domingo, 28 de julho de 2013

Aparição do Demônio na Torre do Mundo (final)




Segundo uma visão amplamente difundida, crises econômicas são processos inerentes ao modo de produção capitalista, um sistema que promove periodicamente a destruição seletiva de capitais, destruição esta, necessária para que o sistema possa retomar novos ciclos de acumulação. No entanto, percebe-se que é absolutamente obscura a forma pela qual a potência hegemônica e os Estados nacionais arbitram as disputas políticas, as perdas, e impõem o ônus dessas destruições. Nos últimos quarenta anos, a grande finança mundial organiza quadrilhas, comete crimes e contravenções em escala mundial, compra elites políticas, fabrica leis em benefício próprio, corrompe as instituições regulatórias, provocando, em conseqüência, crises abissais periódicas. A sujeira causada pelos chamados Senhores (e ladrões) do Universo é limpa com dinheiro público. Desde que, em 1973, começou a desregulamentação do mercado financeiro, encerrando a grande expansão do capitalismo mundial iniciada em 1945, a alta finança especulativa tem sido responsável direta pelas crises econômicas que sacodem o planeta. O primeiro colapso espetacular ocorreu em meados dos anos 1980 nos EUA e Japão, arrastando o sistema bancário japonês e as caixas de poupança (Savings & Loans), a bolha financeira da década seguinte iria estourar em 2001, envolvendo bancos e auditoras como a Arthur Andersen, que ajudaram grandes empresas a maquiar balanços e rapinar o mercado (casos Enron, WorldCom, Tyco, GlobalCrossing, Lucent e Adelphia); nos anos 2000, bancos europeus foram condenados por ajudar clientes a fraudar o imposto de renda. De acordo com a ONU, a crise global de 2008, desencadeada a partir dos créditos podres do mercado imobiliário americano, já consumiu mais de 20 trilhões de dólares em ajuda pública a bancos e outras instituições financeiras privadas. Este valor é dez vezes maior que os 2 trilhões de dólares que os países ricos doaram aos países em desenvolvimento nos 67 anos de existência da Organização. Esta última crise destruiu milhões de empregos, elevando em 50 % as taxas de desemprego em todo mundo.

            ― Parece que temos uma epidemia... todos os dias recebo novos comunicados em que funcionários da manutenção, da limpeza ou da segurança relatam o aparecimento do Diabo em algum canto...
            ― Pois é, Macedo, o último caso foi das faxineiras, no palco do Golden Hall.
            ― Varia um pouco, mas é sempre a mesma ladainha: dizem que o Senhor das Trevas surge à distância, bem vestido, calado, tirando uma com tudo e todos... Às vezes é um cavalheiro sem cabeça, noutras, carrega a cabeça a tiracolo. Temos um belo pepino nas mãos, meu caro!
            ― Veja, não estou parado, convoquei reuniões, enquadrei as equipes e os supervisores de cada área, mas...
            ― Sei disso, nada está adiantando. Escuta, conseguiu contato com o pastor Dimas?
            ― A secretária dele vai me dar um retorno hoje de tarde... A idéia é trazer uma comissão com ministros da Universal, da Mundial, Deus é Amor, Evangelho Quadrangular, Sara Nossa Terra, Renascer e da Assembléia pra exorcizar as instalações do complexo... talvez até fazer um culto ecumênico com as equipes...
            ― Quer dizer, são os nossos principais clientes da Feira Cristã...
            ― Sim, consegui falar com a assessoria de imprensa deles, e eles se mostraram favoráveis a uma intervenção mais... bem, mais de massa, do que com pequenos grupos, entende?
            ― Sim, claro, o negócio deles é business, grandes números... Mas, não vai ter padre nessa?
            ― Hã, o padre da paróquia daqui não aceitou fazer parte do grupo. Vem depois, sozinho.
            ― Putz, o franqueador não reconhece os franqueados... bom, isso não é problema nosso, o importante é que não deixe de vir. Precisamos ter uma representação o mais ampla possível.
            ― Ok, Macedo, mais alguma coisa?...
            ― Sim. Até onde eu sei, são dois os focos iniciais dessas... visões, um tal de Altair, da segurança, e a Cida, da limpeza. Procede? Então, quero que você ponha esses dois na rua, o quanto antes.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

Aparição do Demônio na Torre do Mundo (parte 2)



