sábado, 26 de janeiro de 2013

Prainha (final)



O desânimo se infiltrou, como é costume nestas ocasiões aziagas em nossa pequena sociedade, à maneira dos súbitos nevoeiros que precedem as quedas na pressão atmosférica: uma falta de assunto de uns para com os outros, a má vontade de fazer as coisas, uma covardia pra saltar da rede e começar um novo dia. No entanto, por maior e mais evidente que fosse o sofrimento, tudo se desenrolava dentro de uma seqüência preestabelecida ― a esta altura, pouco me enganava acerca dos outros e de mim mesmo ―; conforme esse comportamento esperado ia se confirmando passo a passo, sentia a constrição do coletivo empurrando, apertando, mas também percebia o quanto este abraço invisível do Leviatã não era muito mais do que a somatória das contribuições (voluntárias!) de cada um para a normalização da anormalidade.
O absurdo é mais facilmente banalizável do que o ligeiramente desviante, basta apenas que ocorra com certa freqüência e seja consensual a cegueira que o desvê. Assim como os meus companheiros, sabia que aquilo ia se repetir: não era a primeira vez, não seria a última; o drama todo é que nem sempre as bestas-feras conseguiam pegar gente, em geral chupavam a mioleira de algum gato, ou cachorro, mais amiúde pegavam os gambás das redondezas. Mas sempre os ouvimos à noite, rondando a Casa dos Homens; à espera de um descuido fatal ― porque o manjar predileto deles, bem o sabemos, somos nós. As crianças têm uma noção de risco menor; infelizmente, é preciso sobreviver a vários perigos antes de acreditar neles pra valer. Coitado do Suiriri, gostava dele.
Acontece que a tristeza na Prainha é como mula velha: não toma andadura, e se toma, pouco lhe dura. Já antecipava onde o clima borocoxô ia dar, numa festança de atravessar noites e dias, com direito a comilança, pinga, diamba e suruba geral. O gatilho foi dado pelo período de reprodução dos siris; era a época deles, quando saem do mar e surgem aos milhares saindo das rochas e mangues para acasalar no estuário do riacho que desce da montanha ― o mesmo onde, mais acima, haviam trucidado o Suiriri.
Fogueiras foram armadas, panelões e caldeiras enormes ferviam o leite de coco e o dendê no molho de tomate, nas quais se despejava a cebola picada, o açafrão, o colorau, os dentes de alho socados com sal e limão, as rodelas de pimentão amarelo, verde e vermelho, o coentro, a cebolinha, a pimenta malagueta e de cheiro e... claro, siris vivos, às mancheias, trazidos em redes, puçás, sacos, corotes e picuás, ainda batendo as patas e estalando as pinças. A farra comia solta, a gritaria ecoava por toda a praia mantendo afastadas do pitéu gulosas gaivotas e fragatas.
Subi o riacho na direção do morro, não queria participar daquela alegria forçada; sentia-me roubado de alguma coisa que não sabia dizer qual, um embrulho de tripas esquisito, uma vontade de mijar sem mijo. Havia um desacordo completo no espírito e no corpo. Fiquei ali á toa, sentado numa pedra a matutar em nada. Apareceu uma mulher, minha companheira mais freqüente.
― Que é que você tem? Por que não está lá em baixo junto com a gente?
― Sei lá... só sei que não estou bem.
― È por causa do Suiriri, não é?
― Não sei, é um pouco de tudo... tô meio que assim, engazopado com a merda toda...
― Calma rapaz, você não teve culpa nenhuma. Tenho certeza que se você o tivesse visto...
― Escuta, por que é que a gente não acaba logo com isso, hem? A gente sabe onde eles estão, quem são, é só ir lá e acabar com essa agonia de uma vez por todas.
― Como assim? Você está dizendo, quer dizer, a gente matar... os velhos?
― Claro! A gente sabe que de noite eles ficam violentos, fortes, sedentos de sangue... o nosso sangue! Vamos lá e acabamos de vez com esse horror...
― Mas... se eles são nossos pais e mães, quem nos trouxe pro mundo... E depois, em que tipo de monstros nós nos transformaríamos depois de, de...
― Só que, olha pra eles, são cacos de gente, não lembram nada, não falam coisa com coisa, nem sabem mais por que estão aqui; não vivem, vegetam. São como mortos, mortos que se alimentam dos vivos!
― Vem comigo, a caldeirada está ficando pronta. Vamos.
Descemos juntos, meu coração estava pequenininho. Um frio estranho me encolhia os movimentos. Paramos ao lado de uma das fogueiras sobre a qual se equilibrava uma panela alta onde eram despejados continuamente os animais ainda vivos. Reparei que, apesar da altura da panela, alguns siris logravam subir até a beira, buscando escapar da morte certa. Inutilmente. Tão logo um deles alcançava a borda, as pinças dos outros o prendiam e puxavam para baixo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Between

