quinta-feira, 31 de julho de 2008

despertar a alma é o fim último da arte


a arte destrói o humano
no homem
desperta
os últimos apetites
do espírito
Não somos rodeados por belas paisagens da natureza
mas por seres de estrutura diferente da nossa:
colinas,
rios,
semi-colcheias,
séculos e revólveres
São batalhas sublimes contra si mesmo (no íntimo de pessoas?)
não há, não pode haver, conciliação do Absoluto com a subjetividade
você me pede style,
eu, falsos instrumentos,
que substituam maneiras, visages, façons,
antes de pagar a conta,
vem a sua carta na manga, certeira, diabólica,
― a arte de viver será uma das belas-artes,
troque seu mapa de estrelas por um novíssimo GPS,
se oriente rapaz, qualquer problema pode ser fracionado em três dimensões:
a) afirmação do senso comum;
b) derrogação deste por uma posição antípoda;
c) anulação de ambos com o argumento da falsa dicotomia(fundo/figura, forma/conteúdo, essência/acidente, minimal/conceitual, trocadilhos, polissemias, a ambivalência irredutível da linguagem, etc., etc.)

nada é mais importante do que criar espaços para o nada

Obra de Karina Rejowski de Carvalho

O silêncio e o risco
são inúteis
nada se faz
de palavras.


Na floresta dos cisnes
crescem
grama e a raiz
(enoveladas)
trama de
rota escuridão.


Os mistérios
foram um dia
espelhos
sobre as alturas da montanha
fui serpente mosqueada
espectros
de flúor
circulam
entre

Equívoco e Esquecimento.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

fotoestesia

Obra de Alexis Iglesias

A impaciência do desejo revolve o solo fértil e vazio do dia. Um tipo natural divide-se em uma essência central e um conjunto de predicados a orbitá-la, mas, se é verdade que somos máquinas, um tal centro perde o sentido e então só dependerá de nós que venhamos a inventar um uso para nós mesmos. A verdade literal e objetiva de hoje é apenas o cadáver da metáfora de ontem; a coisa nunca pode coincidir com o representante dela, signos não são quase-coisas, sinais não constituem proto-objetos, são antes mamulengos de uma geringonça feita de esquivas, aparições, um labirinto de fintas, fugas e ocultamentos, uma arapuca que emerge/vela a presença insuportável da “nadidade” ― um jogo de diferenças. A coisa-ela-mesma não passa de um ídolo; quando a Morada do Ser está prestes a se fechar, arredondada em sua auto-referência esférica, quando as metades da laranja se reúnem perfeitamente, interpenetrando-se fundidas em êxtase, algo subitamente dá muito errado e surge a fada má: o ininteligível reprimido retorna como premissa de toda a inteligibilidade. Deus está nas cascas da cebola, a guardar os restos do vivido na caixa de segredos da noite; Ele é um buraco do eu-pele memorial, paradoxo a minar silêncios aquosos, paludícolas. Eis um truque de pelotiqueiro que vem sendo encenado desde a aurora dos tempos (sabe-se como é fácil para a mão enganar o olho): de um lado, a epifania, deflagradora de sentidos ― arbítrio & trauma & maravilhamento ―, na outra mão, segue a caminhada lógico-empírica, o deslocamento lateral no estilo conhecido como “passo do caranguejo”. Desde que somos um diálogo.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

