O
morro nem se pode chamar propriamente de montanha, embora o esboço dos picos,
pedregosos e alcantilados, lembre dedos indicadores que apontam o espaço
assinalando aos homens a trajetória inviável. Atrás dele, o sol se põe todos os
dias. Dois contrafortes laterais descem num declive abrupto desde o topo,
inclinando-se mais suavemente à medida em que avançam algumas dezenas de braças
na linha do mar, delimitando assim a pequena enseada onde fica a Prainha ― como
braços de um colosso enterrado até a cintura que ousasse recortar nas areias do
litoral o refúgio do seu mundo de caprichos. Esticada numa reta imaginária, a
praia chegaria mais ou menos a um quilômetro de extensão; rasa, tépida e com
poucas ondas, mais parece uma piscina de água verde-escura defendida por
falésias ligeiramente dissimétricas, a norte e ao sul, e por uma barreira de
recifes e rochedos marinhos a quinhentos metros da orla. Um enclave, se de
sonho ou pesadelo, inferno ou céu, não saberia dizer. Olhando do mar para o
continente, o imenso calhau se apresenta revestido por uma colcha de mata
compacta; a encosta meridional, a menor delas, à esquerda, é metade descampada,
exibindo uma cobertura rala de capoeirões e tufos esparsos de capim-gordura ―
exposta à adustão, e com uma camada de solo menos profunda, é a fralda da
montanha fustigada pelos constantes incêndios do período de estiagem. Nesta
época do ano, em que o manto florestado perde a intensidade dos seus tons
verdejantes, e o vôo do tiê-sangue é apenas um rasto encarnado e fugaz, é quando
os ipês-amarelos enfeitam o morro com seu ouro invernal, auxiliados pela
floração dos portentosos guapuruvus, os gigantes-de-pés-de-barro da mata.
A
comunidade não deve ter menos de cem, nem mais de duzentas pessoas. Nunca
contamos para saber. Aliás, não contamos nada e ninguém registra nada: os dias,
os anos, as datas sagradas ou as profanas; aqui, todo dia é dia de viver, de
trabalhar, de descansar, de dormir, de sonhar... e de esquecer. Somente se presta
um pouco de atenção às estações do ano, porque a duração dos dias e das noites
tem uma importância especial para todos. Nem mesmo a própria idade cada um de
nós sabe; até onde posso constatar sobre mim mesmo, sei que não sou criança nem
velho. Temos um líder, mas que não manda grande coisa, para falar bem a
verdade, a maioria ignora quem ele seja; digamos que funciona como uma espécie
de administrador de conflitos e conselheiro para os momentos difíceis. De tempos
em tempos, sem nenhum motivo aparente, trocamos o chefe antigo por um outro
qualquer, que, muitas vezes, nem queria a amolação do cargo.
Progressivamente
fomos abandonando a agricultura: a caça e a pesca são de tal modo abundantes, e
os frutos silvestres se alternam tão prodigamente durante a temporada, que praticamente
só nos damos ao trabalho de pegar o que cai na mão. A pesca é, literalmente,
brincadeira de criança; basta vedar a saída dos peixes na altura dos recifes
quando a maré baixa, para vermos as redes se encherem de anchovas, bonitos, tainhas,
albacoras, baiacus (estes, evitamos comer), mulatas, sororocas, piranjicas,
namorados, bodiões, corvinas, pargos, badejos, frades, garoupas, cavalas, xaréus,
voadores, bagres, pescadinhas, e até mesmo alguns golfinhos e deliciosas
tartarugas. Vez que outra, capturamos um bando de bugios na mata e armamos uma
bela churrascada comunitária, já que porcos-do-mato, capivaras, patos e veados
são bem mais raros nestas bandas.
Que
eu me lembre, só tivemos um período de crise propriamente dita, e foi há muito,
muito tempo, acho, ou, melhor dizendo, tenho certeza, porque ainda era um guri
que vivia trepado em árvores caçando passarinho, e corria mundo atrás de
calango, fazendo armadilha pra cutia ou desentocando ninhos de cobra. Tinha
havido uma série incomum de incêndios na mata, o que afugentou a caça e dizimou
as frutíferas da estação; isto, combinado a um evento muito mais raro, a maré
vermelha, produziu aquela inédita escassez de alimentos. Passamos um aperto, vivendo
à base de fruta e farofa, mas nada que chegasse às raias do desespero:
organizaram-se grupos de trabalho, que mais pareciam equipes de uma gincana, e
vencemos a fase ruim labutando como quem folga.
Colhemos a
mandioca-brava e a fervemos longamente pra tirar o veneno, de modo a obter a farinha;
enquanto isso, outro grupo se embrenhou no mato à procura do pau-formiga, de
cujo tronco comprido e delgado vinha o principal ingrediente da saborosa farofa:
formigas. Era uma festa: os adultos, sopravam fumaça de folhas verdes no
tronco; a molecada, numa assuada incrível, batia com paus e
pedras no oco das árvores compridas, e de lá borbotavam as bichinhas
espaventadas, prontas para serem recolhidas aos milhões. Iguaria quase
inexaurível, prova de que a necessidade é o melhor tempero. Por outro lado,
demos sorte porque também era tempo de pacovas, e estas se concentravam no lado
que as labaredas preservaram.
A pacova
lembra uma palmeira, pelo crescimento das folhas e pela altura, mas se
desenvolve como uma cebola. No início, mal se distingue o bulbo cheio de
barbelas que, tão logo brota à flor do chão, lança folhas abraçadas ao caule, e
arriba engrossando e deitando novas folhas pelo seu olho, de onde pendem da
cana central em hastilhas rendeadas. Quando a sua constituição atinge a altura
de cinco metros já deita flores, roxas, grandes, do feitio de espigas de milho,
que brotam do mesmo olho das folhas ficando de banda, em cachos; estes crescem,
sempre conservando um bolão fechado na ponta, até três palmos de comprido e
desfolham, saindo de dentro deles os frutos, semelhando figos ― são as pacovas.
Fruta
deliciosa, maciça e sem caroço, de casca tão tenra que basta meter-lhe a unha
para a desembaraçar de sua túnica; uma única pacova alimenta um homem feito por
todo o dia. Sustento, fartura e delícia de todos ― quem viveu aquela época sabe
que, sem as formigas e as pacovas, teríamos morrido de fome.
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