I walk in the shadow
Of unthought intuition
Unconstructed thought
I walk

I walk in the shadow
Of an unchanted song
A desire burn
I turn

I turn to directions
Even I don't dream
In a road unseen
I run

Even so
The cloud is my playground
The dark is the light around
The nothing is a firm ground
To my soul

domingo, 20 de janeiro de 2013

Prainha (III)



Medrei, arreguei, caguei no pau, fugi da minha fuga. Vergonhosamente. Desabalei pela mata fechada correndo no pinote doido, na pressa, deixei pra trás a zagaia que levara para me defender. Acho que fiz o caminho da volta em um terço, minto, um décimo do tempo da ida. Foi a pior coisa que me aconteceu na vida; por uma vez, uma única vez, tive o tutano para fazer uma aposta, tentar algo realmente diferente. E falhei. Perdi pra mim mesmo; se a bicharoca estava lá ou não, nunca vou saber, mas agora sei o tamanho do medo que me habita ― agora sei que nenhum dos meus conterrâneos vai sair desta arapuca que chamamos Prainha; esta tira de areia branca, este pedaço de floresta, este naco de montanha, esta laguna de arrecifes, estas falésias, serão tudo que veremos do mundo. Berço e túmulo.
Quando finalmente pus os pés no povoado, não me perguntaram nada. Cheguei a tentar convencer alguns amigos a organizar uma expedição exploratória aos confins do território visível. Ninguém se interessou. Acabei por me reintegrar à letargia costumeira, mas percebi que já não podia me livrar do que havia acontecido. Aquilo deixara em mim uma marca indelével, e isto é o que faz memória: uma dor, que até se pode esquecer, mas não se pode apagar. Pedi ao desenhista da tribo que me fizesse uma tatuagem; ele levou três luas inteiras escarificando diariamente a minha pele com agulhas feitas de pena de atobá embebidas na tintura de urucum. Carrego a onça parda na pá do braço esquerdo; ela não me vê, nem eu a ela, mas eu e ela sabemos.
Passei a freqüentar os abrigos dos anciãos, queria saber do “lado de lá”; estava ávido por informações, a alma crivada de perguntas que não encontravam eco no coração e na mente dos outros. Acreditava que nas lembranças de algum dos mais velhos pudesse encontrar pistas do que haveria além dos muros invisíveis desta prisão risonha. Perdi meu tempo tentando arrancar deles um qualquer fio coerente de narrativa, tudo de que dispunham era um cabedal de delírios frouxos, lapsos de memória e fabulações acerca de fantásticas viagens pelo espaço, fugas em massa de um planeta azul cujos recursos se esgotaram. A decana dos praianos, uma senhorinha miúda, engelhada feito maracujá seco, me entreteve com suas ladainhas sobre a “visão total”.
A história que me contou tinha algo de mais concatenado, embora fosse rocambolesca como as outras; ressumava a mesma saudade do abandono do lar, do deixar para trás um mundo condenado. Aos seis anos ela teria sido embarcada na esquadrilha de naves, numerosas como nuvens de gafanhotos, em fuga do planeta moribundo; a certa altura depois da decolagem, saíram do campo gravitacional e ela flutuou até a escotilha: “A visão era dinâmica, viva como um poema... as luzes das cidades, a linha separando noite e dia, estrelas cadentes passando abaixo da gente, as auroras dançando nos céus, as tempestades e os raios subindo e descendo... Tudo ao mesmo tempo, passando rápido pela espaçonave, um sentimento profundo de união com o planeta, com o Cosmos; uma emoção primitiva, e até então desconhecida, de transcendência, em que o eu deixa de ser importante e emerge o sentido coletivo, a conexão.”
Enfim, não obtive o que procurava, embora me houvesse impressionado a paixão que ela punha nesse relato lendário. Despediu-se de mim um dia com uma afirmação enigmática: “Viemos aqui para recomeçar, queríamos evitar os erros cometidos lá”. “Lá, onde?”, perguntei. “Lá”.
Prainha é um mistério que nunca vou conseguir resolver. Um outro exemplo: há por estas bandas um passarinho muito serelepe, de asas verde oliváceo, peito amarelo e cocuruto vermelho, que se chama gente-de-fora-vem. Ora bolas, como assim?, aqui não vem gente de fora, menos ainda gente pra fora vai, de onde tiraram semelhante alcunha? Será a auto-ironia desta gente trigueira e folgada? Porém, nem tudo acaba em piada neste lugar. Havia esse moleque a quem nomeamos Suiriri, porque, tal como o pássaro, tinha a habilidade de catar insetos em pleno vôo e comer. Um quarto de lua atrás, recolhíamo-nos na Casa dos Homens ao cair da noite, como é nosso hábito, quando a mãe do piá percebeu que ele não se encontrava no galpão. Um rebu armado: a mulher berrava, arrancava os cabelos, chorava, queria porque queria abrir o pesado portão e ir buscá-lo no meio do lusco-fusco que avançava rapidamente.
Foram necessários cinco homens para contê-la, outras tantas mulheres para acalmá-la mal e mal; uma gritaria danada, um chororô sem fim. Não havia nada que pudesse ser feito, ela sabia, todos sabíamos. Ainda que a deixássemos abrir a porta, o que já seria um tremendo perigo, nem ela, nem um exército armado até os dentes e composto por todos os habitantes, seria páreo contra os demônios noturnos que infestam as redondezas. Não se entende como criaturas tão indefesas durante o dia tornam-se tão poderosas na escuridão.
Foi horrível. Passamos a noite em claro, ouvindo; primeiro, os gritos agudos do moleque quando o atacaram; depois, os guinchos medonhos das avantesmas disputando os pedaços dele. Quando raiou o dia, encontramos os restos do infeliz próximo ao ribeirão que desce da encosta norte; o corpinho esquartejado e dilacerado por terríveis arranhaduras, mas a carne intocada; o rosto estava irreconhecível, a calota do crânio tinha sido arrancada para lhe sugarem o cérebro. As bestas só comem miolo.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Prainha (II)