NUNCA GOSTEI DO BATMAN, O CORINGA ME EXPLICOU PORQUÊ

Foto: J. K. Rolando
Um amigo foi certa vez fazer uma pesquisa de antropologia no Mato Grosso, onde havia (e há) uma epidemia de suicídios em curso entre os índios cinta-larga. Lá pelas tantas apareceu no rancho onde acampava a equipe de pesquisa um pajé furreca, bebaço, maconheiro e contrabandista de madeira ilegal, que pediu um trocado para tirar de cima o perigo dos espíritos dos mortos que andavam rondando.
Na verdade, segundo o xamã breaco, o perigo vinha de baixo: os espíritos dos mortos, impedidos de subir aos céus devido à forma que assumia a morte (os índios têm mostrado preferência pelo enforcamento), saíam pelo cu do morto e ficavam pela terra vagando, em busca de vivos para encarnar -- sempre pela incômoda via traseira.
Recusaram até dois merréis para a pinga do pajé. Resultado: quase todos da excursão ficaram doentes, incluindo meu amigo, que teve de ser operado às pressas de apendicite aguda na Santa Casa de Mirassol, onde tinha se isolado para escrever sobre os índios. Mas... e o que isso tem a ver com o Batman?
Acontece que este último filme da franquia da DC Comics sobre o Cavaleiro das Trevas esclarece porque nunca simpatizei com o Morcegão. Nada que me afastasse dos filmes e HQs da antiga dupla dinâmica, o meu problema era com a arquitetura dramática do personagem Bruce Wayne; algo não batia. O Coringa me esclareceu.
O Coringa, vivido "postumamente" por Heath Ledger, é a encarnação da pulsão anarquista. Ele é pura parcialidade, esquize, deriva -- este Jokerman não tem feed back negativo. O que vale dizer que não há retroalimentação (nem economia anal, numa cena ele queima dinheiro da Máfia), ou ainda que o Coringa empresta um rosto -- escalavrado -- para a selvageria da acumulação capitalista.
Sua face limpinha é o pitboy Bruce Wayne, vivido por Chris Bale, o Psicopata Americano. Conhecemos o tipo: ele bate a Maseratti no carro da polícia e o Comissário "alivia" o B.O.; morou um tempo com um "amigo" de baladas, mas depois isso começou a pegar mal; vive em grande estilo com bailarinas, modelos, gostosas a granel, mas não há relação que dure; é herdeiro de megacorporação que espiona todo mundo (uma Telecom?); diz que elege o promotor público duas-caras, que é cargo eletivo em Gotham, com uma reunião de amigos e, last but not least, vive na night atrás dos piores tipos...
Lógico que ele, Wayne/Batman, despertou forças titãnicas, no mundo visível e no submundo, como um John Kennedy com tintas faustianas. Aliás, é impressionante a quantidade de heróis de HQ que são órfãos no sentido corriqueiro e também faustiano do termo; como explicou Marshall Berman, Fausto é a primeira tragédia do desenvolvimento, um herói capitalista que recusa a tradição paterna e a casa materna como nunca antes na história desta humanidade ocidental. E é aqui que a mensagem do Batman/Coringa nos atinge: somos iguais a ele.
O Coringa é a carta do Louco no Tarot, não tem identidade estável (digitais, dna, pupila, etc., não conferem quando cai preso), não tem lar, uma origem, gueto, crença ou objetivo: a violência indiscriminada a que se entrega decorre da percepção de que seu duplo simplesmente desabou. O lugar do neutro, da alteridade e do ritmo é desativado por uma compulsão destrutiva que só encontra poesia no pancadão de som e fúria que assola Gotham City. Batman não é o Charlie Brown de Schultz, mas o Bobby Brown de Zappa. O herói/vilão noturno/soturno é o que sobrou no rescaldo da civilização das Luzes.
Talvez se passe com este filme o mesmo que houve com Poltergeist, O Corvo, Os Desajustados ou a expedição que descobriu a tumba de Tutankhamon, em que equipes inteiras sofreram os sortilégios que certas obras de arte desencadeiam. Ninguém consegue simplesmente ir para casa depois de encarnar um papel como o falecido ator australiano fez com o personagem que pode ser todas as cartas do baralho. Portanto,
NÃO ESQUECE A GRANA DO PAJÉ!!!!

quinta-feira, 24 de julho de 2008

A VIDA É UM JOGO DE POSSIBILIDADES E DESAPARIÇÃO

“Há pelo menos dois tipos de jogos: um poderia se chamar finito, o outro, infinito. Um jogo finito se joga para ganhar, num jogo infinito joga-se para continuar no jogo.


Uma guerra para dar fim a todas as guerras, na estratégia do jogo finito, só leva ao confronto universal.


As regras do jogo finito não podem mudar, as regras do jogo infinito devem mudar.


Jogos finitos disputam-se dentro de limites, jogos infinitos divertem-se com os limites.


Jogos finitos são sérios, jogos infinitos são brincadeira.


Jogos finitos tornam o jogador poderoso, jogos infinitos brincam com o poder.


Jogos finitos consomem o tempo, jogos infinitos geram tempo.


Os jogadores finitos buscam a vida eterna, os jogadores infinitos almejam múltiplos renascimentos.”


James P. Carse

domingo, 20 de julho de 2008

Crônicas da Rainha, I


Eu sou a fêmea mais poderosa que existe.

Sou Rainha ― a maiúscula me é sempre devida ― por nascimento e merecimento; quantas das soberanas entre vós, humanos que me escutam, juntaram como eu sorte e valor, o feliz acaso de berço e a bravura no campo de batalha? Não há no reino animal, quem se me compare.

