segunda-feira, 25 de junho de 2012

Rosa faz anos (parte 2)




            Foi numa manhã cinzenta como esta, mesclando-se ao som da chuva que caía sobre os jardins suspensos do MASP, que a vigilante escutou pela primeira vez a melodia do pífano. A princípio, deixou-se estar, imóvel e aterrorizada; talvez fosse música ambiente, até que já não cabia dúvida: saindo da obra de Van Gogh, O Aluno, também chamada Garoto de Quepe Azul, ouvia o sedutor chamado que a convidava a entrar na tela e se perder no país dos suicidas. Um dos resultados de contemplar o mesmo quadro por muito tempo é que os detalhes se incorporam de maneira concreta, a pintura como que nos pertence ― vemos nela o que nenhuma outra pessoa poderá ver.
Neno bem que a tentou avisar.
― Cuidado, não entre no mundo da arte. Você vai destruir todas as obras, principalmente aquelas que mais ama.
Não tem tempo a perder; dentro de uma hora e meia precisa chegar a casa, pegar o neto e levar para a creche. A desmiolada da mãe, sua filha Elvira, já está em outra roubada; não há de ser uma criança que a impedirá de viver seu novo grande amor. São três conduções do serviço até sua casa de tijolo aparente em Parada de Taipas: metrô, ônibus e lotação; mesmo assim, não consegue deixar de passar pela sala do segundo andar para se despedir do filho do carteiro. O escolar do quepe azul, Camille Roulin. Numa carta para o irmão, Vincent escreveu: “pintei os retratos de toda a família; todos tipos bem franceses, embora tenham cara de russos”. Só Rosa compreende a que “russos” o pintor se referia: na verdade, quis dizer “rosas”, quis dizer exilados, trânsfugas, imigrantes de uma pátria triste: o país dos que cansaram.
Voltar na hora em que todos vêm é um exercício de solidão acompanhada; a massa no contrafluxo, rugindo de raiva e pressa, e ela na outra margem do rio da miséria cotidiana. Rosa ainda ouve o flautim ao descer no ponto; ainda não sabe explicar o fascínio daquele milagre da pura linguagem, mensagens de além-túmulo de um pobre diabo distante dela mais de cem anos. O dobro da idade que completa hoje. Se fizer um bolo, alguém se lembrará de lhe cantar um parabéns em casa? Decorou as falas do professor Tassotti nos cursos que incluem visita guiada ao acervo.
― ... reparem as extensas áreas monocromáticas, os contrastes impressionantes, a força que pulsa nas camadas espessas de tinta espremida diretamente das bisnagas. Mais adiante, no Passeio ao Crepúsculo, também de 1888, gostaria de lhes chamar a atenção para as duas zonas bem distintas da luz: no alto, à direita, os azuis escuros dos Alpilles, de onde a noite cai rapidamente; o casal dirige-se para a esquerda, onde predominam os verdes claros; na borda inferior, o detalhe malicioso do passarinho. É preciso levar em conta que esta era a perspectiva da janela do hospício em Saint-Rémy, onde o haviam internado; a metáfora do ato sexual parece-me bastante óbvia. Como lhes mostrarei mais tarde na sala de projeção, nas pinceladas convulsas do Trigal com Corvos e da Noite Estrelada, igualmente pertencendo a este período final na Provença, trava-se uma avassaladora batalha cósmica e já não estamos simplesmente acompanhando a evolução de um artista excepcional: é como se assistíssemos ao nascimento do Universo.
