domingo, 26 de setembro de 2010

Aldeia dos Quatro Montes - Cap. 3

Aldeia dos Quatro Montes

(se desejar ler os capítulos anteriores: Cap.01, Cap.02)

3

Ana Luísa e António Augusto caminhavam, lado a lado, pela Rua dos Prazeres. Aproveitavam o sol morno de início de Outono…
- Personagem interessante o Senhor Director… Aquela vénia apanhou-me de surpresa.
- É uma pessoa fora do comum, nunca imaginei encontrar num lugarejo como este alguém como ele. Sabe que é um apreciador de música? A colecção de discos que tem em casa é assombrosa!
- Já percebo porque tem tanta consideração e estima por ele…
- Sabe, Ana Luísa, quando soube que iria ocupar a vaga de juiz em 4 Montes, pensei que iria estar desterrado, afastado do mundo, durante uns longos cinco anos…
- Mas quem o oiça falar percebe que adora esta terra… Ou estou enganada?
- Não, não… Tem toda a razão. Sabe… Aos poucos, fui dando valor a esta tranquilidade, a este ritmo de vida em que tenho tempo para pensar… Em que tenho tempo para olhar uma paisagem e, se me der na gana, sentar-me numa pedra e ficar ali a ver… Sabe que há lugares muito bonitos bem perto da Vila? E as pessoas… Aqui ninguém corre atrás da falta de tempo. Talvez essa seja a razão de me parecerem usar bem a vida…
Subindo a rua, vinham Sua Excelência e o seu assessor. Ao aproximarem-se do casal, interromperam a animada conversa que os ocupava. Trocaram algumas palavras de ocasião e seguiram o seu caminho…
- O Senhor Doutor Juiz sabe escolher as companhias…
Luís virou ligeiramente a cabeça para melhor poder avaliar os atributos da senhora…
- Sem dúvida… Sua Excelência lembra-se daquela outra, uma morena? Este juiz tem bom gosto, lá isso tem.
- Deixemos o bom gosto do juiz e diga-me lá… Já tem o orçamento?
Luís informou Sua Excelência do valor e das características do equipamento.
- Não estava à espera de ser um valor tão grande… E quanto ao prazo de entrega? Já sabe algo de concreto?
Depois de ouvir a resposta, Sua Excelência ficou-se por um silêncio longo… Luís acendeu um cigarro pois sabia que Sua Excelência iria dirigir-se ao ArcoBotante, coisa que demoraria uns cinco minutos… Conforme iam andando, Sua Excelência era cumprimentado por todos os que por ele passavam. Sua Excelência tinha para com cada eleitor uma palavrinha…
- Então como vai? Aquele assunto, de que me falou no outro dia, não está esquecido…
- Dona Joaquina… A fruta está que até apetece comê-la!
E, com isto, os cinco minutos foram-se transformando em dez… Mal se sentaram, Sua Excelência botou sentença.
- Temos de ter isso pronto antes da campanha… Não quero que me acusem de só fazer as coisas em cima da campanha. Portanto, vamos organizar o processo de forma a que esteja tudo a funcionar lá para meados de Novembro… Acha possível? Cuidado com os atrasos. Essa empresa tem o hábito de nunca cumprir um prazo… Veja lá! Fale com o Engenheiro e faça com que ele perceba que, desta vez, não pode falhar!