Sempre há mais coisas para esquecer do que para lembrar na Prainha. Por vezes, despertamos estranhamente repousados, um descanso tão fundo que até parece cansaço; o corpo pesado como pesa no sono. É muito inquietante esta desídia, minha e dos meus patrícios, simplesmente deixamos pra lá; ninguém liga muito pra nada que não seja subsistência ou diversão, um desleixo misterioso: sem que tenha havido debate nem combinação, todos deslembram, tudo aqui se dissolve em chacota, festa, oblívio. Tal e qual as marés e as estações do ano, uma mudança contínua voltando continuamente ao mesmo ponto. Abandonamos as roupas, vestimos o próprio corpo até que a vida o (e nos) abandona. Sobrevivemos apenas, do mesmo modo distraído como sobrevivem os esgotados. Vivemos como sonhamos: sós; carregando uma nostalgia torpe de passados e futuros, como a areia que o mar leva e traz, balanceando o pesadume das coisas imutáveis com o apagamento dos sonhos desvanecidos ao amanhecer.
Um exemplo notável: não lembro meu nome. Nenhum outro adulto da comunidade lembra. Na verdade, ninguém chega a portar um nome definitivo; quando muito, um ou mais apelidos nos são pespegados na infância, refletindo alguma mania ou habilidade, uma deformidade física qualquer, que serve provisoriamente de característica definidora ― mas é sempre uma denominação que vai da parte para o todo, carecendo da força mágica, da fantasmagórica irrupção do nome próprio. Igual aos peixes, insetos, aves, bichos e plantas, nossa onomástica designa pela família e parte pelo gênero: homem-fêmea e homem-macho. À nossa residência comum damos o nome de Casa dos Homens.
Há duas formas de habitação: no sopé da montanha, ou nas proximidades do mar; as primeiras, feitas por nós, são bastante simples, construídas com vigas de cedro encavilhado no bambu que faz de parede, e cobertas com palha de coqueiro amarrada por fibra de sisal ou agave. Estas são as casas dos anciãos, os que já não podem contribuir com trabalho para o grupo. Aquela que chamamos de Casa dos Homens não pode ter sido feita pelo nosso povo, pelo menos não com a tecnologia de que dispomos atualmente. Fica numa clareira próxima da praia: um galpão de pé direito alto e sem janelas; as paredes, maciças, são de alvenaria; o teto, com travejamento de aço inoxidável, está coberto com chapas de zinco que são remendadas na estação seca.
Possuímos pouca ou nenhuma divisão social; ignora-se a organização familial e a propriedade com a mesma displicência com que se abandonou o registro histórico e a busca do conhecimento. Uma vez que não há casais fixos ― todos fazem sexo entre si livremente ―, os filhos são de todos e de cada um; não se toleram descuidos ou maus tratos para com os curumins. As mães cuidam das crias por sete anos, aproximadamente, recebendo da comunidade uma isenção de tarefas semelhante àquela dispensada aos idosos. A passagem para a idade adulta acontece naturalmente, via de regra, quando a criança ganha um apelido; o aparecimento do nome sinaliza o desmame da fantasia, avisando que a metamorfose se completou: onde antes havia um rei ou uma rainha, deveio o sujeito-homem.
A única polêmica que ainda consegue separar dois praianos em campos diametralmente opostos numa discussão é ociosa: chegamos ao zênite da civilização possível, ou, ao contrário, estamos nos aproximando insensivelmente da barbárie? Digo que a questão é ociosa porque, qualquer que seja o ponto de vista assumido, não leva a nenhum câmbio da atitude prática, individual ou coletiva. De há muito notei que ninguém entra e ninguém sai daqui, nunca ― e sobre este assunto não há quem discuta, sequer mencione. Alguns solstícios atrás, tentei fugir desta prisão abençoada por um clima ameno e dourada eternamente pelo sol. Temendo as fortes correntes marinhas para além da barreira dos recifes, escolhi a rota da montanha.
Peguei um facão e uma lança, acomodei no alforje algumas postas de peixe seco, goiabas, jambos, frutas-do-conde, araçás e tâmaras; armei-me de toda a coragem de que dispunha depois de fumar um pango e mandar pra dentro duas boas talagadas de cachaça. O dia raiara há pouco; queria aproveitar o máximo de luz na jornada, porém, na mata fechada, reinavam a sombra e a umidade. O noitibó e o juriti cantavam ainda seu aboio tristonho, mas já se podia ouvir o charivari dos bandos de tuins acordando ao norte da trilha e o fuzuê dos quero-queros na praia. Segui bem por umas três horas na subida de cabra da encosta norte, até perto do topo o caminho é batido e tem poucas pedras; podia ver rastros de capivara e sentia a presença dos sagüis e macacos-prego a me vigiar das copas das árvores.
As cigarras interromperam seu chiado enlouquecido, o calor começava a abafar; nenhuma brisa agitava as ramas e arbustos, a natureza emudecera. Conhecia o significado daquele silêncio súbito da floresta: predador nas redondezas. Minhas narinas se dilatavam procurando absorver todos os cheiros do entorno; havia chegado ao limite máximo que as pintadas e suçuaranas respeitavam nas suas incursões. Lembrei do ditado, tantas vezes repetido entre nós: “Quando você vê a onça, ela já estava te vendo há muito tempo”. Arquejando, encostei no tronco de um jequitibá gigantesco; um galho de pau-jacaré vergou lentamente, uma bromélia despencou do alto; a luz do céu, coada pela mata densa, entretecia azuis e verdes. Sentia o cheiro azedo do suor frio a me banhar ― era o budum do cagaço ―, imaginei que estava sendo seguido, mas nada se passava, nada se via.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Prainha (I)