O marido a espera no portão de ferro sem pintura; o portão é meio caído dos engonços, precisa ser levantado para abrir. Está trombudo, como de costume; apressado, como de costume, para ir trabalhar ― a mesma pressa que lhe falta para voltar. Nem um beijo, nem uma palavrinha meiga. Que dirá, um feliz aniversário.
            ― Tô indo. O menino não comeu pão, só o leite tomou. Ah, vê se não faz macarrão de novo na janta, já foi onte e ontonte.
            Wanderson, o neto de cinco anos, vai arrastado para o ponto; ele é bem irrequieto, pudera, sem a mãe por perto as crianças de hoje em dia ficam incontroláveis. Enquanto passa o menino por baixo da catraca do ônibus pensa se o está criando bem. Talvez esteja apenas repetindo os mesmos erros que cometeu com os filhos. Tem só dois, Deus e o desinteresse do marido não lhe deram mais. O filho mais novo já não aparece muito, vive na rua; só dá as caras em casa a horas desencontradas, volta com um ar esquisito, transtornado. As coisas não param de sumir: na semana passada foi o liquidificador, que ela ainda nem tinha acabado de pagar no crediário.
            Rosa deixa o olhar vagar distraidamente pela cozinha, espera o café passar no coador de papel; não quer se voltar na direção da sala e do quintal que reclamam uma boa faxina. Em silêncio, morde os lábios ao reparar, junto do pote de café, entre pacotinhos de chá, sacos de pão dormido e latas de embutidos, uma garrafa pet cheia de água sanitária. Pensa em como é fácil morrer, e que não deve deixar escapar tão magnífica ocasião e lugar. Bastam uns goles daquela água que passarinho não bebe para apagar de uma vez todo aquele cotidiano de imagens cinza, de filhos perdidos, de marido desalmado, de tédio mortal no museu.
            ― Ô vida besta, Deus meu! ― disse para si mesma, para Deus ou para as paredes, tanto fazia.
            .Mas quando já estava a ponto de pegar a garrafa, quando o menino azul do quadro já recomeçara a tocar o pífano diabólico na sua cabeça, aconteceu de pensar no desgraçado do seu marido e de repente descobriu que havia algo no ar da manhã, nesse estar sozinha e triste na cozinha, que agitava seu sangue de um modo quase agradável. Na verdade, seu marido está pegando a vizinha da rua de baixo, a piriguete sem graça da mercearia (e o desgraçado achando que ela não sabe de nada); na verdade, o sem vergonha do marido é um espírito sem luz merecedor de compaixão, e precisa ser ajudado, o que não deixa de ser uma boa razão para seguir vivendo, para seguir preparando o café, para seguir tentando que seu marido recupere a alegria e volte a ser aquele homem encantador que havia conhecido no Playcenter há trinta anos, quando lhe pagou um algodão doce.
            Decidiu que vai fazer um bolo.