O Jardim dos Emigrantes estendia-se a um dos lados da Rua dos Prazeres, bem em frente ao edifício da Administração. O lugar era bem agradável… Árvores de grande porte ladeavam os caminhos que convergiam para um espaço central, adornado por um conjunto de fontes. O ruído da água que jorrava em múltiplos jactos cruzava-se com o leve som das folhas que vibravam com a brisa…
Ana Luísa caminhava calmamente. Apreciava os canteiros com suas sebes bem aparadas e era atraída pelos arranjos florais que ainda embelezavam o jardim. Sempre gostara de flores e jardins…
O céu estava de um azul intenso, em que algumas nuvens, fofinhas e bem brancas, se arrastavam lentamente.
António Augusto tinha-a convidado a passar uns dias em 4 Montes. Para Ana Luísa o convite acontecera no momento certo… Já se conheciam há anos, muito antes de ter casado. António Augusto era um dos poucos amigos, daqueles que são mesmo chegados, do seu marido. Entretanto, a vida tinha continuado… Cada um fora para seu lado e só se tinham voltado a encontrar aquando do funeral de Júlio, ainda não tinha passado um mês. O lento apagar de Júlio tinha-a deixado extremamente desgastada, sofrida. António Augusto tinha-se disponibilizado para o que fosse necessário e ela tinha recorrido a ele para resolver aquelas pequenas minudências que sempre acontecem quando alguém morre. Agora, sentia que tinha de voltar a viver a sua vida… As memórias da vida com Júlio ainda a faziam chorar de saudade mas… Sentia-se com força e garra para construir tudo de novo. O sonho que tinham idealizado juntos já não era realizável. Nem fazia sentido nenhum tentar continuar algo que estava amputado, irremediavelmente amputado, de um deles…
Um passarito pousou bem à frente dela, na beirada de uma das fontes. Virou a cabeça na sua direcção e depois mergulhou o bico na água. Que pena não ter ali consigo a máquina fotográfica…
Estava na hora de passar no Tribunal para ir almoçar com António Augusto. Por falar em almoçar, que bem lhe soubera aquela torrada com mel… Fazia-lhe recordar umas férias na praia, em Lagos. Júlio…
Ana Luísa sentiu um aperto no coração… Uma lágrima surgiu do nada.


(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sábado, 25 de setembro de 2010

Apanhador de sonhos


A corda
enrosca
em nós
envolve
em volta
uma rede
enreda
retesa
tece
uma teia
enrosca
enrola
enlaça
a fita
laça
entrelaça
aperta
estreita
abraça

o desatar
dos nós
solta a corda
desfaz o laço
desenreda a rede
a teia do sonho
não filtra seu abraço.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

ERA TEMPO DE GOIABA


















Até aquela noite, ela tinha aguentado tudo: os gritos, as surras, a humilhação. Ela era casada...

Muitas e muitas vezes amanheceu com um olho roxo e botou o cabelo por cima, para esconder o hematoma. Mentiu que caíra encerando o assoalho, uma vez. Que o dente era um pivô mal feito, e que o quebrou comendo pão.
Aguentou tudo firme, sem gritar e nem dar a entender para o povo que era infeliz no casamento, que sofria maus-tratos dentro da sua própria casa. Que era vítima do próprio marido.
Na primeira noite, ao chegar em casa, foi violentada. Conheceu as verdades do sexo na marra, a poder de tabefe. Quieta, bufando no escuro horroroso do quarto. Ela era casada...
Foram anos e anos assim: apanha, serve o homem, apanha de novo, serve e cala a boca. Quanto tempo? Uma eternidade tão triste e tão longa que já nem lembrava mais o que era sorrir.
Mas, naquela noite, sabe-se lá por quê, sentia um negócio esquisito no peito, feito um rosnado de bicho acuado. Naquela noite aconteceu o que não era para acontecer, mas que já era de se esperar.
Naquela noite, mais uma vez ele chegou em casa bêbado, fedendo a bebida e a perfume de bordel, a rosas murchas e pó-de-arroz barato. Jogou em cima da mesa um pacote com carne de porco:

- Faz aí, anda!

Ela ficou um bom tempo olhando o pacote. Pensou na goiabeira da casa da mãe e na própria infância. Pensou que já era tempo de goiaba e que elas deviam estar maduras, de abrir na mão feito caixinhas de jóias. Lembrou da mãe, das irmãs pequenas e da vidinha até bem feliz que ela já tivera, um dia .
Um cheiro gostoso de goiaba começou a inundar a casa inteira, vindo da noite quente lá fora. Ela abriu a porta da frente e começou a andar sem rumo na noite escura, sem olhar para trás. Nunca mais voltou.