            O morro nem se pode chamar propriamente de montanha, embora o esboço dos picos, pedregosos e alcantilados, lembre dedos indicadores que apontam o espaço assinalando aos homens a trajetória inviável. Atrás dele, o sol se põe todos os dias. Dois contrafortes laterais descem num declive abrupto desde o topo, inclinando-se mais suavemente à medida em que avançam algumas dezenas de braças na linha do mar, delimitando assim a pequena enseada onde fica a Prainha ― como braços de um colosso enterrado até a cintura que ousasse recortar nas areias do litoral o refúgio do seu mundo de caprichos. Esticada numa reta imaginária, a praia chegaria mais ou menos a um quilômetro de extensão; rasa, tépida e com poucas ondas, mais parece uma piscina de água verde-escura defendida por falésias ligeiramente dissimétricas, a norte e ao sul, e por uma barreira de recifes e rochedos marinhos a quinhentos metros da orla. Um enclave, se de sonho ou pesadelo, inferno ou céu, não saberia dizer. Olhando do mar para o continente, o imenso calhau se apresenta revestido por uma colcha de mata compacta; a encosta meridional, a menor delas, à esquerda, é metade descampada, exibindo uma cobertura rala de capoeirões e tufos esparsos de capim-gordura ― exposta à adustão, e com uma camada de solo menos profunda, é a fralda da montanha fustigada pelos constantes incêndios do período de estiagem. Nesta época do ano, em que o manto florestado perde a intensidade dos seus tons verdejantes, e o vôo do tiê-sangue é apenas um rasto encarnado e fugaz, é quando os ipês-amarelos enfeitam o morro com seu ouro invernal, auxiliados pela floração dos portentosos guapuruvus, os gigantes-de-pés-de-barro da mata.
            A comunidade não deve ter menos de cem, nem mais de duzentas pessoas. Nunca contamos para saber. Aliás, não contamos nada e ninguém registra nada: os dias, os anos, as datas sagradas ou as profanas; aqui, todo dia é dia de viver, de trabalhar, de descansar, de dormir, de sonhar... e de esquecer. Somente se presta um pouco de atenção às estações do ano, porque a duração dos dias e das noites tem uma importância especial para todos. Nem mesmo a própria idade cada um de nós sabe; até onde posso constatar sobre mim mesmo, sei que não sou criança nem velho. Temos um líder, mas que não manda grande coisa, para falar bem a verdade, a maioria ignora quem ele seja; digamos que funciona como uma espécie de administrador de conflitos e conselheiro para os momentos difíceis. De tempos em tempos, sem nenhum motivo aparente, trocamos o chefe antigo por um outro qualquer, que, muitas vezes, nem queria a amolação do cargo.
            Progressivamente fomos abandonando a agricultura: a caça e a pesca são de tal modo abundantes, e os frutos silvestres se alternam tão prodigamente durante a temporada, que praticamente só nos damos ao trabalho de pegar o que cai na mão. A pesca é, literalmente, brincadeira de criança; basta vedar a saída dos peixes na altura dos recifes quando a maré baixa, para vermos as redes se encherem de anchovas, bonitos, tainhas, albacoras, baiacus (estes, evitamos comer), mulatas, sororocas, piranjicas, namorados, bodiões, corvinas, pargos, badejos, frades, garoupas, cavalas, xaréus, voadores, bagres, pescadinhas, e até mesmo alguns golfinhos e deliciosas tartarugas. Vez que outra, capturamos um bando de bugios na mata e armamos uma bela churrascada comunitária, já que porcos-do-mato, capivaras, patos e veados são bem mais raros nestas bandas.
            Que eu me lembre, só tivemos um período de crise propriamente dita, e foi há muito, muito tempo, acho, ou, melhor dizendo, tenho certeza, porque ainda era um guri que vivia trepado em árvores caçando passarinho, e corria mundo atrás de calango, fazendo armadilha pra cutia ou desentocando ninhos de cobra. Tinha havido uma série incomum de incêndios na mata, o que afugentou a caça e dizimou as frutíferas da estação; isto, combinado a um evento muito mais raro, a maré vermelha, produziu aquela inédita escassez de alimentos. Passamos um aperto, vivendo à base de fruta e farofa, mas nada que chegasse às raias do desespero: organizaram-se grupos de trabalho, que mais pareciam equipes de uma gincana, e vencemos a fase ruim labutando como quem folga.
Colhemos a mandioca-brava e a fervemos longamente pra tirar o veneno, de modo a obter a farinha; enquanto isso, outro grupo se embrenhou no mato à procura do pau-formiga, de cujo tronco comprido e delgado vinha o principal ingrediente da saborosa farofa: formigas. Era uma festa: os adultos, sopravam fumaça de folhas verdes no tronco; a molecada, numa assuada incrível, batia com paus e pedras no oco das árvores compridas, e de lá borbotavam as bichinhas espaventadas, prontas para serem recolhidas aos milhões. Iguaria quase inexaurível, prova de que a necessidade é o melhor tempero. Por outro lado, demos sorte porque também era tempo de pacovas, e estas se concentravam no lado que as labaredas preservaram.
A pacova lembra uma palmeira, pelo crescimento das folhas e pela altura, mas se desenvolve como uma cebola. No início, mal se distingue o bulbo cheio de barbelas que, tão logo brota à flor do chão, lança folhas abraçadas ao caule, e arriba engrossando e deitando novas folhas pelo seu olho, de onde pendem da cana central em hastilhas rendeadas. Quando a sua constituição atinge a altura de cinco metros já deita flores, roxas, grandes, do feitio de espigas de milho, que brotam do mesmo olho das folhas ficando de banda, em cachos; estes crescem, sempre conservando um bolão fechado na ponta, até três palmos de comprido e desfolham, saindo de dentro deles os frutos, semelhando figos ― são as pacovas.
Fruta deliciosa, maciça e sem caroço, de casca tão tenra que basta meter-lhe a unha para a desembaraçar de sua túnica; uma única pacova alimenta um homem feito por todo o dia. Sustento, fartura e delícia de todos ― quem viveu aquela época sabe que, sem as formigas e as pacovas, teríamos morrido de fome.

