terça-feira, 21 de abril de 2015

República Federativa do Brasil para Cristo (3)


Fiquei com aquilo dentro, música ruminante de entranhas e miolos por todo o resto do dia, e como havia um domingo a preencher agora que tinha ido, mais sentia se alongarem o exílio e a preguiça. Queria, precisava, daquela mulher, da maneira como sabia ouvir os meus silêncios e os traduzir sem que eu tivesse explicado nada, quase sem ter merecido a estrela que guiava nossos encontros com jeito de despedida. The Lady Vanishes, mais uma vez, garçom.
Se o que ela dizia fosse perto do razoável, eu estaria vivendo dentro de uma Matrix das Organizações Tabajara, um Truman Show com ares de Chacrinha no qual o patropi fabricava a última tendência ideológica da Sereníssima República para a Glória do Poder de Cristo. Banânia, o samba-exaltação de uma Kakânia pós-moderna e tropical, grande nação consumidora de drogas, sangue e Deus.
Apressei a toalete matinal, estava na hora da sessão solene em homenagem aos setenta e cinco anos da morte do poeta. Meu pai faria um dos discursos que abriam o mês de trabalho dos Grandes Epoptas, sentia-me na obrigação de prestigiá-lo de tanto que havia insistido na minha presença pra compor a família margarina. A ocasião era especial, mas a reunião da Cabala rapidamente degenerou em grossa pancadaria ideológica. O assunto, pra variar, fugiu da pauta artística pra cair na seara cáustica das contendas políticas: papai fazia o seu número favorito.
“Venerandos, venais e venéreos Prebostes, Láutons e Arquimandritas, estamos em um limiar da história nacional, somos chamados a assumir a responsabilidade à qual a rua nos conclama e dizer em alto e bom som que eis realizado o fim do presidencialismo de coalizão, raiz de todos os males da governabilidade de nossa pátria. O populismo, excelências, morreu de inanição.”
(Aplausos, aplausos)
“O país pede mais ousadia, mais vigor e empreendedorismo, além de lideranças ilibadas...”
(Nesse momento grita um popular das galerias)
“Mas o senhor está diretamente indiciado no escândalo da venda de indulgências fiscais!!”
(O baderneiro é rapidamente imobilizado por três seguranças que se revezam chutando sua cabeça no chão por alguns minutos)
“Claro, aproveitamos o resultado da boa colheita, sucessivos governos enfraquecidos pela recessão mundial nos permitiram revolucionar os costumes da nossa vida política: flexibilização das leis trabalhistas, liberdade total ao mercado, aumento das despesas de custeio e de representação pra deputados e juízes, além da reforma política que conjurou de vez o fantasma da participação popular direta em nossas terras. E tudo isto foi obra da fé, da fortaleza moral e ética que encontramos nas Sagradas Escrituras...”
“Discordo, ínclito apóstolo, o que vocês instalaram foi a versão 2.0 do velho parlamentarismo de espoliação, a religião provou ser apenas mais uma doutrina autoritária na política. Vocês pegaram foi o Brasil pra Cristo, isso sim.”