foto: "Dog Woman" - Paula Rego

2006

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

dezoito segundos

Quão
perto é o mais perto que você consegue chegar de um dinossauro? Do lado de um esqueleto de epóxi pintado numa exposição de arqueologia? Quanto a mim, lutei contra uma fera dessas com todas as minhas forças por dezoito segundos e, se não saí inteira, pelo menos estou aqui para contar a história.
Parece pouco,
dezoito segundos. Contados pelo meu marido que viu o começo da cena no alto de um barranco sem poder fazer nada. O importante é que me salvei, ele me salvou e os médicos também me salvaram.
Engraçado,
as duas primeiras coisas que me passaram pela cabeça, aparentemente, não tinham nada a ver com o que estava acontecendo; pensei na pesca do aruanã, um peixe carnívoro da amazônia, e no meu casamento.
Converti-me
ao judaísmo para poder casar com o Joel, em vão, já que descobri depois que não podia participar das principais festas do calendário religioso com os pais dele, freqüentadores da sinagoga dos Safra. O sobrenome Kogan, que não adotei, tem importância fundamental na tradição judaica: indica a descendência direta da tribo Cohen. Rabinos de verdade são da linhagem dos Cohen ou dos Levi.
Nunca
tive religião, queria apenas agradá-lo, conquistar a mãe dele e poder conviver com uma família grande e unida. Não tenho irmãos, perdi pai e mãe aos 20 anos, só restaram uns tios afastados e duas tias esquisitonas, Sônia e Vera, que cuidam da minha prima autista, Aline.
A outra
coisa que me veio à mente foi uma imagem terrível, a armadilha para o aruanã-prateado usando botos feridos. O aruanã sente o cheiro de sangue e vem de cardume para cima da gaiola onde está a isca viva, caindo nas redes da pesca predatória. Às vezes conseguimos tratar desses botos, abandonados feito lixo depois da
barbárie.
Vim para a Amazônia realizar a coleta de dados do meu pós-doutoramento; estudo o comportamento territorial e reprodutivo do pirarucu em Mamirauá, reserva ecológica no médio Solimões. O Joel desenvolve projetos de gestão pesqueira com populações ribeirinhas em áreas aquáticas protegidas; nos conhecemos na USP, ele terminando etnologia, e eu, caloura da biologia.
A noção
de desenvolvimento sustentável começou aqui em Mamirauá. Quase um milhão e meio de hectares de floresta tropical submersa, um mundo flutuante submetido a um regime de variação do nível de água da ordem de 20 metros. Um paraíso para cientistas, artistas, ativistas e... turistas.
Nada
contra o ecoturismo, o problema é que muitos pensam que estão no zoológico. Restos de comida humana, por exemplo, prejudicam a relação com animais in natura; uns imbecis aqui deram de alimentar um jacaré-açu de 5 metros e meio, só para filmá-lo alçando seus 500 kg para fora da água e abocanhando peixes no ar.
O vacilo
também foi meu, é verdade, mas a estupidez alheia contribuiu. Havia acabado de pesar e verificar as anilhas de um lote de pirarucus e despejava o tanque de coleta devolvendo-os para o rio. Um deles saltou de volta para o deque, peguei-o com jeito e me debrucei na beirada segurando firme pela guelra. E então,
o bote.
Uma bocarra com 80 dentes afiados saiu das águas escuras e fechou suas mandíbulas no meu braço esquerdo, me arrastando para o fundo. Como o som de taquaras secas, escutei os ossos do braço, do cotovelo e os ligamentos se quebrando instantaneamente. Ouvi um grito antes de cair
na água
― o Joel. Era como ter o braço esmigalhado por uma prensa mecânica, uma torquês operada por músculos descomunais; senti uma dor selvagem, desumana, uma dor que ninguém deveria conhecer; podia localizar cada ponto em que os dentes do bicho se enterravam na minha
carne
dilacerando o que encontravam pela frente. Os jacarés descendem de caçadores que estão aí há 230 milhões de anos, eficientíssimos, são predadores do topo da cadeia alimentar, tão eficientes, que caçam até outros predadores de topo como onças, pumas, jibóias e sucuris. Eu sabia exatamente o que ia acontecer
a seguir:
a dor tem esse efeito de nos tornar brutalmente conscientes. Tudo se passava rapidamente, embora fosse capaz de perceber a passagem de cada centésimo de segundo distintamente. Ele me levava mais e mais para baixo e para o meio do rio, remando propulsado pela cauda e as patas traseiras, enquanto à minha volta minguavam os fiapos de luz coados da superfície.
TRRLOOC!
Girando repentinamente sobre o seu eixo longitudinal, o gigante desencaixou completamente a articulação do ombro, supinando o meu braço num ângulo absurdo; a dor, que acreditava já estar no ápice, sofreu um acréscimo impossível, me conduzindo a novos e insuspeitados patamares do medo pânico.
Perdi
os sentidos na volta do parafuso, o bicho voltou a atacar com violência, girando agora o membro que já não sentia, na direção oposta; desceu sobre mim uma calma escuridão pouco antes de registrar que o meu braço tinha sido arrancado de vez por um último puxão