― Cida, vem cá rapidinho, ói lá quem tá passando! Não é o bigodinho que tu paga pau? Menina, ainda tô pra entender o que tu viu nesse homem: mofino demais, falto de carne, é só o furo e a catinga esse desinfeliz. Pra mim, homem tem que tê carne onde pegar, sabe?...
― Ei, se aquiete, esqueceu que aqui não se pode coçar o suvaco sem zóião ver nóis? Faz que tá voltando pra limpar um pedaço que esqueceu... Mais um pouco e vão ponhar câmera pra filmar nossas idéia e ver o que tem drento...
― Tô nem aí pra hora do Brasil, faço nada de errado, eles que veja! Mas, e aí, é namoro ou amizade? Me embroma não que eu vejo teu olhinho brilhar quando esse guardinha aparece. É Altair o nome dele, né não?
― É sim, Altair, lá da minha quebrada, Jardim Robru. Ah, esse daí eu levava pra casa, conzinhava, passava, pregava os botão da camisa dele... Mas não tenho nada com ele não, minha comadre é que era amiga da mulher dele... é viúvo.
― Vixe Cida, a coisa tá pior do que eu pensava, tu tá caidinha pelo Playmobil...
― Bah, que bestagem essa história de Playmobil, como se um homem só fosse homem de arma no cinto!
― É, mas pra nóis é ainda mais pior, sabe como chamam a gente? As tiazinha da limpeza, pilota de esfregão... é ruim, hem!?
― Povo não tem o que falar, fala merda. Você pega mais água nesse balde, fazendo favor? O que atrapalha nóis é esse uniforme, a cor, as galocha, a gente fica feia que só... Tá rindo de quê, criatura?
― Nada não, hihihi, é que é osso: as marronzinha do rodo...
― Sai pra lá, mulher, quem acha tudo gozado é arrumadeira de motel. Todo mundo despreza nóis: os gravatinha nem sabem que a gente existe, e ainda vem esses zé-ninguém que não sabe fazer um “o” com o copo, falar de nóis...
― Verdade o que dizem dele? Que teve uma desgraceira danada na família?
― Tudim. O negócio foi tão feio que deu no Jornal Nacional: uns bandido entraram na casa e fizeram gato e sapato com eles. Como dinheiro não tinha, nem celular, nem computador, a TV era velha, saíram tocando o terror, o menino se assustou e eles atiraram nele, a mãe foi proteger e também levou prego... Quando o Altair chegou, já não tinha era família nenhuma, mulher e filho ali mesmo na sala, abraçados...
― Sangue de Jesus! Que história medonha, Senhor, como é que esse homem ainda tá de pé?
― Apois, até tomar veneno ele tentou, mas fracassou... Eu fui no velório com a minha comadre, vi tudo: as flor amarela e branca, sabe tagete, o cravo-de-defunto?, pela casa toda... os espelhos todo coberto de pano, os dois caixão com os pé voltado pra saída da casa... Tristeza de meu Deus! Despois, ele tingiu foi toda as roupas de preto, comprou pó Guarany, conzinhou em água quente as camisa, as calça e as meia. Ver ele daquele jeito dava uma dó demais... Por isso que ele agora só pega turno da noite, vive que nem sombra, é uma morte despois da morte...
― Então, vai ver que... Cida, cê tá sabendo o que aconteceu com ele, dois dias faz, na ronda noturna?