O POVO QUE PASSA NA RUA



Tem um povo
que passa cedinho na rua
seja no sol, seja na chuva
a caminho de algum lugar

A vida inteira
dia após dia, dia após dia
o povo passa na rua, eles
levando uma pasta, algum

Um guarda-chuva
e  o carrinho de feira, elas
uma sacola profunda, uma
do povo que passa na rua

Domingo
o povo que passa na rua
e parece pintado de azul
e parece pintado de rosa
é a missa, sem dúvida é.

foto: Oswaldo Goeldi

sábado, 5 de janeiro de 2013

O seqüestro do Tunico (final)


            ― Moreira, você tem um tempinho agora? Tenho umas perguntas pra te fazer ― Runa sentia-se bem melhor, chefes e estupradores só faziam aumentar sua azia existencial.
            ― Tenho sim, e é bom porque nós tamo precisando atualizar o blog, também tenho um par de coisas pra perguntar. Vamo aqui perto... humm, no Campo Belo, tenho um QRA com o dono de um Pizza Grill da hora. No meu?...
            ― Claro, não vou perder a chance de andar num cabine dupla...
            ― Maria-gasolina!
            ― Quê? De poizé já basta a minha lata-velha, bem que tô merecendo um dia de princesa hoje...
            No caminho para o restaurante Moreira deu a fita: o comedouro pertencia a um antigo ‘ganso’ seu que enricou e cansou da vida bandida; durante a semana servia um bufê de almoço razoável, mas, para ele, havia sempre menu à la carte e um reservado especial. E o melhor de tudo, na vasca. Foram recebidos pelo dono na porta e encaminhados para uma mesa nos fundos de costas para um pequeno jardim de inverno. Runa mudou de lugar, sentando-se do lado direito de Moreira.
            ― Perfeito. Gostei, era exatamente o que esperava de você.
            ― Como assim? O que é que você estava esperando de mim, Moreira?
            ― Tudo. Sentada à minha esquerda, você perdia um bom pedaço de ângulo do salão, e por isso mudou instintivamente de lugar. Três perguntas: a senhora sentada na primeira mesa logo à entrada, qual a cor do vestido dela?; segunda, quantas saídas tem o boteco?; terceira, responda sem olhar, quantas pessoas você calcula que estão aqui dentro neste momento?
            ― Não estou entendendo... a senhora estava de vestido azul, não, era verde, um verde piscina; há três saídas: a porta principal, a da cozinha e uma lateral, provavelmente para os fornecedores; chuto umas quinze pessoas... mas por que?...
            ― Por quê? Ora, por nada, Franklin, absolutamente nada. Todos esses detalhes que você notou não servem pra picas neste momento... mas podem vir a ser úteis, numa emergência. Na maior parte das vezes são observações inúteis, mas é assim que são os verdadeiros tiras: têm esse olhar vagante pras coisas que não estão na frente do nariz. Esta é a marca do esbirro à vera, não a do cão raivoso; um polícia que mereça esse nome não engole mosca, nunca baixa a guarda, nunca fica de bobeira no lance. Eu notei essa qualidade fundamental desde a primeira vez que botei os olhos em você. Outra coisa: contando o pessoal da faxina, temos aqui dentro treze viventes; o resto, ou é comida, ou rato, ou barata.
            ― Hahaha, maravilha pra abrir o apetite! Você é mesmo uma figuraça, cara, quando crescer quero ser igual a você.
            ― Pois é aí que mora o problema, deste jeito, você não vai, não... nem vai crescer, e, talvez, nem consiga envelhecer na profissão...
            ― Quelamerda, não me diga que vou tomar o segundo esporro do dia...
            ― Se você entender assim, que eu posso fazer? O busílis é o seguinte, percebi que você tá cheia até no tampo de um sentimento equivocado: a indignação. A indignação faz o bom cidadão e o mau, o péssimo, policial; as duas coisas não existem juntas, você vai ter que escolher, minha filha. Um beleguim indignado fica cego, perde o faro, e começa a querer pagar de juiz; vira palmatória da sociedade, que é tudo que ele não pode, não deve, ser. Embora também seja verdade que, ao perder qualquer resquício de indignação, o camarada fica também sem todos os seus freios morais; daí pro bandido de insígnia é um pulinho de nada... Sou um cara que lê bastante, muitos polícias são assim, leio principalmente sobre história; e o que aprendi com isso?, aprendi que a história é a ciência do sofrimento humano, aprendi que não há como sair fora da história, nem da sua, nem da dos outros. Sabe?, às vezes me passa um arrepio quando pego uma dessas bestas-feras como aquele estuprador lá do pau-de-arara... tu precisava ver o DVC do vagabundo, uma capivara enorme, praticamente foi criado pela FEBEM... Não consigo evitar um pensamento terrível: que aquilo é o barro de que todos nós somos feitos, aquilo é o Homo sapiens, o macaco que desceu das árvores, ou saiu das cavernas, sei lá; o que a gente chama de ser humano é na verdade o esforço que fazemos pra deixar de ser assim, um esforço insano, antinatural, uma trabalheira do caralho, e sempre pronta a regredir... parece que nós nunca terminamos, nem nunca vamos terminar, de nos tornar... humanos! Você me entende?