Isto dito, sei que tenho muito a explicar a vós, seres da palavra, porque não há em toda a Natureza bicho mais turrão e perigoso que o bicho homemulher. Vossas obras falam por si.

Repito, não há rei nem reino que se compare ao meu.

Houve entre as humanas grandes rainhas como Semíramis, Cleópatra, Irene, Draupadi, Sita, Cristina da Suécia, Catarina da Rússia, Vitória, Elizabeth, Jinga, Sabá e muitas outras. Nenhuma delas serve para sequer lamber meus pés, digo, minhas patas. Concedo que a Jinga e a Catarina supramencionadas têm algo do meu estilo, ainda que em tom BEM menor.

Descendo de uma raça de guerreiras solitárias (as Speco myrmas) e valentes que alimentavam seus descendentes com carne de caça viva. Não há lugar para os fracos de corpo ou de alma na minha estirpe, não há espaço para dúvidas e hesitações na minha existência, portanto, não estou para esperdiçar o meu tempo com filosofia barata.

O que aqui disser é e será relato verídico, sem floreios ou acréscimos, despido dos ardis retortos da metáfora.

Um escritor, Machado de Assis, um tanto dado a alegorias e sarcasmos, escreveu há mais de cem anos um insultuoso conto em que descrevia uma Sereníssima República de... aracnídeos! Afoiteza de literato. Meu povo nada tem de alegórico para os macacos peludos, menos ainda de uma república ― histórica, real ou fabulada.

Meus súditos vivem sob o meu império, uma Rainha Escravagista!

Por ora, é tudo que estais autorizados saber.

Dois Caminhos


Eu ainda estava dentro dela
E os ventos me tomaram
Deixaram-me vazio assistindo
O sussurro que trouxeram escondido

Adormeci tão fundamente
Que as imagens se fizeram vivas
As mensagens se fizeram loucas
Mas eu queria que tivessem sentido

Eu precisava.

E disseram: ouve! Filho do vento,
Teu caminho e tua batalha
Ouve tua escolha
Abraça-a

A alma, aqui, tem dois caminhos:
Um é o caminho da Terra
e aquele que o escolhe
Conhece a caridade,
o trabalho ao próximo
O incessante orar
As instituições que o amparam
A resignação e as pequenas alegrias

Conhece assim todos os meandros dos homens,
suas mazelas e descaminhos
Suas belezas
A areia de seus castelos

O outro é o caminho do Céu.

Acordei. E não podia nunca mais ser o mesmo.

terça-feira, 15 de julho de 2008

FALTAM MOINHOS AOS VENTOS QUE NÃO SE CONFORMAM










Oi Chris,

Vou te contar sobre instalações
(os tais rastros enigmáticos).
Ontem, ele fez a seguinte proposição:
Sujeito-objeto-sujeito:
uma mesa preta feita com madeira de primeira, grande, trabalhada.
Do lado da doutora, uma cadeira tipo trono
(com almofada)
e uma boa cadeira de couro para ele.



Sobre a mesa e abaixo de um vidro protetor,
formando um triângulo
isósceles,
as seguintes imagens:
BladeII-ocaçador de vampiros,
Spirit-o corcel indomável
e uma palavra cruzada resolvida.

Nas mãos uma imagem
(ele disse que ia te mostrar):
um sujeito solitário come.
Uma mulher (deliciosa)
nua e peituda de cabelos esvoaçantes,
instalada numa prateleira,
dá uma garfada no prato do moço.



Um ar condicionado esvoaçava os cabelos dela.
Ele se emocionou com o frescor
e com a liberdade dela
(além da força do ar condicionado)
e me fez saber que isso vem desde que apareci e me agradece.

Entre nós existe a mediação
que propõe trocá-la por você.
Você, ele e eu.


Ele come,
você garfa o prato dele e eu esvoaço
os teus cabelos ou vocêesvoaça os meus cabelos e eu palpito sobre a comida?
Bjs,

bilhete nº1

A primeira vez que Paula Augustemburg Dias ouviu falar das tais mensagens foi numa happy hour; um amigo de outro amigo, que lhe pareceu na época fazer uma tempestade em copo d’água, contou uma história enrolada que envolvia mensagens anônimas chegando no e-mail de trabalho e pessoal, etc., etc. Havia também referência a uma viagem de férias, mas não tinha certeza, podia estar misturando as histórias. Enfim, não tinha prestado muita atenção na embrulhada, exceto o fato de que o cara tinha exagerado na bebida. Até que aconteceu com ela.