― Altair, cê que vai falar, firmeza?
― Por que eu só, tu não tava lá também? Oxe, sustente o que viu... além de que, nóis já botamo tudo no papel, foi não?
― Tá, tá, é que esse supervisor é mó cuzão do carai, enche os picuá do povo todo, um caga-regra da moléstia!
― Tem razão. Será que ele dando uma meia hora de bunda não melhorava?...
― Nem assim, viu...
(...)
― Entrem, senhores, sentem por favor. Fiquem à vontade. Vamos direto ao assunto, como já devem saber, a notícia do incidente ocorrido com vocês se espalhou, e nós estamos aqui pra resolver toda a questão antes que ela chegue na mesa do Macedo, o gerente operacional. Certo?
― Olhe, o senhor não acredite no que falam, nós não espalhou nada por aí...
― É sim, o senhor sabe como é a rádio-pião... mas não foi nós que...
― Entendam: o fato é que vocês dois relataram uma ocorrência que, logicamente, chama muito a atenção. E é isto que temos de esclarecer de uma vez por todas, o que aconteceu anteontem quando vocês dois faziam a verificação de rotina no heliponto?
― Foi igual que nem tá escrito: a gente tava no elevador subindo na cobertura, foi então que paramos no quinto, sem ninguém ter apertado...
― Daí tava ele lá, o Canhoto, de terno e gravata, sapato envernizado...
― Ah, e tinha aquela fedentina medonha, que parecia de curtume...
― Senhores, esta parte já foi esclarecida: havia um cano estourado no banheiro daquele andar, bem próximo ao elevador, por favor, prossigam...
― Então, nóis ficou assustado de encontrar alguém ali, numa hora daquela...
― E o Facho-bode tava lá, com um risinho fazendo pouco da nossa cara, foi quando o Altair falou com ele...
― É, assim meio sem saber porquê, eu perguntei: “tá subindo?”
― E o que essa, hmm, pessoa que vocês viram, respondeu?
― Nadim de nada, senhor, arreganhou inda mais o risinho de mofa e... apontou pra baixo com o dedo de unhona preta!
― Bem, será que vocês entendem a minha posição? Vejam, como é que fica um supervisor de segurança que tem nas mãos um relatório com uma ocorrência de invasão de dependências, e o intruso é o Demônio! È o descrédito total, vocês percebem?
― Mas o senhor não acredita em nós, ou não acredita no Que-não-fala?
― As minhas convicções, a minha fé pessoal não têm nada a ver com isto, o problema é ter um report como este pra levar aos superiores, ficou claro!
― E as filmagens, não apareceu nada?
― Er... por algum defeito técnico, as câmeras do andar não estavam, hã, registrando naquele momento...


terça-feira, 23 de julho de 2013

golpe baixo



o mundo passa
em imagens
fotogramas em fuga
contingência
falha
provisoriedade

não se pode ter acesso
ao mundo
senão pela poesia

o que de mim
desconheço
é o que me torna
eu

o amor é sempre um golpe
baixo
dos hormônios
da casualidade
do desconhecido


domingo, 21 de julho de 2013

Vender ou vender-se? Sobre o documentário "Marina Abramovic, a artista está presente"



A grande arte vale tanto pela vivência que envolve a sua fruição direta quanto pelas reflexões que suscita. Setecentas e cinqüenta mil pessoas tiveram o privilégio presencial, o documentário “Marina Abramovic, a artista está presente” de Matthew Akers (2012), registra uma performance histórica. O filme é centrado no evento realizado em 2010 no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que fazia uma grande retrospectiva de sua carreira. Marina Abramovic ficou sentada diante de uma mesa e uma cadeira que os visitantes eram convidados a ocupar de frente para ela durante três meses no átrio do museu. 

Muito embora uma série de regras estivessem cuidadosamente prefixadas (o tempo de que cada visitante dispunha, proibição de falar, jogar panfletos, tirar a roupa, etc.), não deixa de chamar a atenção as reações imprevisíveis que a arte performática sempre convoca no público. Generosa, a artista explicita o quanto há ali de produzido, de calculado, aliás, esta é a marca atual do seu trabalho, cálculo e programação rigorosos. Pouco espaço para o amadorismo e o espontaneísmo que marcaram sua carreira de performances radicais. 

Nos anos 70 do século passado, a arte performática se apresentou na cena das artes plásticas como um questionamento radical de todo o sistema de produção, circulação e comercialização vigente até então. Especificamente, as performances problematizavam o próprio sistema da arte, atacando um pilar básico do mercado: o objetinho-fetiche produzido pelo artista-celebridade não podia ser vendido a um feliz milionário que o exporia na sala, deixando os demais doentes por não o possuírem. Como, por exemplo, levar para casa um happening em que um homem e uma mulher se estapeiam por horas?

É emocionante a aparição do seu companheiro, na vida e na arte, Ulay, encontro que ocorre depois de mais de vinte anos de separação. De certa forma, Ulay e Marina são exemplares dos destinos da contestação aos pressupostos mercadológicos do fazer artístico. Curto e grosso modo, houve 2 alternativas aos anarco-artistas de ontem: Ulay é o típico exemplar do underground, fiel às origens, manteve o status de artista "maldito" e/ou "alternativo", vivendo das migalhas do tão criticado sistema, oposto na aparência àqueles que se renderam incondicionalmente ao Capital.