acordei de uma noite cega em pleno campo de batalha, conhecia as regras da luta: ele ia voltar, precisava engolir o naco que me arrancou para caber outro. Jacarés comem diariamente 10 % do peso na forma de presas vivas; eles não caçam propriamente, esperam imóveis, aguardam pacientes a vítima chegar desavisada, e só então se movem, rápidos, letais.
Algo
quis viver em mim; nadei louca para o cais, chorando alucinada, berrando, engolindo água, pedindo outra chance ― não queria morrer com 34 anos, não desse jeito. Realizei o sacrifício, entreguei uma parte à mãe d’água para ficar com o todo que sobrasse. Senti as mãos do Joel a me puxar pelos cabelos e camisa para cima do flutuante, do meu ombro jorrava uma coluna de sangue; nos beijávamos
abraçados
e ensangüentados, soluçando como crianças. Desmaiei de novo. Fui levada de barco e monomotor para a cidade de Tefé, onde fui operada de urgência; não posso exprimir em palavras a dívida de gratidão para com o Instituto, que me disponibilizou sua infra-estrutura incondicional e prontamente. Meu marido não saiu do meu lado.
Passei
um bom tempo me tratando, tranquei a pós, fiz análise, tomei 3 tipos de remédios para a depressão. Para minha surpresa, a sogra agora me tratava como da família, engolia sem questionar minha conversão fajuta na sinagoga reformista, onde homens e mulheres rezavam juntos, em português, e até rabina admitia. Joel me contou que desceu o barranco contando os segundos, procurando manter a vista no lugar onde eu desaparecera; ia encarar o jacaré-açu quando me viu subindo à tona.
A cabala
transmuta letras em números, e vice-versa, dezoito equivale ao valor numérico da palavra hebraica “Chai”, que significa “vivo”; no misticismo judaico, o número 18 corresponde ao poder da vontade na alma.
Finalmente
decidimos voltar para a floresta. Deixei a megacidade para trás como se fossem as fotos envelhecidas da infância de outra pessoa, hoje, no mapa do meu mundo, São Paulo é só memória, um pano de cimento sujo semeado de shopping centers. Selva bem mais perigosa que desejo
longe.

domingo, 19 de setembro de 2010

Aldeia dos Quatro Montes - Cap. 2

Aldeia dos Quatro Montes


2

Sua Excelência aguardava com expectativa que Luís, seu assessor, chegasse…
Felisberta, secretária de Sua Excelência, lia os jornais do dia.
Logo que o viu ao cimo das escadas, Sua Excelência mandou-o entrar para o gabinete e, fechando a porta, disse à secretária para não ser interrompido nos próximos cinco minutos… Ora, isto não era nada habitual e Felisberta ficou a matutar… Que teria acontecido? Que ela soubesse nada de extraordinário se tinha passado em 4 Montes nos últimos dias.