(O Gardingo questionou sem pedir licença ao orador, ouviram-se gritos de outros congregados)
“Respeite esta Casa!”
“Lembremos ao povo o caos que espreitava nosso país: corrupção galopante, mídia sem controle, Bolsa-bandido, famílias destroçadas, o Estado tem a obrigação de informar ao cidadão o conceito de família, a ditadura gay havia atingido até as nossas novelas do horário nobre, gays, dulcíssimos milenários, queriam ter os mesmos direitos que nós...”
“Direitos humanos só pra humanos direitos, como consta na Lei Bolsonaro!”
“O sangue de Jesus tem poder!”
“Sai, Satanás!”
(Desmaios, fortes aplausos, choro de comoção no plenário. Deputados se aparteiam fora do controle do mesário)
“Vemos aqui o nosso Preclaro Apedeuta, defensor da vida, pastor de almas e currais eleitorais, ombudsman da moral alheia, que tem a desfaçatez de invocar rancorosos anátemas sobre grupos ameaçados nos seus sermões televisivos. Acaso terá se informado acerca da violência a que estão submetidos homossexuais, transexuais e praticantes de cultos afrobrasileiros em nosso meio?”
“O comércio com espíritos, a feitiçaria, são as marcas do atraso que tanto pesa nos ombros do povo, uma vez que o sacrifício do Cristo nos resgatou da idolatria e do pecado original todo sacrifício doravante tornou-se pura crueldade. O caminho, a verdade e a vida só existem em Cristo, fora dele o que há é o império das drogas, da libertinagem, a vadiagem e a desagregação familiar.”
“Mas não se trata, então, de uma religião do amor universal, a tudo e a todos, como pode caber tanto ódio ao que é diferente? Por nada do que está à sua volta o senhor se sente responsável? A Bíblia tornou-se praticamente a nossa Constituição, cada parábola virou jurisprudência, e ainda assim o país não pára de bater recordes de violência, corrupção e ineficiência. Não será o caso de confessarmos a nós mesmos que pegamos o atalho errado da história?”
“Vossa excelência, Tiufado do partido da Diversidade, é que vem levantar a bandeira do decoro parlamentar? Qual é a noção de decoro de uma agremiação que mais parece uma nave louca de ecochatos, viados, aborteiras, comunistas e aberrações de circo?”
Neste momento irrompeu um protesto vindo das galerias superiores da Câmara, um grupo de índios protestava pela anexação de uma reserva pelo avanço da fronteira do agrobusiness. Desta vez a resposta veio mais rápida e enérgica. Um grupo de seguranças fortemente armado postou-se ao redor da mesa diretora e abriu fogo de metralhadora na direção dos manifestantes. A matança foi indiscriminada, sobreviventes se esgueiravam por baixo dos cadáveres de velhos, mulheres e crianças na direção da saída, apenas pra encontrá-la bloqueada.
Todos se atiraram instintivamente ao chão. No meio da enorme confusão estabelecida, senti alguém me puxando pelo braço. Era ela.
“Vem comigo, tem uma coisa que eu quero que você veja.”