O problema é que, se Ulay pode ser encaixado sem traumas no clichê udigrudi, sua ex partner não é um típico produto do establishment. Marina Abramovic realiza uma proeza de largo alcance: não finge que está contra um Sistema mais onipresente que o Deus-Pai, ela o atualiza, o questiona de dentro (já que não há fora), impondo sua trajetória muito peculiar na história da arte. Marina não é cínica como Damien Hirst, o fatiador de tubarões e bezerros, ou como o palhaço Jeff Koons, mais prostituto que Cicciolina, com quem se casou.

Não, nada disso. Marina vendeu sua arte feita de corpo, presença ― e explicita sem mumunhas a forma como tornou esta arte vendável ―, já que é disso que se trata na performance, mas salvou (para ela e para o seu público) alguma “verdade” da alma, essencialmente artística. A “verdade” da arte não é a verdade “verdadeira”, mas a mentira que nos esclarece sobre a natureza da realidade e do ser humano. Isto não é pouco, nem fácil de se fazer. 

Arte depende do mercado. Sempre foi assim e sempre será, mas uma coisa é vender, bem outra é se vender. Prostituição sim, mas sem beijinho na boca!

sábado, 20 de julho de 2013

o instante sustenido



outro dia
tomando um café
me dei conta da fração
de segundo em que o obturador
da alma se abre
e então é a paixão inteira que se revela
em grande angular
apenas
talvez
um milionésimo de agora
um lampejo fugido
dos fingimentos da vida corriqueira
é o momento que acaba a espera
o outro chegou
quando houver uma câmera tão rápida
quanto os movimentos da alma
surpreenderemos o exato frame
em que a janela escancara
e leremos a verdade nua do coração
sem véus
sem o chumbo do hábito
sem a preguiça das convenções
pois nada é tão silenciosamente caro
quanto o pronto instante
a simples passagem da luz
quando algo centelha por trás
do tecido de um pano desfiado


domingo, 14 de julho de 2013

Aparição do Demônio na Torre do Mundo (parte 1)


São Paulo, 15 de setembro de 2008, 8:00 horas AM.

Poucos dias antes da chegada do outono no hemisfério norte, numa segunda feira de manhã, o banco Lehman Brothers pediu concordata. Na sexta feira anterior, dia 12, as ações do banco haviam caído 13,5 % na Bolsa de Nova York. Após um fim de semana de intensas discussões, o mais alto escalão das autoridades financeiras dos EUA decidiu, à 1 hora da manhã do dia 15, que não seria possível socorrer o Lehman. Participaram desta renião Hank Paulson, secretário do Tesouro dos EUA, Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve (o Banco Central americano) e Timothy Geithner, presidente do Federal Reserve de Nova York. Falia assim o quarto maior banco dos EUA, com 25 mil funcionários, ativos de 600 bilhões em 84 países do mundo, e 158 anos de existência. Era o início da primeira crise econômica mundial do século XXI.

