“Na situação sem saída em que me encontro,
não tenho outra alternativa que não seja pôr um fim a tudo. Será nesta pequena
cidade dos Pirineus, onde ninguém me conhece, o meu ponto final. Peço-lhe que
transmita meus pensamentos ao meu amigo Adorno, e lhe explique a situação em
que me encontro. Não há tempo suficiente para que escreva todas as cartas que
gostaria.”
Nunca li nada
escrito por Walter Benjamin. O que conheço das suas idéias é de ouvir falar. Mesmo
estas linhas que transcrevi acima, me foram reproduzidas de memória por Henny
Gurland, quando a encontrei anos mais tarde em Londres. Depois
disso, perdi-a de vista, nunca soube do destino posterior dela e de seu filho.
Acabei por me fixar nos Estados Unidos após a guerra, e só agora, exatos
quarenta anos passados dos fatos aqui relatados, é que reuni coragem para
escrever sobre algo que ainda dói como se tivesse acontecido ontem.
Acredito que
sejam as últimas palavras escritas por um dos maiores pensadores do século
vinte. A senhora Gurland precisou destruir a carta que as continha, premida
pelas circunstâncias ameaçadoras de então. Seguindo as instruções do professor,
o manuscrito da mala preta foi entregue a um homem identificado como Charles
Marcel numa praça de Madrid depois de contato telefônico.
Naquele dia, retornei
rápido para Port-Vendres. Não sentia cansaço algum, estava aérea,
despreocupada, com a sensação de que o mundo perdera um pouco do seu peso
insustentável. Lembro vagamente de ter encontrado três mulheres na volta, duas
das quais conhecia de vista, que também faziam a travessia para o lado
ocidental. Conversamos brevemente, trocamos informações sobre o trajeto e nos
despedimos. Não dei importância maior ao fato, afinal, eram muitos os que
tentavam a sorte nas montanhas naquele período nebuloso.
Poucos dias
durou a minha alegria, porém. As más notícias, como de hábito, não tardaram:
Walter Benjamin se suicidara em
Port-Bou. As autoridades da fronteira espanhola avisaram ao
grupo que eles seriam devolvidos à França, faltava-lhes o passaporte com visto
de saída da França. Não havia nada a fazer, vigiam novas diretrizes aduaneiras:
os vistos de entrada expedidos em Marseilles tinham perdido a validade,
legalmente, não poderiam cruzar a Espanha. Os três caíram numa espécie de
limbo, uma vez que não possuíam os documentos (cassados) de origem, passavam
agora à condição de apatrides, ciganos,
não-cidadãos sem eira nem beira.
Vivíamos na
era das “Novas Diretrizes”, em que cada escritório governamental de todos os
países da Europa parecia dedicar tempo integral a decretar, revogar, baixar e
suspender novas ordens e regulamentos imigratórios. Era a barbárie na sua
feição burocrática. Sobreviver não era só uma questão de se esconder nos
sótãos, porões, campos e
florestas, mas também de aprender a passar pelos buracos, desvãos e escaninhos
da diplomacia em
colapso. Algum funcionariozinho imbecil, em alguma repartição
cinzenta, teve uma idéia... e conseguiu quebrar a espinha do Velho Benja!
Il faut se débrouiller, diziam-nos, é
preciso ter a audácia e a malícia de cortar pelo nevoeiro, achar um caminho em
meio à derrocada geral de valores que as guerras trazem inevitavelmente
consigo. A maioria de nós se virava como podia, forjando tíquetes extras de pão
e leite para as crianças, contrabandeando remédios para os doentes, ou
falsificando documentos, permissões de qualquer tipo; outros, “colaboravam” com
as forças de ocupação. Benjamin não era colaborador, nem débrouillard, mas uma dessas plantas frágeis que a civilização só
consegue manter vivas em condições ótimas de razoabilidade e delicadeza.
A única
certeza que carregava era a de que, nem ele ― e muito menos seus preciosos
escritos ―, em hipótese alguma, voltariam para as mãos da Gestapo. O percurso
acidentado o esgotara animicamente, estava certo de não conseguir repetir a
façanha. Confessou-me durante a escalada que trazia morfina suficiente para
tirar sua vida várias vezes, “caso sobreviesse o pior”. E foi o que acabou
fazendo, ao ver-se acuado. Pressionadas pela repercussão do suicídio, as
autoridades espanholas foram forçadas a revogar suas diretrizes kafkianas e
liberaram seus companheiros de viagem.
Recentemente,
o professor Gershom Scholem, melhor amigo e curador da obra de Walter Benjamin,
me telefonou de Londres; falamos do seu trabalho e daquela sua última
caminhada. Ele se interessou por cada detalhe que consegui lembrar, ao final,
disse-me que nunca tinha ouvido falar da tal pasta preta, “até agora, ninguém
sabia que tal manuscrito sequer existisse”. O mesmo me foi dito por outra amiga
dele, a professora Hannah Arendt. Permanece até hoje o mistério sobre o
paradeiro daquela mala cujo conteúdo era mais importante do que a própria vida.
Cada época
sonha a seguinte. É incrível como um filósofo tão profundo, vivendo enfurnado
em bibliotecas, um crítico apaixonado por autores do passado, tenha sido capaz
de antever com tamanha lucidez as múltiplas configurações, padrões e formas do
mundo contemporâneo. Vivo na América, o maior shopping center do planeta, onde
o Velho Benja nunca pôs os pés, e, no entanto, este país encarna como nenhum
outro a utopia destrambelhada que ele profetizou. O Hipermercado onde tudo e
todos são commodities, Grandville, estão aqui: no sonho orgulhoso de liberdade,
na desmesura dos arranha-céus, na imensidão das highways, no mais fútil dos modismos.
Tudo ainda me
magoa tanto.
Às vezes me
pergunto se a memória me pregou uma peça, depois, penso que não, poderia ter
inventado tudo: os Gurland, a route de
Lister, as mulheres que encontrei na volta, a patrulha nazista, mas não a
maldita pasta preta à qual aquele pobre náufrago se agarrava. O que conteria?
Aparecerá algum dia em um depósito velho de Madrid ou Zanzibar? Será que este
livro perdido poderia ter aberto os olhos da humanidade e evitado futuras
guerras?
Acontece que a
sabedoria não se recebe, é preciso descobri-la por si, merecê-la ao final de um
trajeto que ninguém pode fazer por nós, do qual ninguém poderia nos poupar ― porque
a sabedoria representa um combate, derrota e vitória: ela é um ponto de vista
pessoal sobre as coisas. Isto aprendi no alto da montanha.
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