Entretanto, no Café ArcoBotante, a manhã decorria com a normalidade de uma qualquer quarta-feira, o dia mais calmo da semana.
Atrás do balcão, de braços atrás das costas, Salústrio, dono do estabelecimento mais bem frequentado de 4 Montes, olhava para o movimento que não acontecia no Largo da República.
Eram nove horas e seis minutos… Dentro de três minutos, a porta da casa amarela abrir-se-ia e às, exactamente, nove horas e dez minutos, o senhor director estaria sentado à mesa do canto. O Jornal das Notícias e um café (estupidamente curto… conforme desejo expresso do cliente) teriam de estar na mesa num piscar de olhos.
Tudo correu como sempre…
A porta abriu-se, o senhor director atravessou o Largo, o senhor director entrou pela porta do meio…
- Bom dia, senhor director!
- Bom dia, caro amigo!
- Cá está o cafezinho e o jornalzinho, senhor director.
O senhor director abriu o Jornal das Notícias, diário de distribuição nacional, que chegava a 4 Montes pelas sete da manhã, isto se o tempo o permitisse.
Salústrio dedicou-se à limpeza de uns copos e de uns cálices que já brilhavam antes de ele lhes pegar.
Bem gostaria de dar dois dedos de conversa com o senhor director. Mas não se atreveria a tal provocação… Era do conhecimento público que o senhor director detestava ser interrompido quando estava enfronhado na sua leitura matinal.
Além disso, Salústrio estava convencido que não demoraria muito a poder apreciar alguma animação.
O senhor Doutor Juiz tinha voltado no dia anterior da capital e deveria estar a chegar para tomar o pequeno-almoço. Uma torrada de pão centeio barrada com pouca manteiga de meio-sal e duas colheres daquele mel que só conseguia por especial favor e um galão, bem escuro.
Ao cimo do Largo, vislumbrou o magistrado…
Olá! Aqui há coisa… Quem será aquela senhora toda bem posta que o acompanha?
Saiu de trás do balcão, pegando num pano, e deu início à limpeza dos tampos das mesas, sem deixar de ir deitando uma mirada para o par que, calmamente, atravessava o Largo. Quando teve a certeza que se dirigiam para ali, aproximou-se da porta e abriu-a para dar passagem.
- Bom dia senhor Doutor Juiz, bom dia minha senhora!
Pelo canto do olho, percebeu que o senhor director tinha interrompido a leitura.
Acompanhou, à distância adequada, o par até uma das mesas:
- O Senhor Doutor Juiz vai desejar…?
- Ana Luísa, hoje vai poder apreciar uma especialidade aqui do ArcoBotante e de 4 Montes… Faça-me o favor de nos servir duas torradas, daquelas especiais e dois galões, o meu como sempre e outro mais clarinho.
- Com certeza…
Conforme, Salústrio se dirigia à cozinha para aviar o pedido, ouviu o magistrado dirigir-se ao senhor director:
- Senhor director… permita que lhe apresente uma boa amiga…
Salústrio já estava dentro da cozinha e não tinha linha de vista para a mesa do canto. Mas, nem era necessário… Sabia que o senhor director se tinha levantado, que tinha pegado nas pontas dos dedos da senhora e que, batendo os calcanhares, tinha feito uma ligeira vénia…
- Minha senhora, um vosso criado…
Ana Luísa ficou sem jeito… Nunca lhe tinha passado pela cabeça que aquele homem teria aquele gesto tão fora de moda… Olhou para António Augusto e ele veio em seu socorro.
...
A porta do gabinete de Sua Excelência abriu-se.
- Luís, peça esse orçamento… Para esta semana… E, não se esqueça, máxima confidencialidade… este assunto fica só entre nós! 

(se desejar ler o Cap. 1 clique aqui)


(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sábado, 18 de setembro de 2010

a estratégia r

Você já deve ter ouvido falar que os pobres têm muitos filhos porque são ignorantes, desinformados, não sabem usar métodos anticoncepcionais e etc., etc..

Besteira. E da grossa.

Pabulagem de gente bem nascida que acha que tem o monopólio da inteligência e sensatez, gente capaz de importar ― de lugares onde todos nascem inteligentes e sensatos ― programas de esterilização...

... de gente.

Seres humanos são, entre tantas coisas, organismos biológicos e, como tal, procuram se adaptar às condições em que vivem. Pobres têm poucos recursos, suas circunstâncias são instáveis, seu futuro, incerto.

Indivíduos e populações cujo ambiente muda constantemente reproduzem muito e investem pouco em seus rebentos. Chama-se a isto estratégia r, vale para bactérias, couves, suricatos e... humanos.

Quando o habitat é seguro, o alimento abundante e há poucos predadores, inverte-se a equação reprodutiva (prole menor, mais cuidado) e damos o nome de estratégia k.

Na época em que se passaram estes fatos eu trabalhava na EMBRAPA e percorria a fronteira Minas-Goiás a bordo de uma camioneta F-1000 vacinando o gado para deter uma epidemia de febre aftosa.

Nas grandes fazendas, com os pecuaristas alertados pela televisão, a vacinação em massa andava sem problemas; a minha missão era achar os pequenos criadores dispersos pela zona rural a noroeste de Unaí.

Cheguei com o fim da tarde a uma região conhecida como Valo do Traconhaém, onde, depois de tomar informação de um moleque a cavalo, segui mais sete quilômetros de trilha poeirenta até o sítio do ‘seu’ Benedito Pedrinhola.

Bené Pedrim, como se apresentou, me recebeu de boa mina, levantando-se da rede enquanto um enxame de filhos nos espiava com olhos curiosos e narizes ramelentos. As reses, que já estavam recolhidas no cercado, vacinei imediatamente...

... mas faltava um garrote, que Dona Emerenciana e a filha mais velha tinham ido recuperar lá pras bandas do outeiro. Esperei. Só ia sair dali com todas as cabeças imunizadas.