domingo, 12 de abril de 2015

República Federativa do Brasil para Cristo (2)



            Vestiu-se, toda a linguagem corporal anunciava a partida.
            “Vai assim, sem marcar uma ponta, nem pra deixar um contato...”
            “Por que eu deveria correr riscos? Se você me dedurar à polícia de costumes os bíblias me mandam pra fogueira. Pensa um pouco: uma pedra cumprimenta uma tora de madeira, que horas são?”
            “Cinco da matina, você tá sonhando.”
            “Oito.”
            “Por quê?”
            “Oi tora.”
            Saiu do quarto andando felina, no batente da porta voltou o rosto pra me olhar fazendo climinha drama queen como se fosse esta noche a última vez. Havia um tegumento de hipocrisia bufona a recobrir toda a cena, mas não me atrevia a desafiar o quebrante com alguma cagada que pudesse sair pelo lado oposto do cu.
            “Tem mesmo que ser desse jeito?”
            “Somos de mundos diferentes, não podemos fazer nada quanto a isso. Você sabe, sou bruxa, doutorada nas mandingas do Satanás e seus asseclas, melhor se afastar das hostes do Inimigo, meu bem.”
            “Bah, tá me tirando por bem pouco se acha que boto fé nessas histórias do Tutu Marambá...”
            “Sou a sétima filha, aquela que a irmã mais velha recusou batizar, em noite de lua nova, viro coruja e morcego pra vir voando chupar o sangue das crianças que não querem dormir”, e ria, como se fosse a louca que deveras era.
            “E se a gente casasse? Daí ninguém nos incomodaria, você chega sóbria e sai sombria, desocupa dentro de mim espaços infinitos, fala como se acabasse o tempo... e vai embora?!”
            “Nem a pau, Juvenal! Deixo a liberdade vigiada nas ruas e o preconceito das vizinhas, pra cair na frigideira de um pater famílias? Muito obrigado por querer me salvar da solteirice, prefiro não ser respeitável.”
            Fiquei assistindo-a da janela indo embora pela rua vazia domingueira seguida pelo cortejo mais alucinante de tabaréus que já tinha visto. Acompanhando a mulher amada ia um mundão de gente e gado que até dava gostosura de ver: Bastião, Arlequim, Catirina, Capitão Boca-Mole, de misturada com o Caipora, Babau, Jaraguá, Morto-Carregando-o-Vivo, Turtuqué, Pastorinha, Caboclos-de-Fita, Cazumbá, Caboclos-de Pena, e, por fim, a Burrinha, a ema, a cabra, o boi, o cavalo-marinho, agitavam seus maracás junto das “fremosas” coureiras soprando apitos e batucando tambores de fogo, matracas, zabumbas, pandeirões, fazendo urrar o tambor de onça. O mais gozado é que só eu parecia estranhar aquela charanga de hospício a evoluir pelo bairro num fuzuê desembestado que ofendia a celebração dos cultos regulares.
            Era muita coragem se expor assim nos tempos atuais.
As coisas haviam mudado muito no Brasil em pouco tempo, ou talvez estivessem iguais ao que sempre foram e apenas nunca tivéssemos prestado a devida atenção aos acontecimentos antes de se cristalizarem na realidade dos fatos. De segunda maior democracia do mundo havíamos transitado a uma mal disfarçada teocracia de indisfarçável feitio autoritário. Tudo começara com um deputado evangélico que propôs a emenda constitucional pela qual nossa Carta Magna passou a exibir em seu parágrafo inicial: “Todo poder emana de Deus”. Depois foram as revisões nos códigos jurídicos, começaram banindo o aborto, mesmo de fetos anencefálicos ou frutos de estupro, então veio o fim da maioridade penal, a pena de morte, a proibição do homossexualismo e do sexo fora do casamento religioso, além da definição de família como unidade indissolúvel constituída por homem, mulher e filhos biológicos.
O que antigamente chamávamos de esquerda a tudo isto assistiu catatônica e mais preocupada em manter seus feudos políticos e acadêmicos, enquanto se defendia árdua e custosamente das suas muitas pendências com a justiça. Lideranças outrora consideradas progressistas haviam dissipado seu capital moral em sucessivos governos desastrosos e corruptos consorciando-se, no plano nacional, ao crime organizado, ao grande capital rentista, às milícias missionárias e ao exército, enquanto no plano internacional nos mantínhamos firmes no irrelevante papel de narcoestado exportador de matérias primas.
O fracasso não assumido do modelo brasileiro ― um peculiar capitalismo patrimonialista de Estado ―, cozinhou em fogo baixo as expectativas da nação, a capacidade de inovar, de sustentar uma agenda criativa e socialmente igualitária, degenerando num ambiente hostil onde predominava a sensação de desperdício de oportunidades, se multiplicavam as gerações perdidas, adiando pras calendas a construção do futuro. Em cada esquina um templo e uma biqueira: Deus, drogas e armas. A turma BBB (banco, bala e bíblia) caçava abertamente os PPPs (pretos, pobres e periféricos), e ainda sobrava diversão pra cima de gays, lésbicas, transgêneros, espíritas, umbandistas e mulheres.
Chegamos ao futuro, e o futuro tem cada vez mais a nossa cara. Os donos do dinheiro transnacional olham com benevolência crescente os experimentos neo-autoritários da antiga periferia do mundo: Brasil, Rússia, China, Índia, Irã, países ainda mais complacentes ao jogo bruto do capital desregulamentado do que as velhas democracias representativas.
Ela desapareceu no horizonte.


sexta-feira, 3 de abril de 2015

República Federativa do Brasil para Cristo (1)




