sábado, 29 de novembro de 2008

As Origens do Romance


“(...)Vê cá a costa do mar, onde te deu
Melinde hospício gasalhoso e caro;
O Rapto rio nota, que o romance
Da terra chama Obi; entra em Quilmance.”
(Luís de Camões, Lusíadas, canto X, 96, 5-8)


Romanço ou romance, assim se nomeavam as variantes locais do latim vulgar, que se desenvolvem após a derrocada do império romano entre os séculos V e IX. A sua origem encontra-se na locução adverbial romanice loqui, literalmente, “falar à moda românica”, ou seja, a fala plebéia e popular, por oposição a latine loqui, “falar do jeito latino”, vale dizer, na linguagem oficial da regra culta.

Romanço (romancium) forma-se por substantivação do advérbio romanice e apresenta desenvolvimento semântico bívio: de língua vulgar, forma corrupta e divergente da fala romana, passa a designar a “fala popular de um país” de um modo geral; por outro lado, romance evolui também para “poema narrativo composto em língua popular” ou “conto, canção e narrativa em prosa”, noção hoje predominante.

Na primeira acepção, atualmente em desuso, vai acima o verso camoniano (é de notar no mesmo fragmento o uso de ‘rapto’ no sentido original de ‘rápido’); da segunda vertente, ainda transparece o antigo sentido em vocábulos como romanceiro, “coletânea de cantigas e contos folclóricos”.

Pode-se falar propriamente de romances hispânicos (o português resulta da transformação de um destes romanços, o galego-português), romances italianos, romances gauleses e assim por diante. Caso se mantenha como língua franca da Web, especula-se que o inglês ― língua de estrutura gramatical simples e regular, além de riqueza léxica ― pode vir a originar diversos dialetos locais. Novos romances (nu romances).

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

METAPHYSICS OF BEAUTY


with the problem of the universe
revolving
in me, I would say


“Roll on, thou deep and dark blue ocean, roll!”


I, too, roll
lulled by the blending cadence
of waves with feelings
into such an opium-like absentminded
unconscious

reverie

domingo, 23 de novembro de 2008

TVENDOPASSAR




mim
caminhando na multidão
por um breve instante
uma mulher
reflete o odor da vitrine
painel sinestésico, êxtase
mediascape
todas as histórias
já foram vividas
cada um destes lugares
visitados
por todos



aqui só há signos
ultra-violência
mais-que-realidade
vida por procuração
(pain by proxy?)
ou reciclagem permanente



FIQUEI ASSIM
DEPOIS DE
W. BENJAMIN

sábado, 22 de novembro de 2008

por que não me ufano... de ser h(um)ano - parte II




Deixem-me contar-lhes uma história que está acontecendo agora mas não parece, que neste exato momento é uma não-notícia, de tão escondida que fica na pauta das notícias e crises que não têm importância nenhuma:


“Começou de novo. Trezentos e cinqüenta mil. Talvez nunca tenha cessado de fato, pode ser até que nunca vá parar; pode ser que seja este o limite do humano: a recusa em desligar o horror; não vamos, não podemos, abrir mão da barbárie por mais que protestemos o contrário, por mais que não queiramos ver o que é o duplo da civilização, ou quem é a sombra deste animal atormentado acima de tudo que sofre e faz sofrer sobre a terra. Em poucos meses, milhares de mortos e milhões em fuga de suas cidades, seus porcos, suas galinhas, as plantações de mandioca, as suas casas. Claro, existem as associações humanitárias para aplacar a má consciência. Em alguns lugares há caixinhas de donativos na saída dos supermercados e os inevitáveis shows de rock para ajudar os refugiados. Não consigo deixar de pensar isto: já são neste momento 350 mil, a continuação de um massacre ocorrido há 14 anos que vitimou 1 milhão. Repito: um milhão de pessoas mortas em pouco mais de três meses. Houve um deus a que chamaram o Senhor das Moscas, o Príncipe dos Mosquitos, porque todos os insetos do mundo eram poucos para lamber o sangue sempre fresco das vítimas humanas que besuntava sua imagem. Mas isto foi na antiga Síria, este massacre está acontecendo na África, ao vivo, neste instante, on line, Apocalypse Now! Não quero mais concertos bem intencionados, nem as tropas da ONU chegando lentamente ao ‘teatro das operações’, nem os remédios e mantimentos sendo atirados de cima de aviões Hércules; esta não é apenas uma questão humanitária. Não quero livros-reportagem de jornalistas investigativos dez anos depois, não quero filmes-denúncia, QUERO OS NOMES DE TODOS OS CANALHAS, JÁ!! Quando vi o palhaço de óculos e gravata falando na Assembléia das Nações Unidas, logo reconheci, quando vi o palhaço de uniforme militar sentado numa cadeira com a bengala de castão prateado, entendi. Eles voltaram, ou antes, eles nunca saíram de lá. São os mesmos, sempre diferentes e sempre somos nós. Matam por fronteiras que não existem, matam por deuses que não têm nome, matam por riquezas que não ficarão em suas mãos, por etnias inventadas; matam em carnificinas que vingam outras carnificinas, orquestradas por outros palhaços sanguinários chamados de heróis da pátria. Trezentos e cinqüenta mil seres humanos massacrados, estupros em massa, meninos com metralhadoras a tiracolo, adolescentes chefiando pelotões, mutilações, incêndios, lavouras destruídas ― o homem chegou. Enquanto trilhões salvam bancos e mercados, milhões de pessoas vão para a barriga do grande Moloch. Há minérios lá, no Coração das Trevas, há manganês, ouro, diamantes e agora a preciosa colombita-tantalita, necessária para os computadores e celulares que eu e você usamos. Colateral damages do desenvolvimento. Cadê a tal da ‘imprensa livre’? Então ficamos assim, vou dando os nomes dos bois que conheço e quem souber mais, fale por favor: Mr. Dick Cheney, Mr. Dominique de Villepin (bonitinho, mas ordinário) e Mrs. Mitterand, père et fils. Vamos lá, não quero pensar que a humanidade é só um bilhete de ida pra lugar nenhum. Já são trezentos e cinqüenta mil.”

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

a moeda nº1 (sobre perdas, relíquias, coleções, fetiches e perdição)




Tio Patinhas ganhou uma moeda, primeiro fruto do seu trabalho, quando ainda era criança. Guardou-a. A moeda o desperta para a sua condição de sujeito de seu destino, em suas mãos está o arbítrio de fazer dela (e de si, portanto) o que quiser. Estamos autorizados a pensar que sentiu uma felicidade inefável e que tirou a moedinha de circulação como forma de conservar a memória daquela sensação. O tostão como ponto inicial do milhão ― e tudo poderia ser apenas uma parábola edificante acerca da acumulação capitalista ou uma caracterologia ingênua do temperamento obsessivo. Patinhas é um pato precoce, menos por ostentar suíças ainda patinho do que por ter descoberto a diferença entre prazer e gozo; neste, não se trata de satisfazer uma necessidade, física ou psicológica, mas de privar os outros do gozo que imagina que as moedinhas lhes proporcionam. Para que um tenha muito, lembremos, é preciso que muitos tenham pouco.

Acontece que o óbolo do jovem pato ganhou também uma natureza segunda, mágica, suprarreal, transcendendo sua função de troca e adquirindo valor cultual: a moedinha nº1 passa a ser intocável e ganha uma redoma que a separa do mundo profano. Como disse a imagem do Cristo a seus discípulos, noli me tangere. O objeto corriqueiro sofreu, assim, um extravio do seu lugar original, o envelopamento do tabu o tomou; de agora em diante está protegido no campo do sagrado por seu estatuto de relíquia. Captada no desvio-desvão da palavra, a relíquia não pode ser comprada nem vendida ― só pode ser transmitida ou roubada.