Assim que me vi partilhando a caninha de Nhô Bené em copos de requeijão rachados, proseando mansinho na sala da tapera sem luz elétrica. Lá fora, a criançada subia e descia pulando da caçamba da camioneta...

... numa algazarra de cem maritacas (eu só pensava se me iam escangalhar o isopor onde guardava as ampolas). Disse-me que a espera seria recompensada por um café passado na hora por Dona Ciana...

... que chegou pelo carreiro que contornava a casa por trás. Ouvimos a voz da criança levando o bicho para o cercado e um retinir de bacias de metal vindos dos fundos. Desconhecendo a minha presença, Dona Ciana chamou de lá ‘seu’ Bené:

“Marido, vai usar hoje?”

Roxo feito jambo maduro, Bené Pedrim tartamudeou constrangido:

“N... não, a causa que...”

“Antão vou lavar só os pé!”

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

dobras



Dobras vulvares
De uma rosa
Pequenas pétalas
Grandes lábios
De um beijo
No desdobrar do prazer



(edmar)
_________________
foto Paulo Tabatinga

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Cada um dorme como quer


Lucas era um homem grande, forte, de meia idade, funcionário do cartório de uma pequena cidade que experimentava um período de crescimento econômico. Fato este que atraia muita gente de todo lugar e o que era pior de toda espécie. Os golpes e calotes eram constantes, os preços subiam demais, tudo estava ficando caro demais, até os respeitáveis senhores, velhos conhecidos seus, pareciam ter perdido o bom senso e a cidade parecia contaminada por uma febre de ganância nunca sonhada.

Cada dia mais desgostoso e aborrecido começou a fazer suas compras em outras cidades, medico, dentista, tudo começou a ser utilizado fora da cidade, para ele e para sua familia. Comparava os preços e fazia questão de falar das diferenças em voz alta, deixando descontentes muitas pessoas, mas não se importava. O que não queria mesmo era ser enganado. Surrupiado como costumava dizer.

Numa bela manhã um caminhão parou na porta de sua casa e dois homens desceram procurando por ele. O filho mais novo correu até o cartório a procura do pai e assim que o encontrou comunicou-lhe o fato. Lucas saiu rápido e chegando em sua casa viu vários vizinhos andando nas imediações curiosos em saber o que trazia aquele caminhão roxo de Piracicaba, cidade que ficava tão longe dali. Alguns andavam como se nada quisessem, outras varriam a frente da casa, outros conversavam, mas todos atentos ao caminhão.

Lucas percebeu tudo, mas não se importou e foi logo cumprimentando os dois homens que em seguida abriram a porta de traz do caminhão roxo e de lá retiraram um caixão. Um caixão grande de madeira boa, todo envernizado com alças brilhantes de bronze e entraram na casa carregando o fúnebre objeto. Lá dentro travou-se uma discussão entre Lucas e sua esposa sobre onde iriam guardar o caixão, discussão essa que foi ouvida todinha pela vizinha da direita, depois de algumas ponderações de ambas as partes ficou resolvido que o caixão ficaria em cima do guarda roupa do quarto do casal. E por lá ele permaneceu por mais de 20 anos garantindo o sono tranqüilo do Lucas, que sonhava não ser enganado nem depois de morto.