A sensação foi muito esquisita, precisou de umas três leituras para realmente entender que aquele monte de sujeiras se referia a ela, e do modo mais pessoal possível. Aí lembrou um detalhe da conversa que tinha posto na conta da carraspana: aquilo falava de coisas que mais ninguém tinha como saber!

Foram meses de angústia os que recebeu aquela correspondência que esperava com uma sentimento duplo de medo e esperança. Por um curto período chegou até a acreditar que aquelas imundícies teriam o poder de libertá-la. A cada vez o endereço mudava, sempre um hotmail diferente, sempre um nome que não compreendia.

Abaixo está reproduzida a primeira carta, em versão quase integral.

----- Original Message -----

From: Abrasax
To: p_augdias@softech.com.br
Sent: Monday, July 19, 2004 2:44 AM
Subject: RE: fazer certas coisas em vez de fazer as coisas certas...Você está cansada, mas não é o que está pensando. Você está cansada é das brincadeirinhas invisíveis da Queca e da Fabi, é, daquelas duas – pobres criaturas! --, que despejou na rua da amargura sabendo muito bem o que estava fazendo. Elas não saem mais de você, e vai ter de conviver com isso, vai ter de conviver com os pequenos animais metafísicos que causam comichões no corpo todo. Principalmente a Fabi, essa nem família tinha, a não ser aqueles primos de Goiás com o dobro da idade dela; não dá outra, qualquer desculpa que use sabe que se comportou que nem uma cobra rampeira, vadiona mesmo. E calculou, calculou direitinho, pensou cada passo e então agiu, executou com frieza cada movimento do seu bote perfeito. Deu no que deu. A Gorda te incomodava mais, aquele jeito de macha dela, não é?, sempre te pegou, agora vive entrando esse filme na tua cabeça: você se ajoelha no chão e chupa ela como se fosse um homem, como tantas vezes você fez com os caras... Pois é, outro dia aconteceu naquela reunião com o pessoal da Samsung, você parou no meio da apresentação, o Powerpoint rolando e na tua idéia passando esse fita. Pegou mal. Justo com ela, a mais feiosa das duas, quem diria! Nem ficaram sabendo que foi você quem assou a batata delas, a gordota foi mais fácil de incluir no corte de funcionários geral, mas a Queca você cozinhou devagar; antes transferiu para a filial em Rezende, aquele escritório é zicado, 3 funcionários pediram licença médica em menos de um ano que abriu, foi ou não foi? Então, como é que é saber que a Queca hoje virou um elemental, um Aedes zumbizando na tua orelha, dizendo a verdade que mais quer esconder de todo mundo? Ah, mas você morre de medo que as pessoas comecem a sentir o cheiro da sua xoxota, que eu sei; usa todos os sabonetes desinfetantes, bactericidas, desodorantes íntimos e não adianta. Nenhum funcionário desconfia da traíra que você é; logo a diretora comercial, tão séria, tão fina, quem ia pensar?! E os vultos que mais ninguém pode sentir?, é ruim de conviver com isso, assim como os sonhos, os malditos sonhos de repetição. Não deu outra, a garota viradora da ZL, a gostosinha do subúrbio, abriu o bico e caiu fora, mas você sabia disso, sabia que ela não ia segurar, ainda pra mais com a outra, desempregada e fodida a tiracolo; lá naquele fim de mundo, sem ambiente, sem suporte técnico adequado. Elas não tinham ninguém, só uma à outra. Duro, né? Teve o dia lá na garagem do prédio, no segundo subsolo, lembra?, claro que lembra, é a coisa mais... assim, forte, que te aconteceu ultimamente. Pra falar a verdade, não tem rolado muita coisa na sua vida... Você lá, no carrão escuro que a empresa te deu, de vidros filmados, ali, como todas as manhãs, tendo o seu momento de desespero diário antes de subir até o 15 º andar e começar mais um dia de trabalho e vazio. Mas a movimentação te chamou a atenção: elas dentro de uma bosta de carro mil, se chupando logo pela manhã, se agarrando no maior malho, um tesão que embaçava os vidros, uma ávida da boca da outra, das coxas e dos peitos, da pele e da xana; se agarrando, se procurando, uma subindo em cima da outra... Foi demais para você, de repente as bolachas te lançaram no mundo real, que veio na forma de um estado agudo de pânico e tesão, uma mistura bizarra de confusão e desejo que te deixaram à beira de buzinar, sair correndo, gritar... mas o que você queria mesmo era encolher até ficar minúscula e poder entrar dentro daquele carro. Aquela cena não te sai da cabeça desde então. As mãos, as mãozonas da Fabi, com os dedos nodosos de caminhoneira ficam subindo e descendo pelas tuas pernas, arrancando tuas calcinhas, massageando teu grelo... aliás, quantas vezes você tem ido trabalhar sem calcinha só pra sentir essa sensação, hem? Quantas noites acorda suando, nuinha depois de arrancar semi-consciente as roupas, ofegando apavorada e descobre que teve um orgasmo, do único jeito que é possível porque até parar de se tocar você parou? Em que é que te transformou a eficiência? Nunca teve dó delas porque te acordaram, isso é que é, você achava aquilo um abuso (dentro da empresa!), mas não era esse o real motivo; “pobre precisa exibir esse tipo de coisas, já que não tem nada mesmo”, “elas fazem isso a toda hora porque têm essa coisa... esse desvio, não têm responsabilidades” – fala aí, você fez EXATAMENTE o que o seu coração pedia que fizesse? Não fique revoltada comigo, não vá querer se livrar de mim como fez com elas, só te escrevi por saber que você é muito mais, muito maior do que pensa. Sua vida é um engano; você tem corrido muito, mas na direção errada. Deixa alguém te dizer isso.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Muro