Patinhas cresce: de jornaleiro vira jornalista e, depois, dono do jornal A Patada. À primeira moeda seguiram-se muitas outras, ele fica rico, milionário, mais que isso: quaquilionário. Mas isto não o livra de ser presa da insegurança ante a possibilidade, bem real, de perdê-la para competidores invejosos de dentro e de fora da família. E é aqui que nos deparamos com o primeiro movimento do jogo de sentidos que o objeto-relíquia introduz: a relíquia é precisamente o objeto pelo qual se passa de uma significação a outra, sua plena visibilidade deveria garantir a Patinhas uma defesa contra a angústia de destruição, ainda que, paradoxalmente, participe dos mistérios da morte, até porque é a prova (material) dela.

Tio Patinhas sofre como o Fausto do poema de Goethe: quanto mais se expande e desenvolve seu império, mais infeliz se torna; contraditoriamente, na medida em que acumula, perde. Ora, se Patinhas/Fausto ganham mais e mais daquilo que os outros valorizam ― dinheiro, poder, fama, glória, gozo ―, em que nível se dá a perda? A derrota de Patinhas no que diz respeito à angústia ocorre logo de saída, enquanto amealha sua fortuna intui que algo lhe escapa: o sobre-investimento da moeda nº1 tem o dom ambíguo de realizar e estancar o luto da satisfação perdida, uma vez que a sacralização da lembrança também o adverte, por outro lado, do seu esquecimento. Se Patinhas é viciado na felicidade antiga, Fausto dirige (também inutilmente) sua vontade titânica para o presente, o Augenblicke, o piscar de olhos em que se esvai uma vida humana. Fausto é um adito no instante que passa.

O mesmo fenômeno se observa no Cidadão Kane de Orson Welles, pois Patinhas/Fausto também é Charles Foster Kane ― como todos nós, aliás ―, já que todo o sortilégio de seu gênio, toda a operosidade e esforço que emprega, não são suficientes para trazer de volta o que o tempo levou (rosebud). Kane se lança com fúria ao colecionismo: o trenó que perdeu junto com a infância é irrecuperável, por mais que construa um império midiático, que compre empresas, objetos de arte (estátuas principalmente), pessoas... Patinhas, um solitário como Kane e Fausto, poderia ser apenas uma radicalização da figura do avaro: um Harpagon que, em vez de enterrar seu ouro no jardim, encerrasse a si próprio na Caixa-Forte ― fortaleza-prisão que serve de fachada a um de banco de auto-investimentos narcísicos.

O que deveria ser o ponto de solda da supra com a infraestrutura supõe bem mais uma engrenagem de peça única: a moeda nº1 seria inútil sem a fortuna conseqüente, bem como esta seria impossível sem aquela, afinal, o capitalismo vive de boas estórias; cases de sucesso. A livre iniciativa se cumpre na, e pela, historicização das pulsões que constantemente deslocam a relação entre capital e trabalho e, para isso, se estrutura como trama ideológica, uma colcha de retalhos sempre incompleta de narrativas pessoais e coletivas. Ao inscrever o seu mito pessoal na dinâmica histórica da riqueza, o pato mais rico do mundo nos ensina preciosas lições sobre as formações substitutivas com valor de compromisso, a saber, relíquias e fetiches. Transformando uma moeda em relíquia, ele denuncia a alquimia social pela qual os produtos do trabalho se tornam mercadoria e esta, dinheiro.

Vestindo sobrecasaca, cartola, pince-nez e polainas, ainda assim Patinhas está nu da cintura para baixo.