sábado, 23 de junho de 2012

nada é real



nada mais certo:
envelheço
choro por qualquer motivo
perco a carteira
confundo rostos, paisagens
esqueço de ligar
o nome à pessoa
o quando e a coisa

viajo, perco países
escuto a tarde em rajadas
descubro
o semblante interior do suicida
apaixonado

penso cada vez menos
no nada,
cada vez mais
― o nada
(dizem os nadólogos)
está vazio de tudo
pleno
de possibilidades

ainda sinto que o mundo é pequeno
pra mim
grande demais para a minha
desimportância

desconfio
nada é o que parece
It’s not a question of when
just how
porque nada absolutamente
nada é real
o
amor

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Rosa faz anos (parte 1)



            Todos os dias despertamos numa realidade diferente do dia anterior; ao acordar, nossos sentidos tateantes buscam o conforto dos objetos conhecidos, do lugar habitual, de maneira a tornar menos traumática a passagem. Não há precaução contra o imprevisível: agarramos qualquer velho pedaço do mundo de ontem para conjurar as ameaças contidas na mais pacífica das manhãs. A mente apavora diante do desconhecido ― embora secretamente deseje o novo ―, e por isso o cotidiano se organiza como formas e métodos de domesticar a angústia de viver. Rosa sabe que até as pedras mudam, e que algo nela mudou durante a noite passada em claro.
            Um piscar de olhos, um bocejo, uma coçada de queixo, um voltar-se para o lado onde não há nada que ver, assim provavelmente passou a linha divisória entre a véspera e o dia do aniversário da Rosa; à meia noite/zero hora já só lhe faltavam seis horas para largar o turno da noite na equipe de segurança do Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Não era a escala dela, trocara aquele plantão com o Neno, o único amigo que tinha no mundo: um colega da terceirizada que fazia a segurança do museu. Neno. Bom que ele tenha topado, vai poder ficar com a família; quer dizer, vai passar o dia seguinte arrumando e cozinhando, mas em casa.
            Rosa está fazendo cinqüenta anos. Sua vida está aos pedaços: o marido e os filhos se afastaram, a família, há muito distante lá nas Alagoas; para completar, no trabalho vê escassear os parceiros da velha guarda. O novo amigo é um desses jovens com que agora divide os turnos. Uma figura e tanto para um membro de guarda patrimonial: Neno é anão. Empresa grande, a lei obriga a ter cota. Por causa dele, aprendeu uma das mais duras lições sobre a natureza das nossas relações com a realidade, ou melhor, sobre a feição tantalizante do mundo: tudo nos é ofertado, tudo nos é negado. E como se nos nega o que é ofertado? Simplesmente não distinguimos uma coisa da outra.
            O mundo é uma mesa posta pela Tentação, cheia de inúmeros impedimentos e embaraços no caminho das graças com que nos brinda. Neno deu de odiar nordestino, solidificou ainda mais esta quizília trabalhando no turno vespertino; muitos visitantes não se contêm diante do soldadinho, e há mesmo os que chegam a perguntar aos monitores se o homenzinho faz parte da exposição.
            ― Ói lá, pai, que da hora! Posso brincar com o anãozinho?
            ― Moço, pode chegar mais pra perto da estauta? Só uma foto...
            Estas e outras quetais, fizeram-no passar a um nutrido ressentimento de classe. Por outro lado, babava o ovo dos funcionários da casa e dos superiores da empresa de segurança.
            ― Senhor Macedônio, estamos muito satisfeitos com o seu trabalho e da sua equipe.
            ― Gostaria de anunciar que o nosso querido Macedônio Fernandes foi novamente escolhido o funcionário do mês.
            Eram exatamente os mesmos que contavam piadas e não perdiam uma chance de mangar da “grande” capacidade e estatura moral do iludido rapaz. Um dos curadores da instituição chamou Rosa de canto certa vez para lhe comunicar uma incumbência especial. Depois de lhe explicar os detalhes da mostra que se iniciava em breve, o Professor Tassotti comentou:
            ― Então Rosa, você aqui conquistou um respeito e confiança enormes... só te daria um conselho de amigo, não leve a sério demais, é que queima o filme andar pra cima e pra baixo com um anão. Não pega bem.
            Rosa se pergunta se não sofremos todos da mesma miopia, se os nossos falhos instrumentos de navegação da realidade não brincam de enganar os sentidos (vãos) que emprestamos à vida. Seja como for, ela intui que vive um paradoxo: cada vez mais ela pinta a sua vida prática com as verdadeiras e duras cores do realismo; ao passo que, em seu íntimo, ela sente que desliza irremediavelmente para o delírio.

terça-feira, 19 de junho de 2012

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O quartel de Dona Mocica (epílogo)