O oráculo do I Ching me adverte
Inverte a meia lua seu sorriso
A noite se transforma em nevoeiro
Estrelas desenhando seu aviso

As árvores não brincam com seus galhos
O vento frio que corta nas orelhas
De dia o céu embaça e não tem brilho
O sol fita severo com seu olho

Casacos, cachecóis e pára-raios
Não cobrem, não protegem nosso topo
Medidas preventivas não evitam
Medidas curativas não confortam

A falta que sentimos do futuro
A intimidade que nunca teremos
Desejo espatifado contra o muro
A cama que jamais dividiremos

O amor que não brincou em nossos lábios
Ocaso avermelhado e poeirento
O trânsito, suas luzes, rádio-táxis

Trabalho, faculdade, dia-a-dia
O trem onde cochilo dez minutos
E sonho com tuas mãos no meu cabelo

quarta-feira, 9 de julho de 2008

ARREMESSA TEU RAIO ATÉ A MORTE





Abre cada
letra
e verás,
toma
para ti
o solar,
a um só tempo
salvador e sacrificial,
designa
um talismã,
ama sobre tudo
a dor
da ausência
― encontrarás firmeza
na verdade.


Tormentos,
aflições,
provêm das águas
que se tornaram amargas.


Sobreviverás?

terça-feira, 8 de julho de 2008






P.S.: cada minuto que banqueiros, megaespeculadores e políticos passam na cadeia, o Brasil avança 10 anos!!

hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh



o pior dos meus silêncios
tinge meu fígado de azul
cancela crianças no Sri Lanka
fecha os supermercados mais tarde

o pior dos meus silêncios
faz sicômoros chorarem flores
carrega o barulho das demolições
deixa a água passar por baixo da porta

o pior dos meus silêncios
cresce até me mastigar
e cospe os farelos
sobre a mata
verde
de onde os primatas fugiram

sábado, 5 de julho de 2008

agora eu era um blog

os novos carrascos doam roupas e móveis velhos para o orfanato

os novos carrascos só consomem produtos ecologicamente corretos

os novos carrascos são apáticos e felizes

os novos carrascos submetem-se ao clareamento dentário

os novos carrascos matriculam os filhos em escolas não repressoras

os novos carrascos participam de passeatas pela paz

os novos carrascos costumam criticar o processo de globalização

os novos carrascos respeitam as minorias

os novos carrascos freqüentam espaços culturais alternativos

os novos carrascos fazem anos de análise

os novos carrascos moram em condomínios onde há moradia, trabalho, lazer e compras

os novos carrascos acreditam no aperfeiçoamento do terceiro setor

os novos carrascos não estacionam na vaga de idosos e deficientes

os novos carrascos dão ritalina para as crianças desadaptadas

os novos carrascos são mulheres/homens como você (e eu)