Todos falham: Kane não pode comprar o talento que a sua amada não tem, Fausto não pode ser imortal. E Patinhas? Tio Patinhas, que junta moedas em sua caixa-forte como Casanova contabiliza amantes, não pode ter todo o dinheiro do mundo, pelo simples motivo que este, se não circular, não funciona. O triunfante fracasso de Patinhas não deixa de suscitar a emulação (e, claro, a inveja), tanto nas hostes do Bem como do Mal. O sobrinho-looser Donald tenta a carreira de jornalista, mas não ascende como o tio; o sobrinho-sortudo Gastão tem sorte, mas não chega a entesourar fortuna como o miliardário. Do lado do Mal, os Irmãos Metralhas não se cansam de tentar arrombar a residência-cofre e a Maga Patalógica de cobiçar seu amuleto de poder. O malogro deles deveria nos alertar sobre a perversão fetichista que rege o sistema em que vivemos: o perder e conservar contidos na relíquia são lados de uma moeda que sela um compromisso-parada em detrimento de uma verdadeira transvaloração da realidade.

O que aconteceria se em Patópolis um inédito buraco negro financeiro drenasse todo o dinheiro para a casa-caixa do ricaço avarento numa antibolha especulativa? Seria de se supor que, inteirada a série que começa na moeda nº 1 e afastada a ameaça representada pela ciumeira da comunidade, Patinhas finalmente encontrasse a paz. Muito provavelmente não. Seja em Patópolis, Manhattan ou Garanhuns, uma vez que se acede ao desejo, este desliza inexoravelmente de objeto a objeto, da mesma forma que, na linguagem, o sentido se desloca numa cadeia de significantes cujo início está interdito e cujo fim não se avista. No momento em que se apossa ― legalmente, é bom salientar ― de objetos que poderiam pertencer a outros (a série de moedas que vai ganhando), ele passa do gozo ao desejo, e aqui já se está no campo do Outro, onde o desejo serve à pulsão. Sendo um respeitável cidadão patopolense, Patinhas sofre do malestar da civilização, e.g., tem um Superego que se alimenta de pulsões insatisfeitas, vale dizer, daquilo que inevitavelmente falha como gozo. Nem todas as moedas do mundo restituiriam ao Tio Patinhas a magia do instante inaugural.

A angústia de não encontrar o inimigo

“Serei bem franco: odeio os deuses todos, pois pagam meu auxílio com maus tratos” (Ésquilo, Prometeu acorrentado, v 975).




A idéia de que não somos reconhecidos como deveríamos,
ou, pior ainda, que não somos reconhecidos absolutamente, promove a enfadonha insistência de sermos sempre o mesmo.
Não é fácil encontrar um inimigo que lhe diga, com todas as letras, não quero isso que você tem para me dar! Aí é o início, fim do ódio e do mau negócio.

os objetos agem

Se alguém numa madrugada tocasse
feridas recém-abertas
ou dissesse que estou preso a uma esfera
que nunca se rompe
nenhum poder se iguala àquilo:
um pássaro
durante seu vôo e a curva de uma pedra
arremessada
têm arabescos fluidos, redes disformes, riscos discordantes
balanço
o zumbido dos insetos transforma a duração
a dor
ocupa todo o pensamento, tudo
se move
de grau em grau
imaginariamente


Compreender aquilo a que estamos fadados significa estarmos conscientes de que isso é diferente de nosso destino.


Para operar no mundo
é preciso entender
como o mundo opera

você sabe?

Não quero porque não sei como vai ser

porque não sei como vai ser, estou achando estranho estar aqui

queria entender melhor as minhas reações

umas horas fico muito emocionada


montagem a partir de obra de Valéria Calado

e outras não sinto nada

como se estranhasse a mim mesma

Não quero ser uma adulta

que minta

que seja ambiciosa

que perca esse lado de criança

Você sabe por que sou assim?

terça-feira, 18 de novembro de 2008

presente de nascimento


Foto de divulgação do filme A liberdade é azul de Krzysztof Kieslowski

“Se com angústia no ânimo recém-ferido
alguém aflito ensombra o coração e se o aedo
servo das Musas canta a glória dos antigos
e os venturosos Deuses que têm no Olimpo,
logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os desviaram os dons (dora) das Deusas.