domingo, 12 de setembro de 2010

Aldeia dos Quatro Montes - Cap. 1

Aldeia dos Quatro Montes

1

            A Aldeia dos Quatro Montes era uma pequena Vila...
(Para quem se questionar sobre esta discrepância entre Aldeia e Vila, aviso desde já que não tenho explicação para tal fenómeno… Talvez fosse a mania das grandezas, muito em voga naqueles tempos.)
Dizia eu que a Aldeia dos Quatro Montes é uma pequena Vila, perdida no interior.
Já tinha tido o seu tempo áureo, arrastando-se agora numa luta insana para fugir ao esquecimento.
A vida corria pacatamente…
Numa noite de Verão, em que a animação aumentava graças aos emigrantes que ali passavam as suas férias, um dos poucos cruzamentos perigosos da terra foi palco de um acidente entre dois carros.
Tratou-se mais de chapa batida, sem feridos, excepto um corte numa das mãos de um dos condutores… Nada que merecesse grandes preocupações.
No dia seguinte, o acidente foi tema de conversa nos bancos do jardim, nas mesas dos cafés e, até, na homília da missa da tarde.
Porque estes jovens de hoje são todos uns irresponsáveis…
Olha, que bebam água… E mesmo essa com cautela… que a nossa água tem muito grau!
Tinha que ser… Eu não vos dizia que naquele cruzamento ainda se há-de matar alguém?
As poucas vozes mais sensatas bem tentavam chamar a atenção para o facto de aquele ser o primeiro acidente em muitos anos mas, convenhamos, ninguém queria dar ouvidos a esse tipo de conversa…
Então, agora que tínhamos motivo para dar à língua, vinha alguém dizer que o assunto não tinha importância? Era o que faltava!
E o assunto foi ganhando amplitude…
O jornal local, que saía uma vez por mês, lá conseguiu trazer uma imagem dos dois carros, na primeira página. Os carros já estavam na oficina de bate-chapas do Alfredo. O director, e único jornalista do mensário, informava os distintos leitores de que o arranjo seria de pouca monta e o serviço seria rapidamente realizado pelas competentes mãos dos exímios trabalhadores da Oficina Carvalho (passe a publicidade… dizia o director).
Em editorial, o director perguntava se os poderes públicos estavam atentos ao que se passava na Vila… Na mesma página, surgia uma entrevista ao administrador da terra em que Sua Excelência se afirmava preocupado, afirmando que iria exigir (este “exigir” estava em negrito bem carregado) a quem de direito que se reforçasse o policiamento nas vias, principalmente, no Verão.
No final da página, numa caixa, o director do jornal fazia eco das preocupações de muitos dos habitantes da Aldeia dos Quatro Montes.
“ A nossa Vila merece mais… Basta olhar para os nossos vizinhos e perceber que estamos a ficar para trás…”
E terminava com um afagozinho ao poder local:
“Queremos acreditar que a nossa administração tudo fará para resolver este magno problema… Não será, certamente, por falta de empenho do senhor Administrador que este assunto morrerá no olvido.”
O senhor director usava uma linguagem rebuscada, quase rococó… Dizia ele que um jornal também serve para instruir!
Habitualmente, o “Mensageiro dos Quatro Montes” era mais lido por causa dos anúncios do Cartório do que pelas poucas notícias que lá vinham… No entanto, esta edição foi um sucesso…
Quem passava pelo senhor Administrador cumprimentava-o pela excelente entrevista e pedia-lhe que exigisse mesmo o reforço do policiamento.
Até porque, continuavam eles, qualquer dia ainda nos fecham o posto da Guarda… Já só lá estão meia dúzia de guardas, exageravam…
 Sua Excelência agradecia os cumprimentos e reafirmava a sua firme intenção…
Até que um dia, numa conversa com um dos seus colaboradores, lhe surgiu uma ideia…

(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010



a clinica na mídia

no dia dos pais, a Folha São Paulo publicou as desventuras em série de um pai diante da errância do filho psicótico. Mesmo sem obter resposta satisfatória, aquele pai acompanhou as peripécias de um filho, apostando num plano de consistência que comportasse uma subjetividade tão original quanto esquisita. Ele concluiu seu relato dizendo que o filho morreu por problemas cardíacos decorrente do uso de medicamentos, e alertou para o banal do fato.

no dia da Pátria, trouxe a trágica epopeia do menino Kyle Warren que começou a tomar antipsicóticos aos 18 meses. Como sua mãe estava “desesperada, sem saber o que fazer”, o psiquiatra achou que os remédios ajudariam a tratar o transtorno da criança: fortes acessos de raiva.

uma coisa que se ignora é o momento em que a loucura faz buraco no sistema, mas ela sempre se faz acompanhar da aversão à obrigação. Além disso, também é depositária do direito do sujeito de decidir por quais vias e enlaces devir.

a lição que se tira destas notícias: a psicoterapia é a chave para o tratamento, mas às vezes as famílias querem uma solução rápida e a terapia pode demorar um pouco para apresentar os resultados buscados. nunca esquecer que os medicamentos podem favorecer a melhora, mas que devem ser usados de modo suplementar.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Duplix por: Hod & Angela

Tela de Lourdes Castro .arte_facto hereges perversões


Vãos // Anseios

espreito frestas abertas // incompleto ser

gravito, lua longínqua luz // procuro palavras

varo noites por vãos // sucumbo, imensidão vital !

Hod Angela



Realizado com o amigo Hod do blog : O Olhar de Carpe Diem Para o Século XXI