os novos carrascos meditam para re-equilibrar as energias

os novos carrascos compram a trilha sonora de filmes de sucesso

os novos carrascos sabem como é importante o contato com a natureza

os novos carrascos pedem ajuda para os refugiados de Darfur

os novos carrascos repudiam a pena de morte

os novos carrascos reciclam o lixo sólido

os novos carrascos deploram quem fala mal das outras pessoas

os novos carrascos declaram-se agnósticos (com simpatia pelo budismo)

os novos carrascos promovem abaixo-assinados pela ética na política

os novos carrascos reproduzem e passeiam com o carrinho de bebê no shopping

os novos carrascos contribuem com trabalho voluntário

os novos carrascos adoram roupas simples, mas que tenham um bom corte

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Mal de Arquivo (ou, a prateleira parte 2)

A história do livreiro Radan, que separava as estantes da boa e da má literatura, evoca sem dúvida um sofrimento, uma paixão: o mal de arquivo. A impaciência do recenseamento a que se entrega, manifesta um sintoma individual enquanto coloca em relevo a necessidade, não só de um estudo de caso, mas do exame das condições em que se instituem os saberes, pondo em abismo o cânone absoluto que classifica e organiza, mas que também não cessa de perverter e derrogar o próprio registro hierarquizante ― o principium divisionis.

Mesmo o mais feroz dos códigos é vulnerado pelo esquecimento.

Ironia reveladora é também o fato de ser ele um estudioso da (ou de uma) vanguarda; o que, prima facie, pode parecer o destino singular de uma biografia, assinala discretamente uma configuração técnica, estética e política bem mais ampla. Se as vanguardas ambicionam fazer hoje a arte de amanhã, o desejo de arquivo é subsumir passado e futuro na presença sem falhas da sua memória. A cultura tem horror ao vácuo de parâmetros, ainda que pretenda se esconder atrás de um relativismo politicamente correto.

Há, porém, o inconsciente, que não se rende. Insiste um resto, um fantasma ou ruído, índices da profunda, demasiadamente humana, refratariedade à manipulação, retenção e controle definitivo; sempre algo escapa da totalização interpretativa, da completa apropriação do fato, documento ou dossiê. Uma arca, um fichário, uma matriz de bits, etc., são depósitos, instituem séries, coleções, grupamentos e reservas, organizam fluxos, estabelecem prioridades; tanto museu como rio de signos ― o arquivo inaugura e conserva, destitui uma condição ‘natural’ para implantar a convenção (nomos).

A pulsão de morte destrói, antecipadamente, seu próprio arquivo. Trabalha em silêncio.

Arkhê, vocábulo grego que conota o que está no começo, mas também o que vai à frente, que lidera; princípio físico, jurídico e histórico, ao mesmo tempo que teleológico; lugar a partir de onde homens e deuses exercem o poder e o comando. Ponto de partida de um entroncamento e extremidade; fundamento e origem da autoridade, assim, arkhós, aquele que comanda; arkhein, comandar; arkheîon, residência dos juízes; arconte, magistrado.

A banalidade dos funcionários do Castelo, do Tribunal e da Família é a banalidade do mal.

O arquivo também pode estar consignado no corpo raquítico de um burocrata, como o Sr. José do romance Todos os Nomes de Saramago, mas que isto não nos engane: sua tarefa é imensa, crítica, separar os mortos dos vivos no registro central de Lisboa. E este é um outro emblema do poder sem barra que antecede todas as formas de poder: mesquinho com as grandes, tanto quanto desumano com as pequenas questões, o arquivista cumpre ordens de um tribunal de última instância; dele se esperam decisões capitais, impessoais, irrecorríveis. Olodumaré e Oxalá.

1984 começa no Ministério da Informação, provas, traços, notícias estão sendo falsificadas; sentidos estão sendo recalcados nas palavras. ‘Duplipensar’ na ‘novilíngua’ técnica, neutra, da propaganda oficial equivale a simplesmente não pensar. Críticos contemporâneos sustentam que não há mais vanguardas, ou melhor, que elas teriam se tornado supérfluas depois do século XX. Artistas como Malévitch, Baudelaire, Wagner, Joyce, Buñuel, Duchamp, p.ex., nos libertaram da necessidade de critérios fixos para avaliar as obras de arte e até mesmo o conceito de ‘objeto artístico’ se tornou, a partir de então, dispensável.