Dois de fevereiro de dois mil e vinte

            Bem, aquilo era precioso ao extremo, singular, e ao mesmo tempo estava em toda parte, amazônico, de enorme complexidade e ainda assim sutil em sua despretensão, o som do isolamento que alcança milhões, desavergonhado e inevitável como uma pedra arremessada na superfície de um lago imensamente azul, suas ondas se propagando excêntricas em mim alargando sempre mais onde antes havia borda, fronteira, desconhecido.
            Havia ali uma atmosfera exótica desprovida de qualquer réstia de consolo, muito menos humor, mas ela queria compartilhar a riqueza de alma, a consciência do infinito, e a extraordinária qualidade de constantemente revelar mais de si àqueles que se dedicam a conhecer por meio da arte. Talvez estivesse dizendo: se você também gostar disto, então temos alguma chance.
            “Quanto menos palavras você usar, mais intenso o diálogo”, ela disse, e depois se sentou.
            E, de fato, era uma conversa entre seis elementos, porém, as sílabas tinham sido magicamente compactadas encavalando respirações e pausas, dissolvendo o diálogo no puro som de um discurso sem fala, como se as palavras retornassem para as coisas transformadas na mais refinada paisagem sonora que o humano pode suportar. O símbolo inoculado na carne obedecendo a uma equação de tempo e calor: ovo, pupa, larva, a se desenvolver até eclodir em música ambiente.
            Eu queria acreditar que tínhamos um relacionamento. Acabáramos de fazer sexo, ela estava sentada numa poltrona ao lado da cama vestida com a minha camisa, me lembro do cheiro de couro velho e de estar incrivelmente apaixonado. Mas ela não se deixava limitar por mucosas, afeto ou idéia, aspirava ao processo orgânico completo da harmonia lenta, sedutora, sombria, meditativa, luminosa e inescapável, descobrira o desejo de mudar o cenário emocional da vida.
            “Isto foi concebido sem ensaios no porão de uma igreja, todas as sensibilidades individuais apontando pra dentro, convergindo num multifoco interior de concentração e feitiço, de introspecção e reflexão em níveis tais que o clima por si só se transforma em obra de arte”.
            Não duvidei. Reconhecia a habilidade em combinar modais sofisticados com uma atmosfera minimalista, extática, quase hipnótica, especialmente me agradava o cuidado com a compreensão do espaço dentro da música, a coesão do clima que ela transmite, a vontade de criar um mundo contemplativo no qual a alma dos perplexos podia encontrar repouso. Os temas improvisados, a complexa progressão de acordes, cada nota tocada, pareciam se alongar indefinidamente repletos de melancolia perturbadora e do rigor suave dos calígrafos japoneses que passam um dia inteiro preparando pincéis e tintas antes de executar o mais delicado dos ideogramas num único, e indelével, traço.
            “A gente corre perigo, você sabe”, disse, já me arrependendo antes de terminar a frase.
            “Você não, eu sim. Você é filho da turma BBB, pra você pega nada. A verdade é que nunca vai poder me amar como ama uma mulher, um travesti, um pobre, um bandido. Sempre vai pensar como o homem que é”.
            “Nisso tem razão, sim. Sigo sempre a cabeça de baixo, a de cima votava errado pra caramba”.
            O que essa música quer de mim?
O que aquela mulher parecia me pedir tão além das minhas forças e possibilidades? Era a primeira vez que escutava aqueles 45 minutos e 44 segundos de música gravados em 1959 no porão de uma igreja transformada em estúdio no centro de Manhattan. Kind of blue. A cor do céu, o tom da modernidade é uma deslumbrante paleta de azuis, como em Picasso, Yves Klein, Matisse ou James Brown. Tudo que podia distinguir eram camadas harmônicas, talvez apenas um acorde recheado de notas em legato, um desgarramento do ciclo convencional de acordes substituídos por uma série de harmonias lentas, até repetitivas, a dinamitar com doçura os velhos parâmetros de ação e pensamento. Havia ali definitivamente uma essência que se revela mas permanece intocada, um raro instante de perfeição humana, de algo que nunca precisa erguer a voz para se fazer ouvir, e fala cada vez mais claramente com o passar dos anos.