            No mundo ― dizia Balzac ― não há nada que saia de um bloco único, tudo nele é mosaico. Não obstante, a imagem que se conservou em mim dos avós de Bauru é fotográfica; um cromo amarelado do álbum que mamãe guardou por toda vida e hoje integra o meu acervo.
É como se eles já não pudessem mais deixar as roupas e a idade que os sais de nitrato de prata fixaram no Studio Photographico Cantarelli: meu avô Joaquim, a farta barba hassídica a tornar mais fundos os olhos negros, as orelhas enormes, a calva coroada pela penugem rala do cocuruto; veste um paletó de tecido escuro e grosso, igual ao colete, a camisa branca de colarinho duro com as pontas dobradas como os cartões de visita, encimada por uma gravata preta lavallière. Ao lado dele, a figura meiga, mas altiva, de Vó Nininha: miúda, a boca fina a rasgar a suavidade do rosto com um ar zombeteiro, os cabelos presos no coque simples; nela sobressai a graça diáfana do vestido claro de mangas compridas, cheio de nervuras na frente, gola alta e debruada de rendinhas, arrematado por uma pelerine sobre os ombros.
O mesmo não ocorre com a casa em que moravam, esta, ainda agora posso percorrer de olhos fechados de cima a baixo, cômodo por cômodo, palmo a palmo, aqui, conheço o conteúdo de cada gaveta, o secreto perfume de cada recôndito; como se as reminiscências daquele período nunca houvessem esmaecido e a arquitetura do casarão, há muito demolido, resistisse em minha carne, ossos e nervos ― grão da imortalidade possível na alma corpórea.
Casa que, na verdade, era um palacete maciço de três pavimentos; bem ao estilo português, erguido no limiar da calçada. No andar térreo ficava o porão, de altura regular e plenamente habitável; o segundo andar era o plano nobre da habitação; no terceiro piso, os dormitórios. Nestes andares superiores, duas varandas simetricamente dispostas guarneciam a fachada principal; a primeira, ornada com arcos apoiados em robustas colunas fuseladas; e a segunda com pilastras pergoladas, cobertas por alamandas e buganvílias que subiam do quintal. Dois portões laterais de ferro, de esplêndida serralheria, davam acesso ao casarão; o da esquerda, mais estreito e ao nível do porão, levava às áreas de serviço e edículas; o portão da direita, mais amplo, constituía a entrada principal. Ao lado da entrada dos carros ficava a escadaria que conduzia à varanda do segundo andar, pavimentada com ladrilhos hidrográficos e assentada sobre um largo parapeito de onde apreciávamos o movimento da rua.
A única porta utilizada para ingressar na casa era a que ficava na ponta final do terraço; por ela se adentrava um pequeno foyer que dispunha de janelas duplas com vidro fosco e um porta-chapéus em madeira escura, cabides de prata e espelho de cristal. Pelas bengalas, sombrinhas, chapéus e casacos ali pendurados, sabíamos imediatamente quem estava em casa no momento. A partir deste compartimento abria-se um grande corredor que dividia a habitação em dois corpos distintos ligados por cômodos sucessivos; do hall, subia a imponente escadaria de dois lances em pinho-de-riga que conduzia aos quartos. O pé direito do segundo piso, desmesuradamente alto, dava ao hall um vão livre de cinco a seis metros, de cujo zênite um vitral despejava caleidoscópicos reflexos amarelos, verdes e vermelhos. Seguindo pelo eixo central, havia portas que abriam para a sala de estar ― a qual só uma vez vi aberta para receber visita de grande cerimônia ― e a sala de jantar, o maior cômodo e o centro afetivo da casa. O refeitório dava para o quintal através de uma escadaria em curva; depois, sucessivamente, vinham a copa, o lavabo e a cozinha.