Alegrai, filhas de Zeus, daí ardente canto,
Gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos,
os que nasceram da Terra e do Céu constelado,
os da Noite escura, os que salgado Mar criou.”

(Hesíodo, Teogonia, vv. 98-107).


É simples assim: doreá, dádiva, dom, é um presente de nascimento, posto que inaugura um começo. Não custa caro, uma pessoa pode ver, escutar ou pressentir um dom noutra pessoa, e presenteia. Sendo um dom, a doreá vem do passado, mas, se fará presente no futuro. Por isso, a doreá é passado e futuro, que se dá de presente (era isso que Platão e Aristóteles procuravam com suas reminiscências: presentes de nascimento).

{na falta de melhor filosofia, antropologia ou psicanálise, qualquer presentinho pode fazer esquecer que a outra pessoa não te escuta}.


aos 9 anos já tinha perdido pai e mãe, hoje cato papelão, sons, plástico, cores, latas



episódio
na estrada emerge um caminho de
experiência feito, sensação
memorável porque criou
a surpresa


apaixonar-se
a melodia solta no espaço
sem ritmo, sem groove,
a ranhura faz a diferença
que servirá de alicerce
(a levada)
mesmo se for a primeira vez: reverbera
encontrando aquilo que poderia
ser de qualquer
um


o amor é um jogo de perdas
certas
o amor é um jogo de lucros
arriscados
ao menos tenho o ódio
certeiro
vidente
nele, meu claro demais
espelho


os amantes se incrustam
nos pedaços de concreto
que coloriram
um novo movimento
distribuído
à cidade

imaginação

Posted by Picasa
o áudio-visual e a internet demonstram que as representações de convivência humana estão destinadas à construção de novas possibilidades de encontro. como agem dentro-fora, permitem que conquistas se apresentem com vistas a transformar o mundo segundo seu próprio talento.

domingo, 16 de novembro de 2008

Seus atos e verdades suportam a indeterminação?




Foto do espetáculo "Bandoneon 2" de Pina Bausch


“Ademais, se as contradições são todas simultaneamente verdadeiras ditas de uma única coisa, é evidente que todas as coisas serão uma única (...) Assim, pois, os filósofos que afirmam isso parecem falar do indeterminado (aóristós), mas, acreditando falar do que está sendo/ ente (óntos), falam do que não está sendo / não-ente (me óntos). Pois o que é em potência e não em ato é o indeterminado” (Aristóteles, Metafísica, 1007b).

Aprende-se nos manuais de filosofia e de lógica que Aristóteles foi quem formalizou o princípio de não-contradição: uma coisa não pode ser verdadeira e não verdadeira ao mesmo tempo. De fato, diz o filósofo estagira, algo é verdadeiro quando, sendo de determinada maneira, é uma coisa e não outra. No entanto, a determinação,
o horizonte (horizo), surge da indeterminação (aoristía), como a verdade (alétheia) surge da potência do esquecimento (léthes). Assim, mesmo representando uma única possibilidade de determinação, a verdade evoca o espectro de indeterminação donde ela surgiu. É isso que lhe dá força: a indeterminação que ela suporta, e não, apenas, a determinação que ela representa.

No caso da amizade, a verdade de um abraço pode evocar a potência da indeterminação (aoristía) de onde ele surgiu. Nesse sentido,
a verdade traz em si as dificuldades que enfrentou para surgir,
e sugere outras possibilidades de surgimento. É diferente de um falso abraço que não pode evocar uma potência de indeterminação, e que não faz surgir mais nada.