            ― Senhores e senhoras, bom dia. Meu nome é Macedo, Ronivaldo Macedo, sou o gerente operacional do World Trade Center, o maior centro de eventos em um complexo hoteleiro no Brasil e na América Latina. O WTC Brasil faz parte da rede WTC Association, presente em mais de trezentas cidades e mais de cem países. Talvez alguns aqui saibam que temos orgulho em fazer parte da rede internacional Sheraton de hotéis. Nossa missão: prosperidade através do comércio, a prosperidade, pra ser bem exato, é o principal foco do WTC Business Club, uma completa infraestrutura para negócios, hospedagem, compras e lazer em um universo de sofisticação e estilo. São três os pilares principais dos nossos valores corporativos: associação, conhecimento e internacionalidade. Senhoras, senhores, vocês estarão de agora em diante encarregados da segurança de um dos mais importantes clubes de negócios do mundo: mais de dois mil membros entre os executivos das maiores empresas globais, dezenas de comitês especializados, cinco andares, doze mil metros quadrados divididos em sessenta espaços flexíveis que acomodam perto de trezentos grandes eventos por ano. Trabalhamos duro, e mais, somos diariamente avaliados. Cada um e todos aqui são vigiados vinte e quatro horas por dia, exames de surpresa mensais pra detecção de drogas, além de avaliações semanais por metas e resultados, e mais as duas semestrais com feedback de superiores e subordinados. Nossos clientes, ainda que venham das mais seletas redes mundiais de contatos profissionais, apresentam necessidades e características específicas em termos de cobertura e proteção, por exemplo, nós adotamos cinco níveis de segurança, conforme vocês podem acompanhar no gráfico projetado na tela...
            — 'xe Maria, esse tal de Macedo chupa um limão-galego e dois jiló antes de sair de casa. é não?
            — Ele tem aquela cara desenxabida de quem foi peidar e deu uma freada na cueca.
            — Altair, tu tá entendendo o que esse cara daí tá falando?...
            — Shhh, rapaz, fale baixo. O que eu entendi é o seguinte: o serviço é pesado, a pegada é forte, os bacana daqui são muito do fodão, e se a corda estora, o reio vem direto no nosso lombo.
            — Mas rapaz, isso é diferente onde? Vamo ser babá de gente grande, gente da massa! Mas pra nóis não pega nada, nóis é playmobil...
            — Oxe, tá de brinca... nóis é o quê?
            — Sabia não, boi? É assim que chamam nóis os guarda de verdade, os que têm arma. Eles diz que a gente só tem a roupa, o quepe e o radinho, os besta!
            — Tô nem aí. Com arma, ou não, preciso trabalhar, não tenho a vida ganha pra perder tempo com fofoca.
            — Altair, esta bagaça é grande que é a porra, vamo bater um bom bocado de perna... e tu ainda vai se gastar no turno do sono, feito coruja de igreja...
            — Até prefiro. Durmo de dia, faço uns bicos de tarde, e depois, já viu a fedentina dessa marginal de dia?
            — Sai dessa, cumpadre. Canso de te falar pra gente dar um rolê, ir nos bailão, tu tem que largar de só se foder nessas noitada de corno. Só que tu é teimoso mais que mula... sabe bodião, o peixe?, então, tu tem a cabeça igual do bodião, trombudo que nem.
            — Tu me lembrou de uma história que o meu velho contava... um cabra tava puto com o jegue dele que empacou e berrava: "Anda jegue, que além de jegue é burro, carrega cana e bebe água!", no que o bicho devolveu: "Eu carrego cana por obrigação e bebo água por gosto, mas vosmecê fica com a bagaceira, enquanto o seu dono, o dono da terra, toma o licor e a aguardente que você gosta, mas não pode".           E dizendo isto, entrou num roçado de milho dando cabo dele por mais paulada que lhe deram.
            — Carai, agora é tu que tá falando alto demais, o nosso supervisor escutou tudim...
            — Hmm, esse daí conheço bem, é da mesma congregação da minha sogra, uma jararacuçu!



terça-feira, 9 de julho de 2013

Teoria do Caos


o cosmos flutua entre ondas
e o mundo é a criança do meu
sonho e sou eu abstrato sobre
voando as correntes do rio por rir
repetindo arcos e íris notas perdidas
na orquestra infinita da beleza
idolatria de lírio submersa sincronia
no parque domingueiro das catedrais
interiores e todas as cores todos os sons
todas as bandeiras do lampadário ondulante
da vida em estupendas manifestações
eu sou o sapateiro o culto o escultor
do meu ser da minha pátria sem
fronteiras enjaulada nas indústrias
da razão universal sigo a metafísica
sorridente da dúvida e da música
dos sonhos aperto mãos com gesto
altivo e nobre é preciso acreditar num
sentido da vida renovado por aquilo
que ainda não é mas faz nascer cromo
somos corpo sem órgãos
de registro do mesmo modo quando
digo vida não se trata do exterior dos
fatos mas esse centro frágil e

turbulento que as formas não alcançam

terça-feira, 2 de julho de 2013

ninguém está entendendo nada



e dizer que saí na rua de camisa amarela
vi o Marquês de Sade apresentar a Marquesa de Santos
ao dono das imagens
e acabei aqui
quieto palhaço da roupa branca
na tarde plana e o frio
beija venta na janela
escrevo numa tarde de junho em um dialeto
de gelo escrevo frases que não entendo
às vezes percebo a segunda vida das coisas
a vida secreta e furtiva de tudo que se vê
a segunda pele embaixo da pele
a carne fugitiva sob a pele
os ossos escondidos abaixo da carne
o buco do osso que é pleno vazio
que horrível me parece a realidade inteira
a pura aparência
eu apago a forma a fome de fama minuto a minuto
apago os mapas do futuro que não sei ler
porque eu vejo o que ainda não é e percebo
a segunda vida do que é noturno aquilo
que está por trás da realidade e chamo a isto
a segunda máscara porém não tenho
com quem compartilhar percepções
nem esta roupa branca e olhar vazio e o quarto
de dispensa e o eco distante de uma mulher
numa tarde de junho como esta
mas em troca posso ser um ovo do qual sairão
serpentes ou pombas