Cada obra é, portanto, aberta a quantas leituras seja capaz de suscitar e julgá-la implica em submeter-se às características internas que a sustentam e constituem. Cada obra de arte inaugura uma espécie de um indivíduo só. Nada disto, evidentemente, é falso, mas também não é (inteiramente) verdadeiro. Neste momento de pletora de circulação, armazenamento, produção e troca de informações, os filtros seletores adquirem importância desproporcional; exemplo: não foram a imprensa e os intelectuais ‘liberais’ norte-americanos que invadiram o Iraque e o Afeganistão neste começo de século XXI, embora a sua omissão tenha sido vergonhosa.

N.O.V., nenhuma oposição visível.

Reflexão e crítica são e serão sempre indispensáveis, a auto-desmobilzação de ambas atualmente em curso dá ensejo a todos os revisionismos e mistificações que a estratégia do Terror necessita. O terrorista que se explode e explode os outros, encarnação momentânea do mal absoluto, vê a si mesmo como crítico: crítico da religião, crítico do Estado, da política, da mídia, dos costumes... o terrorismo crítico, pouco ou muito esclarecido, se inscreveu no Zeitgeist; seu espectro autoritário ronda nosso mal-estar modernoso: um especialista em vinhos, Robert Parker, logrou globalizar seus preconceitos por meio da força do seu prestígio.

Para voltarmos às artes: é possível, sim, destruir uma obra usando contra ela o que ela tem de melhor, fazer a sua estrutura voltar-se contra si própria, tal uma doença auto-imune induzida de fora para dentro. Schoenberg teve recusada a execução de uma peça por uma sociedade de concertos porque continha um acorde de nona invertido, “o que não existe”.

Da Quarta Sinfonia de Brahms foi dito: “nunca, jamais, em uma obra, o trivial, o vazio e o enganoso estiveram tão presentes; a arte de compor sem idéias nem inspiração encontrou seu digno representante.”

Do Em Busca do Tempo Perdido de Proust: “encarniçado em fazer o que é exatamente o contrário de uma obra de arte, o inventário de suas sensações, o recenseamento de seus conhecimentos, em um quadro sucessivo, jamais de conjunto, nunca inteiro, da mobilidade das paisagens e das almas.”

De Euclides da Cunha: “os Sertões não é livro de história, estratégia ou geografia, é apenas o livro que conta o efeito dos sertões sobre a alma de Euclides da Cunha.”

Para voltarmos ao banco de dados do Mal, convém lembrar a derradeira humilhação a que Freud foi submetido quando deixava uma Viena transformada em playground de milícias assassinas em 1938. As autoridades exigiram dele que assinasse uma declaração em que afirmava não ter sido maltratado ― declaração de punho para supremo gozo do catálogo! Freud assinou acrescentando: “Penso recomendar altamente a Gestapo a todos”.



QUE FAZ UMA PORTA QUANDO ABRE PARA OUTRA PORTA?

Trecho do filme "A Questão Humana", música incidental: "Salam" do Mahalab.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

BURACOS NÃO SÃO AUSÊNCIAS

"Os buracos não são ausências de partículas, mas partículas que andam mais rápido que a luz. Ânus voadores, vaginas rápidas, não existe a castração. Precisamente para escapar da oposição abstrata entre o múltiplo e o uno, para escapar da dialética, para chegar a pensar o múltiplo em estado puro, para deixar de fazer dele o fragmento numérico de uma Unidade ou Totalidade perdidas, ou, ao contrário, o elemento orgânico de uma unidade ou totalidade por vir -- e, sobretudo, para distinguir tipos de multiplicidade. As multiplicidades libidinais inconscientes, moleculares, intensivas, constuídas de partículas que não se dividem sem mudar de natureza, distâncias que não variam sem entrar em outra multiplicidade, que não param de fazer-se e desfazer-se, comunicando, passando umas nas outras no interior de um limiar, ou além ou aquém. Os elementos destas últimas multiplicidades são partículas; suas correlações são distâncias; seus movimentos são brownóides; sua quantidade são intensidades, são diferenças de intensidade."


Gilles Deleuze & Félix Guattari



vídeoinstalação de Els Vermangna, música Mahalab, edição a Igreja Invisível

quarta-feira, 2 de julho de 2008

d i vi da

videsquiestesia

quando você me deixar...