            ― Então você não acredita mais na justiça?
            ― Justiça, ora, justiça de cu é rola! A polícia existe porque o mundo é o que é, e não o que deveria ser. Esquece a Justiça, o que se faz, na melhor das hipóteses, é a justiça possível; justiça com maiúscula só há nos ofícios, nos tribunais, vai lá nos fóruns ver o elevador exclusivo dos desembargadores, quando eles entram, desce todo mundo; pra esses daí, o J é bem grandão, te garanto! Quantas vezes a gente não vai lá e prende a menina e o namorado que mataram o padrasto dela; os dois são presos e condenados: justiça foi feita? Claro que não. E esse padrasto que bolinou a garota durante anos?, e essa mãe olho-de-vidro que se fingia de morta pro filho de uma quenga não picar a mula? A esmagadora maioria dos crimes não são alcançados pelo braço da lei; o fulano foi pego roubando três milhões?, pode crer que foram mais de trinta; o matador confessou uma morte?, pois foram seguramente dez, e assim vai... Não teve esse governador e prefeito que roubou durante décadas esta cidade?, foi pego, e ainda assim lá fora, por uma (umazinha só!) das obras superfaturadas que fez a vida inteira; pegaram uma transferência esquisita de Nova Iorque pra Suíça só porque os americanos tavam apertando as correrias dos terroristas; te pergunto: fez-se justiça, ou foi um acaso? Parece piada: o salafra vai ter de pagar dez por cento de multa do que roubou, dez por cento! Eu invejo mesmo são os lixeiros, desses que limpam fossas; não, não ria não, eles revolvem o mesmo lodo que nós, só que o nosso esgoto não se limpa nunca, no máximo a gente dá um tapa bem por alto. Somos as diaristas de luxo dessa sociedade de merda; nós, homens da lei, não podemos ter muita estima pelo mundo, não. Você precisa entender que o Abelha tem uma certa razão: não usamos os mesmos métodos no barraco da favela e no palacete dos bacanas; granfo tu só interroga na presença de advogado caro, e não tem pressão nem esculacho, é tudo no sapatinho. Quanto mais rápido você aceitar isso...
            ― Falando em grã-fino, descobri umas coisinhas lá no Mares do Sul. Vou precisar dos teus contatos...
            ― Manda, abre o saco Judas.
            ― A parada lá no cafofo dos endinheirados é nervosa, uma moradora me passou um DVD que tá circulando entre os condôminos: um vídeo gravado pela empresa que presta segurança mostrando o síndico exigindo a primeira parcela do contrato na conta dele, mais dez purça do valor mensal. Daí que veio o seqüestro do totó da mulher dele... acho que era só pra dar um apavoro, mas não deve ter funcionado muito.
            ― Hmm, empresa de segurança... de quem é?
            ― Então, aí que a porca torce o rabo: chama-se Serv Segur, dei uma pesquisada e descobri que é do doutor Inojosa; aquele, da Seccional...
            ― Puta merda! Então a briga é de cachorro grande, o Inojosa manda e desmanda lá no DECAP... Tudo bem, vou dar uma palavrinha com ele. Afinal, tá devendo uma: quase racharam o coco de uma policial minha na brincadeira. Fica fria que tu vai fazer o cartaz lá com a gostosona, quer dizer, se a esta hora o lulu ainda não virou sabão...
            Dois dias depois, caso encerrado; o valente Tunico foi devolvido num terreno baldio, quem era branco se entendeu, quem podia mandar, mandou, e quem foi esperto obedeceu. Tudo acabou bem, ou quase: Tunico voltou com um quilo a menos, cheio de pulgas e ainda teve o rabo amputado pelos meliantes que o seqüestraram. Maldade gratuita, relatou a detetive ao superior conversando pelo celular; novamente o Moreira lhe esclareceu a linguagem dos sinais: “Coisa de mafioso, a mensagem vem escrita na vítima; tá dizendo que devolvem o que foi subtraído, mas acabou o arrego”. Putz grilo, sempre aprendendo. “Moreira, o síndico é podre de rico, mora numa cobertura dúplex de cinema, dono de construtora e o carai, pra quê roubar até nisso?”; um suspiro do outro lado, então, a resposta: “Um-cinco-sete é sempre um-cinco-sete, rouba por sistema, por vício; se fosse a necessidade a fazer o ladrão, era melhor murar e gradear as favelas logo de uma vez; e tu sabe que não é isso, tá no sangue”.
            Runa Franklin pegou seu pau-velho no estacionamento da delegacia às seis da tarde para encarar o trânsito infernal da zona sul. Ia direto pra casa, em Santo Amaro; sentia-se quase feliz, nem a perspectiva do congestionamento a incomodava muito. Abriu a janela do carro sem ar condicionado e pôde desfrutar a fedentina que emanava do Pinheiros; lembrou do esgoto que não se podia limpar de que falara o Moreira, lembrou do Tunico, aleijado, pobrezinho ― o único completo inocente da história. Nesta vida, ninguém está a salvo das lambadas, até quem nasce em berço de ouro.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O seqüestro do Tunico (parte 3)