O pavimento superior, reservado aos dormitórios, reproduzia a disposição do andar de baixo; no corredor, o tique-taque contínuo do carrilhão, em cujo mostrador lia-se uma frase em latim: tempus fugit irreparabile. Situado acima da saleta da entrada, ficava o quarto que fora de mamãe em solteira; a seguir, outro quarto, o de meus tios, e que servia de rouparia. Marcantes eram as duas enormes cômodas desta rouparia, com gavetões da base à face superior que pareciam feitos para gigantes; continham roupas de cama, fronhas, lençóis, toalhas de mesa, rendadas ou adamascadas, recendendo a cânfora em meio a bolinhas de naftalina. O quarto dos meus avós, logo a seguir, tinha as dimensões da sala de jantar; por fim, vinham o banheiro e mais três quartos, dois dos quais ocupávamos nas férias; no último dormitório, morava a tia-avó Inácia.
Havia apenas um banheiro no terceiro andar e bacias de ágata em cada dependência para as abluções, mas sempre preferi o lavabo do corredor, onde fingia usar o sabonete “de bola” dependurado a uma corrente junto à pia; dali, espiava de través o quarto de Dona Inácia, a irmã mais velha de meu avô que o criara desde os seis anos de idade depois do falecimento da minha bisavó. Poucos eram admitidos na sua presença, e nunca crianças, visto que a nossa algazarra parecia incomodá-la sobremaneira. Impressionava a nudez do aposento: apenas a mobília indispensável, nenhuma gravura na parede, nenhum enfeite, sequer um tapete no assoalho. A tristeza, companheira de toda a sua vida, vencera por fim; magérrima, sempre de pijama, ora deitada na cama de patente, ora sentada na cadeira austríaca de balanço a ler jornais, mantinha-se em obstinado silêncio. Seus olhos vazios, nas poucas vezes que cruzaram com os meus, jamais pareceram reconhecer minha presença. Hoje, visitado freqüentemente pelo cão negro da melancolia, entendo afinal que infinito mirava aquele olhar.
O que nunca alcancei compreender, e devo levar para o túmulo como enigma da vida inteira, foi um episódio envolvendo a governanta daquela casa, Dona Mocica. Em tudo e por tudo, era como um contraponto de Vó Nininha; miúda como ela, Dona Mocica em todo o resto se lhe opunha: as feições duras, o ar marcial, as vestes sempre negras, como se estivesse num luto eterno. Nunca a vi sorrir para ninguém, assim como nunca soube o seu verdadeiro nome; sua única particularidade conhecida era o orgulho que tinha do avô, oficial combatente da Guerra do Paraguai. Morava no andar de cima da edícula situada no fundo do amplo quintal. Ali, no espaço mítico que ia da garagem aos confins do galinheiro, se estendiam os domínios do meu reinado; por aquelas bandas vicejavam roseiras, buxinhos, crótons, dracenas, acalifas, damas-da-noite, manacás, jasmineiros, em deliciosa anarquia.
Foi durante umas férias de meio do ano, disso estou certo, pois era época de colheita do café. Não lembro porque, parte de um dos carregamentos ficou estocada nos fundos do casarão. Passei a tarde subindo e descendo as sacas empilhadas nos “meus” vastos territórios, até que me dei conta de que, subindo pelos sacos de aniagem rente ao muro da edícula, obtinha uma visão do quarto de Dona Mocica. Cooptei meu primo Nando para a aventura; Nando, um ano e meio mais novo do que eu, estava convencido que a pobre senhora era bruxa. Combinamos então uma expedição noturna para surpreender o pretenso sabá. Chegada a hora, percebemos que a escalada no escuro era bem mais problemática; por sorte, a unha-de-gato do muro facilitou nossa tarefa.
Trepados nas sacas que enchiam o ar com o cheiro do café, ocultos pelas sombras da noite, devassávamos a intimidade da governanta ― e, assim, descobri o quanto a realidade ultrapassa a mais louca fantasia. Eu e Nando não tínhamos idade para saber o que era aquilo, mas sentíamos a estranha eletricidade que nos percorria de alto a baixo: diante dos nossos olhos estupefatos, víamos aquela austera senhora travestida de militar andando pelo quarto. Era o uniforme completo do Regimento de Osório, tal qual o conhecíamos das figurinhas do sabonete Eucalol: o boné de pala azul, o dólmã azul-ferrete, as dragonas douradas no ombro, o cinto talabarte branco a combinar com as luvas, e as bombachas azuis, com as botas de couro preto cobrindo-as até aos joelhos.
Dona Mocica sorria.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