Foto: Sofia Borges

esta mulher que não posso ouvir,
não há,
portanto,
relações recreativas
podemos fabricar situações que evoquem a angústia jamais
seremos animais cultivados
temos de assumir a vida desde o começo,
refundá-la
nada está claro antes da expressão
antes de pedirmos os drinques e as entradas
a incerteza e a solidão se exemplificam na carne
uma mulher que passa é um contorno de humores,
um manequim dolorido,
um espetáculo
individual,
sentimental,
sexual
é uma certa maneira de ser presença vibrátil no andar,
ao parar no meio de uma escada,
soprar uma vela,
desenhar um teorema
ou ensinar São Jerônimo
uma peculiaridade sensível do olhar, tocar, falar,
de que possuo fragmentos em meu
[íntimo
porque sou corpo

terça-feira, 1 de julho de 2008

aero

aereo erotico

Chinese Democracy, Free Tibet ou Cuba Libre?


E aí, o que você prefere? Free Tibet ou Cuba Libre? Por mim, vou de chinese democracy; não o CD que os Guns' n Roses estão há mais de uma década para finalizar, mas a real, ou melhor, a inexistente democracia chinesa. Por quê? Ora, porque os chineses já são os novos donos do mundo, e eu quero desde já aderir aos novos patrões. Rei morto, rei posto, não é assim que gira a roda do mundo? A nova desordem mundial exige de nós um salutar desencantamento ideológico, de modo a saber onde se pisa e a conservar a arcária dentária.

Substituindo o antigo, ainda imbatível e popular óleo de peroba, e em acordo com o espírito dos tempos, recomendo algumas aplicações de Cinicone® -- camada de silicone que isola e dá brilho ao cinismo reinante.

Aos fatos: você acha mesmo que o Tibet seria livre se voltasse para as mãos da elite teocrática -- a mesma que oprimiu o país por séculos e tem seu dinheirinho guardado na India e na Suíça, diga-se --, representada em público pela midática figura do Dalai-Lama? Você sabia que lá no Tibet as pessoas vêem nele uma espécie de reencarnação de Buda, que descenderia de um semi-deus e de uma... MACACA?

Você acredita que Cuba pós-Fidel vai se transformar numa florescente democracia caribenha?
Ou, quem sabe, não seria mais prudente achar que o antigo patriciado da ilha, exilado na Flórida há 50 anos, onde e quando se aliou ao que de pior houve na política norte-americana (desde os Kennedys, passando pela Máfia e chegando aos Bushes), vai retomar seus hotéis-cassino-puteiros, suas fazendas de cana e tabaco e instalar uma daquelas bem conhecidas "democracias" latrino-americanas?

Cuba me parece, infelizmente, destinada a esse tipo de transição abrupta, já observada nos países da ex-Cortina de Ferro, da decadência socialista para as formas mais bárbaras da já de si selvagem economia de mercado. Cuba, que já foi quintal dos EUA e já foi oprimida por uma "revolução libertadora", vai descobrir agora as maravilhas do livre comércio (com os EUA) e da opressão por seus próprios capitalistas.

A China reclama o Tibet como sua província porque é um império em ascensão e todos, repito, todos os impérios marcaram seu début tocando um terror básico pra cima dos vizinhos de parede. O dragão flexiona os músculos no quintal. O "mundo civilizado" protesta porque já sabe que em breve também será quintal dos little yellow friends...

É vero que os novos democratas chineses vão precisar de um verniz publicitário -- tecnologia que o Dalai tem de sobra -- para não ficar muito mal na foto neste ano de Olimpíada, mas eles aprendem rápido. De toda maneira, os amiguinhos do Google e da Yahoo, com inestimáveis serviços prestados na repressão a opositores e censura de informações, estarão aí para o que for necessário. Amigos servem para essas horas...

Admito que é feio ver monges levando borrachada, mas, convenhamos, um mundo em que religiosos marxistas, budistas, jainistas, sikhs, fundamentalistas do mercado, rabinos, mulás, padres e pastores evangélicos estivessem afastados da política seria BEM melhor.

tanatopoesia


O armamento.
A arte da balística.
A cartucheira.
A bala traçante.
Cinzas e a cave da família.
Numa fase determinada do luto, irrompem momentos de triunfo imperial, júbilo, explosão libidinal.
São instantes que desdobram o arquivo sinóptico.
um alto espírito poético preside ao exercício da tradução
reconfigurar uma língua na estranheza de outra,
o modo de intencionar e o lema rebelionário:
os mais belos poemas estão escritos numa língua ainda não descoberta
Aquiles realiza,
no menor dos seus passos,
todas as distâncias do Universo
trabalhando elementos despercebidos
o artista deixa rastros
no reino do inumano