            — O Abelha quer falar com você, e tá uma vara; melhor não embaçar, vai direto lá na sala dele.
            Ouviu a mesma frase várias vezes, com ligeiras variantes, da boca de variadas pessoas assim que pisou no distrito na manhã seguinte. Tinha passado o dia anterior todo no condomínio dos playbas e não podia imaginar o que cacique podia querer com índio tão cedo — menos ainda com o que poderia estar tão puto. O Abelha, no caso, era ninguém menos que o delegado titular do DP; com efeito, o doutor Osnir merecia triplamente o apelido porque: a) ou estava voando; b) ou fazendo cêra; c) ou ferrando alguém. Do assunto ninguém sabia, mas da entubada ninguém tinha dúvidas.
            No segundo andar encontrou o Moreira que lhe hipotecou solidariedade por meio de gestos e olhares significativos; a mensagem tácita implicava que ele arranjaria algum motivo para interromper a 'mijada' do superior hierárquico. Sentia aquele peso quente e característico um palmo acima do umbigo; uma dor espalhada, enjoativa, tão sua velha conhecida quanto a musiquinha do Fantástico — desde que se entendia por gente, e isto remontava à primeira vez que menstruou, se acostumara com algum grau de gastrite. Na sua escala de mal-estar a dor atingia o embrulho, sem chegar ao grau do agulheiro interno, muito distante das punhaladas no baixo ventre. Bateu na porta de leve, mas não esperou a resposta para entrar.
            — O senhor me chamou...
            — Ah, apareceu a margarida! A senhorita é capaz de me explicar o monte de merda que andou fazendo, hem?
            — Não estou entendendo, doutor, o que foi que...?
            — Não entendeu? Então tá, quem sabe eu fazendo um desenho, você entende... começa me explicando pra que bosta foi chamar a Científica, que tal?
            — Bem, é que houve um atentado durante a diligência...
            — Um atentado?! Uma porra de um vaso caído, a policial está dizendo que é atentado? Escuta, e quando for recebida a bala, vai chamar como? Guerra civil? Puta que pariu, quanto mais rezo, mais me aparece assombração; você tá querendo me foder?
            — Mas doutor...
            — Mas doutor é o caralho! Porra Franklin, te ponho numa fita molezinha e tu me apronta?! Tu me trava o condomínio inteiro com a merda da perícia, é o cu da cobra! E olha que avisei pra ir devagar com a louça... meu, tudo que não pode fazer com rico é escândalo... Tá assistindo seriado americano demais, é?
            — Com todo respeito doutor Abe... Osnir, doutor Osnir... quando recebi a incumbência achei que era frescura de bacano, mas agora acho que tem umas coisas estranhas ocorrendo lá...
            — Mas que porra Franklin, quanto mais eu falo, menos você escuta! De onde você acha que vieram os porcelanatos desta delega, o acabamento de grafiato, os mármores dos toaletes, hem?, do bolso dos munícipes? Quem paga os luxos desta merda de distrito são nababos como esses do Mares do Sul, captou? O que tu vai fazer é arredondar essa ocorrência; vê se pesca essa, que eu vou te dar o bizu: rico a gente investiga quando a imprensa tá em cima, e mesmo assim, só até um certo ponto. Já pobre, só vira inquérito quando morre a granel!
            — Há indícios de chantagem... não posso fazer de conta que não vi...