{o aoristo é uma forma de declinação verbal que não especifica se a ação acabou ou não, uma indeterminação temporal}.

vejo tudo passando não sei para onde


foto de Maria Clara Verderame

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

por que não me ufano... de ser h(um)ano - I

se perder a memória
torno-me outra(s) pessoa(s)
ou fico cada vez mais
igual a mim mesmo?


o errante sem bagagem
solta o lastro da essência
mas conserva a paixão urgente
do acidental


neste caso a ipseidade
é seguramente um problema
metafísico
não seria mais uma
ilusão?


examinemos as soluções tradicionais:

- não podendo fazer a justiça ser forte
procura-se fazer com que a força seja justa
- se a autonomia é fonte da ética, pode a liberdade
intercambiar de meio a fim
- na Inglaterra medieval, ‘person’ na paróquia,
só o padre
- o rei pede um espelho quando os súditos falham
em lhe reconhecer a majestade
- os outros me vêem, em mim alguém me pensa,
ontologia do ator...


o (hu)mano devém um ser moral
(e nunca mais tira férias disso?)

beijar a boca
que me escarra
afiar
a garra que me afaga

Tanto te amo que te odeio


Foto do espetáculo "Onqotô" do Grupo Corpo
.
.
.
"É que, onde a luta falha enquanto poder de conservação/
libertação (sotería), começa a estagnação, o compromisso,
a mediocridade, a inocuidade, a degeneração e a decadência.
No entanto, essa luta - e este é o outro ponto para o qual convém chamarmos atenção - não é aqui a desavença e a discórdia fortuita e a mera inquietude, mas o confronto da grande oposição entre os poderes essenciais do ser" (Heidegger, Hinos de Hölderlin, p. 121).

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A sedução da verdade - o engano




Foto do espetáculo "Beeld behorend bij"
do grupo Nederlands dans theater ballet



"Seduzidos pela sua beleza, os homens envolverão de amor essa peste que lhes foi enviada, que eles não podem suportar, mas sem a qual não poderiam viver: é o diferente e a companheira dos homens. Réplica à artimanha de Prometeu, Pandora é também uma astúcia, um engodo, um dólos (artifício), o Engano feito mulher,
a Apaté (descaminho) sob a máscara da Philotés (amizade).
Ornada por Afrodite com uma irresistível kháris (dom), dotada por Hermes de um espírito enganador e de uma linguagem falsa, ela introduz no mundo uma espécie de ambigüidade fundamental; entrega a vida humana à confusão e ao contraste."
(Vernant, Mito e pensamento entre os gregos, p. 72).

Feita de barro, Pandóra (pãn - todo + dõron - presentes)
é a primeira mulher. Ela é a verdade (alethéia), aquela que não se esconde. Compreensível que ela tenha que nos enganar para seduzir, ela é um presente divino que nos dá o que não se tem.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Germe de uma riqueza de alguns dias


Foto do espetáculo "Vollmond" de Pina Bausch

No ensaio “Sobre a essência da verdade”, Heidegger se pergunta:
o que faz de uma moeda verdadeira? A comparação entre as moedas, esse é o critério. Mas a semelhança entre moedas de brinquedo não faz com que elas tenham valor de mercado. É algo externo que faz com que as moedas tenham algum valor. Esse mesmo algo externo faz com que o dólar seja valioso e a moeda do banco imobiliário sem valor. Tema grego por excelência, esse invisível que confere valor à moeda é o que a dignifica, justamente, por ser um dissimilitudo, um diferente absoluto (livre).
Por não ser inerente às coisas, o valor muda constantemente. É isso o que Aristóteles chama de vida (zoe ou phýsis): refletir, com o passar do tempo, mais ou menos valor. A lógica é simples: muita cópia, menos valor, ou seja, a produção de moeda provoca inflação (a mesma moeda repetida inúmeras vezes na memória basta,
até um sonho pode virar rotina).
No banco imobiliário isso não ocorre porque não há um mercado vivo.
Em toda sociedade, todo clã, toda família, há o recurso de eleger uma pessoa que não seja exatamente como as outras. Essa tal pessoa seria o valor das coisas que refletem valor, e visível, olha só que beleza. O papel dessa pessoa é estar no centro das relações de troca. Com ela ali, nada de inflação, de instabilidade, como se fosse um banco imobiliário. A pessoa passa a ser motivo e razão da existência das demais, como Édipo para sua cidade.
Ninguém está bem neste jogo, longe da força pulsante do valor que evapora para reacender noutro lugar. Atento à questão, Derrida encontrou um curioso phármakon. No livro A moeda falsa ele analisa um poema de Baudelaire, que foi amigo do socialista Joseph Proudhon, que não gostava mesmo de moedas. A tese de Derrida é que uma moeda falsa que se misture às outras pode ter um efeito terapêutico (libertário). Quando o sistema de valores das coisas passa a funcionar com uma moeda falsa, percebe-se que não era a semelhança entre as moedas que lhes conferia valor. Para exercer essa tarefa, a moeda falsa precisa ser semelhante às outras o suficiente para enganar, mas diferente o suficiente para instigar uma reflexão. E o mais interessante, a moeda falsa pode dar origem a um novo sistema de valores, pelo menos, enquanto refletir algo de estranho, de invisível:

“A moeda falsa talvez fosse, também, para um pequeno especulador, o germe de uma riqueza de alguns dias”. {Baudelaire, C. Pequenos poemas em prosa (trad. Gilson Maurity), p. 167}.

Alguém poderia questionar: então, tudo o que está vivo perde o valor? Sim, mas, uma sociedade que reencontre suas moedas falsas pode mudar e continuar valiosa, sem romper a união, posto que nem toda união é covarde. Ah! Estava esquecendo, Derrida chama a moeda falsa de sorte (tykhé).

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

DISSIMILITUDO


no calendário
há os dias pretos e os dias vermelhos
em vermelho são as festas e feriados, nacionais e internacionais, como o Primeiro de Maio
os dias em preto são quase todos
os dias
a história acontece em dias pretos
mas é lembrada nos dias vermelhos



tive pena do cão magro na rua
vivi um romance no cruzar de olhares
dentro do elevador
com isso os dias pretos ficam pretos
sem compaixão, sem amor



recordar
é fazer passar de novo pelo coração
precisamos celebrar sem dia especial
qualquer micro-explosão do ser
realçar os pequenos momentos afetivos
amputar a seqüência neurótica que repete
gastos fantasmas



comemorar
(lembrar junto)
re-produzir memórias íntimas, compartidas



e então abandono a idéia de tempo como sucessão
de eventos
e já não sei mais que dias são pretos ou vermelhos


terça-feira, 4 de novembro de 2008

a arte débil mental


Dissimilitudo – dessemelhança - diferença

Pintura de Manet, "O Balcão"
“Embora as criaturas tragam em si mesmas alguma semelhança com Deus, todavia permanece uma máxima dessemelhança (dissimilitudo), daí que só por uma grande insipiência aconteça que a mente seja enganada por tal semelhança” (Tomás d’Aquino, Verdade e conhecimento, p. 267).
Pintura de Magritte, "Perspectiva II: O balcão de Manet"
“O similar se desenvolve em séries que não têm nem começo nem fim, que é possível percorrer num sentido ou em outro, que não obedecem a nenhuma hierarquia, mas se propagam de pequenas diferenças em pequenas diferenças” (Foucault, Isto não é um cachimbo, p. 60).





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segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Martýrion


Foto do espetáculo "Bardo" de Toru Shimazaki




deî gar hyper tôn aphanôn tois phanerois martyríois khrêsthai” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1104a).

“pois devemos recorrer à prova/ testemunho (μαρτυρίοις) das coisas visíveis em defesa das invisíveis”.





martýrion = prova, testemunho, evidência. No grego cristão designa a prova da verdade pelo sacrifício, por isso a palavra martyr.
No latim cristão martyrium significa: testemunho de fé, o que se consagra a um santo. (Dictionnaire étymologique de la langue grecque, p. 660).


