a barbárie não terá
a palavra final.
Levantamos
acampamento antes do sol surgir por trás dos montes; com alguma dificuldade,
achamos a pequena trilha ladeada a noroeste pelo rochedo e seguimos, acelerando
inconscientemente o passo rumo à clareira. Contornei o azinheiro quase correndo. Lá está
ele! Sentado no mesmo lugar, na mesma posição do dia anterior. Sua aparência
estava ainda mais amarrotada, a barba por fazer ainda maior, seus olhos de
sonhador perdidos como nunca. Atiramo-nos sobre ele num impulso de alegria
descoordenada, tropeçávamos uns nos outros, abraçávamos e beijávamos o
constrangido intelectual.
― Mein schätze, mein liebe Professor,
como... como foi...?
― Oh, por
favor, não chorem. Estou bem, nada me aconteceu, como podem constatar.
― Sozinho...
aqui, ao relento... na noite fria!
― Por pior que
seja, o presente é finito, encerrado na esfera do vivido, só a lembrança é sem
limites, porque contém a chave para tudo que veio antes e depois. Vamos em
frente.
Esquecer e
partir. Foi o que fizemos imediatamente, era tudo que fazíamos desde que a
praga do conflito descera sobre a Europa arrastando nossas vidas num turbilhão
insensato de sangue e horror.
A subida foi
ficando progressivamente íngreme, a trilha, mais e mais interrompida por mato
bravo. Mantínhamos a orientação pelo platô dos sete pinheiros à nossa direita. Em
certos momentos, a route Lister se
aproximava da estrada oficial; antigo passo de contrabandistas, muitas vezes
nosso caminho corria encoberto apenas pelo ressalto no bordo da encosta. Acima
de nós poucos metros, escutamos soldados do Reich conversando enquanto fumavam
numa parada. Prendemos a respiração petrificados, o idioma alemão agora
provocava estas reações instintivas de medo.
Enfim,
avistamos a vinha que indicava o melhor ponto de travessia da cordilheira. Não
havia pista alguma no chão, a inclinação era praticamente vertical; subíamos agarrando
as cepas lenhosas, carregadas da uva escura e doce de Banyuls. Pela primeira e
única vez, o professor fraquejou, avisando formalmente que a escalada final
estava além da sua capacidade. José e eu tomamos o pobre homem nos ombros,
carregando a ele e sua bagagem morro acima ― respirava pesadamente, mas não fez
uma queixa, nem um suspiro, apenas espreitava minuto a minuto a mala preta.
Quando
alcançamos um vale estreito entre os espigões de pedra, paramos para comer. O
vento soprava furioso, arrancando o chapéu da senhora Gurland. A água acabara.
Comemos pouco, na verdade, ninguém comia muito: primeiro, tinha sido o campo de
concentração, depois, o racionamento. Nossos estômagos haviam encolhido, nossos
corações, também: estávamos sentados ao lado do esqueleto de um animal, e dois
abutres sobrevoavam as nossas cabeças.
Enquanto os
outros descansavam, resolvi sair para uma exploração das redondezas. Uma curta
volta em meio a rochas escavadas pelo degelo, e então, vi. Lá embaixo,
reaparecia o Mediterrâneo: do lado de onde viéramos, a costa francesa, do outro
lado, bem à minha frente, o azul do mar da Catalunha. Com o Roussillon atrás, a
norte, surgia diante de mim La Côte Vermeille ,
o mais magnífico arranjo de falésias, morros e vegetação, na qual o outono se
divertia exibindo uma paleta luxuriante de todos os tons de vermelho,
ocre, e laranja que existem na imaginação e fora dela. Estava embriagada de
beleza e acrodementia, o mal das
alturas.
― Se me permite
uma citação de Proust, diria que esta é a beleza que nos promete um tipo de
felicidade desconhecida, um prazer tão outro, que morremos sem saber que ventura
seria essa...
― Herr Benjamin, que susto! Não esperava
que fosse o primeiro a me alcançar...
― Os Gurland
estão vindo já. Senhora, não tenho como agradecê-la suficientemente pelo que
fez por nós. É dona de uma grande alma, Fräulein...
― Pare,
professor, peço-lhe. Já me fez chorar o que não chorei em meses... Veja ali,
uma estrada de verdade! Sigam direto por ela até Port-Bou, têm os visas para atravessar
a Espanha e chegar a Portugal, mas isso já está cansado de saber... Não posso
me arriscar a ser pega em território espanhol sem visto.
― Adeus, e até
breve!
― Adeus, vão
agora.
2 comentários:
Pode parecer doideira o que vou dizer. Estava atrás de uma câmera e não sabia exatamente o que queria. Então, dei de cara com uma imagem a minha frente. Ela se movia deliciosamente e me provocava uma estranha emoção. Era um rio que se movia até uma ribanceira. Cheguei mais perto. Olhei, olhei... Era aquilo que procurava. Essa sua história me provocou o mesmo sentimento de quando vi aquela imagem. A diferença é que comprei a câmera. :) Parabéns. Pelos escritos anteriores, parece que você está mudando de estilo. Ou diversificando, não sei. Sou só uma leitora de passagem.
Sibilina
A pasta ou os personagens, alguém escapa?
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