            — Ah, vá pra puta que te pariu! — o Abelha agora gritava a plenos pulmões, esmurrando a mesa feito um possesso. — Quero mais é que se foda, já não me importo quem te pôs aqui dentro, nega, se tu remexer mais nessa bosta, vou te pôr na patrulha da Paraisópolis, copiou? A gente dá uma boiada pros outro e dá nisso... Olha aqui: você vai acreditar no que tá vendo, ou no que eu tô te dizendo?
            Naquele momento irrompeu na sala a bendita figura do Moreira, trazendo providenciais boas novas para acalmar o fígado do mandachuva.
            — Doutor, pegamos um dos malas que agiam no Brooklin, os do assalto a residência... Tá lá na sala de "massagem", os rapazes tão dando uma primeira amaciada, acho que ainda hoje canta...
            — Moreira, bom que você apareceu... faz o seguinte: me tira essa monga daqui rapidinho, senão esqueço o QI dela e mando de volta pro buraco de onde veio...
            De todas as ofensas do Abelha esta foi a que calou mais fundo na investigadora, embora nenhum dos dois homens presentes tivesse como saber. Moreira arrancou a novata da sala antes que soltasse uma nova asneira e arrastou-a para o cafezinho dar uma espairecida; inutilmente, Runa não aceitava nem café, nem ombro amigo; pediu licença para dar uma volta. A gastrite pegando fogo, queria chorar sozinha dentro do carro.
            Voltou uma hora depois, mais calma e disposta a conversar com o Moreira. Tinha uma ou duas perguntas para lhe fazer agora que raciocinara um pouco melhor; como sempre acontece nessas horas, deu de cara com quem menos queria encontrar.
            — Investigador Franklin e os...
            — Mega, hoje não é um bom dia, me gasta a paciência não, tá? Amanhã te passo a porra da papelada! — saiu pisando duro na direção da sala de interrogatórios "enérgicos", ou, como diriam os americanos, onde se praticavam técnicas "heterodoxas" de entrevista policial.
            O malaquias estava pendurado no pau-de-arara com um cassetete enfiado no cu. Ela conhecia aquele cheiro de outros carnavais: o odor almiscarado de bicho acuado; vagabundo quando caía ali sabia que não tinha mais pra onde escapar, acabava dando o serviço. Só tentavam não entregar a fita de cara pra não perder o respeito dos canas — e também, se fosse o caso, dar tempo para os parceiros acharem um mocó ou cair no mundão.
            — E então, esse zé-ruela tava ramelando na área? — dirigiu-se ao Moreira, cumprimentando o outro policial presente com um aceno.
            — Dá pra acreditar? Tava de rolê num cabrito filmando a próxima casa que ia fazer, o cabação! Agora precisa cantar pra nós o nome dos comparsas... tá me ouvindo mané? Porque aqui nós tamo pegando levinho, só laceando tua rodilha, seu escroto, tu vai ver o que vão te fazer lá na carceragem... tamo batendo sem deixar marca, porque ainda vamos te apresentar pros jornalistas com a cara inteira, mas lá no DEIC, já viu o que vai te acontecer...
            — Foi ele que estuprou?
            — Esperando o DNA. Mas, se liga no naipe... isso não é gente, é bicho solto...
            Runa se aproximou do suspeito e vomitou bem na cara do safado; uma 'borfada' com gosto, classuda, daquelas sem medo de molhar a sandalinha. O carcará sanguinolento gemeu uma latomia de queixas enquanto o líquido fedorento, bilioso, de quem não tinha comido quase nada até o momento lhe escorria pelo rosto abaixo — não se deu por satisfeita: catou um spray de pimenta e jateou-lhe a fuça. A sala, convenientemente guarnecida de revestimento acústico, se encheu com os gritos do prisioneiro. O ar ficou irrespirável, os policiais saíram.