O quartel de Dona Mocica (primeira parte)




            A infância é um território do tempo feito de encantamento e deriva. Tudo que depois chamei de realidade resultou do ajuste ao padrão médio de percepção, um longo processo que me empalideceu a memória, a imaginação e o sonho. Daí que posso dizer que existem várias realidades, não sendo as coisas todas reais da mesma maneira, nem iguais para diferentes pessoas. Compreensível assim que, para o moleque sarambé que eu fui, magro, moreno, orelhas de abano e ar assustado, mais afeito às coisas do que às pessoas, aquele casarão dos meus avós adquirisse um halo de fantasia, cujas vibrações áureas ainda hoje ecoam em meu espírito.
            Meus avós maternos eram grandes senhores de terras, proprietários das fazendas do Tijuco, São Simão e Santa Eulália, onde criavam gado leiteiro, plantavam algodão, milho e, principalmente, café. Terceira de nove filhos, sete homens e duas mulheres, mamãe era a menina dos olhos de meu avô e, mesmo depois de casada, passava impreterivelmente as férias do meio e do fim do ano entre o casarão de Bauru e a sede no Tijuco. Morávamos na Alameda Lorena, num sobrado próximo à Haddock Lobo que deu lugar a um prédio de apartamentos; esta casa, onde morei de zero aos quinze anos de idade, estranhamente, não carrega tantas impressões, mantendo-se como que suspensa no ar.
            No primeiro dia das férias, acordávamos antes do sol para não perder o trem das sete horas na Estação da Luz. As malas dormiam arrumadas de véspera, as roupas de viajar nos aguardavam dobradas sobre a cômoda azul e as cadeiras de palhinha, ao lado dos sapatos com as meias a sair da boca. Vestíamo-nos estremunhados de frio e pressa ― essas manhãs gloriosas ficariam para sempre marcadas pelo tresnoite e a excitação da partida ―, íamos então para a cozinha “forrar o bucho”, como dizia a Zeza. Pão com manteiga ou requeijão caseiro, café com leite, banana nanica e um bolo de fubá quentinho; para me garantir, ainda enchia os bolsos do casaco com sequilhos, suspiros, losangos de doce de leite e biscoitos-de-jacareí.
            Carregado o táxi sob a porte cochère da nossa casa, deslizávamos por uma cidade completamente vazia (na minha memória sempre fustigada pela chuva), indo desembarcar numa ruazinha ao lado do Jardim da Luz junto ao hall de entrada da estação. No saguão, o rumor de uma multidão de viajantes chegando e saindo dos limbos da nave central, contrastava com as ruas adormecidas que acabávamos de atravessar. Enquanto papai confirmava os lugares num dos guichês da entrada, seguíamos em fila o moço das bagagens: eu, mamãe e a Zeza, arrastando pelas mãos minhas irmãs.
            O menino mira atordoado a descomunal estrutura de ferro e vidro do teto, que se eleva vertiginosamente sustentada por um conjunto de imponentes colunas de alvenaria, e não duvida: sob esta majestosa arcada em vão livre acontecem aventuras que nem as de Stevenson, Ballantyne, Mayne Reid e Emílio Salgari, da coleção Terramarear, que ele já devora solitário. Atravessamos o passadiço de ferro central para descer a longa escadaria em três lances que conduz à plataforma, onde a composição aguarda encostada. Afixados às paredes, cartazes da Herva Matte Unsigen, Elixir Dória, Rhum Creosotado, Aspirina Bayer, Casa Fuchs; brilhantes placas de bronze na armação metálica indicam a fabricação: Walter MacFarlane & Co., Glasgow.
            Papai preside atento a cada deslocamento da família, pagando o carregador, cumprimentando os conhecidos ou tomando qualquer providência final; eu acompanho todos os movimentos do seu chapéu de feltro Fedora, guaribado no topo e na aba frontal, a flutuar sobranceiro num mar de chapéus. Um cavalheiro que jamais saía de casa sem um lenço perfumado, o alfinete de pérola na lapela do paletó impecavelmente vincado, a gravata acetinada, as abotoaduras de pedra vermelha, os óculos acavalados no nariz pequeno, o bigode sobre a boca fina. Se ainda há tempo, sai comigo para comprar jornais e revistas em quadrinhos, ou até mesmo tomar um guaraná na lanchonete Vagliengo.