"In Japanese, 'bardo' describes the uneasy, suspended state of body and mind in the weeks immediately after death. " (Hedy Weiss, Chicago Sun-Times, September 2006).

domingo, 2 de novembro de 2008

Reminiscências


Foto do espetáculo "Bach" do grupo Corpo



tó parenokleîn eníous epeidan dé dýnontai anamnesthenai kai pány epékhontes ten diánoian, kai oukét epikheiroûntas anamimnéskesthais ouden hêtton, kai málista tous melankhólikoús - toútous gar phantásmata kineî málista” (Aristóteles, Sobre a memória e a reminiscência, 453a).

“Algumas pessoas se perturbam por não poderem (δύνωνται) rememorar, não apenas quando focam todo o seu pensamento nisso, como quando tentam não rememorar, isso é mais intenso
nos melancólicos – pois neles os fantasmas (φαντάσματα)
excitam-se de maneira intensa.”

sábado, 1 de novembro de 2008

ÉL




la presencia de lo inconmensurable

la tarea del artista:
atisbar qué passa en el
espíritu del mundo

el delirio no es sino una percepción empobrecida, desmembrada e incomunicable, aunque también una proliferación de significaciones inesperadas y la creación de un lenguaje nuevo con una coherencia interna y muchas resonancias poéticas para poder articularlas

las cosas son y
contemporáneamente significan más allá
del área habitualmente compartida
el artista establece asociaciones inmotivadas,
incomprensibles
desde el entretejido
intencional intersubjetivo

el mundo se torna autista y, con ello, lo contrario de mundo

hablamos entonces de
la metamorfosis de los significados y de las demandas parcelarias, y a la emergencia de honduras simbólicas que acercan a la institución de una realidad otra (una anti-realidad) inmersa en la epifanía de lo imaginario y en la fabulación del sueño

el mundo se le vuelve opaco, gigantesco y totalizador

sus imágenes superan la realidad
y se convierten en desiertos,
en páramos invasores,
su historia biológica y/o cultural
le pesa como una piedra de molino
atada al cuello

la invención de mundos se colorea de un color determinado (el color del yo)

construcción y constitución; el efecto de la primera es extraño al que construye, el de la segunda es parte de la vida del que constituye:
puede el pedrero construyer la casa del vecino, pero no podrá habitarla

chegada do trem a ‘La Ciotat’



Mulheres com saias longas indo buscar lenha
o colorido das roupas, o verde do campo
tudo acontece lentamente:
caminhar pelo campo
buscar a madeira
quebrar os galhos
amarrar os feixes
colocá-los na cabeça
e voltar

o rosto da mulher
o homem numa ilha distante
aventureiro, poeta e explorador
ele fala:
― as pessoas querem vidas de ficção e os personagens
aspiram a uma vida real
ela fala:
― apresentação, evolução, reviravolta, recomeço, clímax
Desfecho

― o terrível neste mundo é que todos têm suas razões
paguei pelos grandiosos prazeres
dores de barriga
náuseas
o eterno medo
invadido por uma sensação de culpa
que se acrescentava às emoções do espetáculo

3 estrelas de claridade maior que as outras
― prepare um povo para habitar a Terra no 3º milênio
Fazenda Metafísica e Teológica Princípio de um Reinado
Sadabi, filho de Jeová
irmão de Jesus
neto de O Eterno

uma criança nasce dentro de um ônibus
um homem é confundido com assaltante em um táxi
uma mulher viaja com os ossos da mãe morta
dentro de uma caixinha de fibra
casas, igrejas,pousadas dos tropeiros
tudo de pau-a-pique
fortes arcabouços de madeira
cadeiras, mesas, camas
que parecem estar suspensas do chão

encontros
que nunca ocorrem
relacionamentos
que terminam de uma hora para outra
hematomas
que simplesmente surgem em nosso corpo
a chuva
que cai de um céu ensolarado

depois que começa
a televisão não sai mais do ar
(nem eu tampouco)
a vida inteira será um filme
um filme feito para a televisão