            Como se obedecesse a um ritual, ele sacava do colete o relógio Longines de corrente para avisar que era hora de subir no Pullman, encontrar nossos lugares e acomodar os volumes. A campainha disparava, um funcionário percorria a plataforma anunciando que o trem ia partir; um choque, os vagões se acomodavam nos engates, e então o monstro de aço se punha em marcha lentamente, afastando-se da cidade. Lá fora o dia despontava; com o nariz espremido contra o vidro do compartimento reservado, via as zonas industriais da cidade com suas altas chaminés cinzentas, depois vinha o casario monótono do subúrbio, os descampados, até que surgia triunfante a paisagem rural do planalto paulista.
            A jornada era longa, cansativa e, também, escaldante, tão logo nos afastávamos da Serra dos Cristais em Jundiaí; me esquecia horas pasmando na janela, acompanhando os fios dos postes que corriam paralelos à ferrovia, subindo e descendo, em compassos irregulares. De repente, um túnel, ao sair, o choque do mundo reverberando luz. Ainda hoje, mais de seis décadas passadas, trago gravadas na retina da alma cada minúcia do vagão: a tonalidade verde-escura dos estofados e da passadeira de linóleo; as arandelas em forma de tulipa, de vidro jateado e bordas bisotê; o console do reservado com cantoneiras de metal dourado, fixadas por parafusos sextavados; as duas linhas paralelas a toda volta do compartimento, uma violeta e outra amarela, formando um ornato retangular com o monograma, CP, da Companhia Paulista na parte central.
            Lá pelas onze, o sol, já a pino, nos cozinhava dentro daquela caixa de ferro; eu saía a procurar meu pai no salão, parlatório exclusivo dos homens. Para consolo da minha impaciência, ganhava um suculento filé com fritas no carro-restaurante; quando nada mais me fazia ficar quieto, o bilheteiro anunciava a estação de Brotas. Já faltava pouco; as próximas estações sabia-as de cor: Torrinha, Dous Córregos, Jahu, Banharão, Mineiros e, finalmente, Bauru. O trem descrevia uma longa volta em torno da cidade, da janela, me referenciava pela agulha da torre da matriz contra o céu azul. Com energia renovada, pegávamos um táxi na estação rumo à casa de meus avós, na rua Major Baleizão nº 262. Ali, no castelo dos meus sonhos, eu fui feliz
            Há quem diga que toda infância é infeliz; não sei, a julgar pelo que vivi, digo que a minha não deixou de ser ambas, feliz e infeliz; porém, com muito mais verdade diria que foi um luminoso desfile de seres e emoções que me atravessaram e marcaram perduravelmente. Ainda assim, por uma dessas contradições que é própria à condição humana, as memórias da minha meninez se enovelam qual teia confusa em torno de dois núcleos de intensa obscuridade: minha tia-avó Inácia e Dona Mocica.
            


sábado, 2 de junho de 2012

Manuela, Barbara, Barbarella (parte final)



Como combinado, o signore Renato veio buscá-la no ponto de ônibus depois da aula de música; Manuela despediu-se da amiga que a acompanhava e embarcou na imponente BMW preta cuja porta um motorista uniformizado lhe abria de quepe na mão. Pararam numa gelateria nas imediações da Ponte Vittorio para se refrescar; os dois homens pareciam muito empenhados em detalhar com ela cada passo do importante encontro marcado para mais tarde com Mister Barkley, o representante da Avon Cosmetics Company.
Renatino e Pierluigi, o motorista, divertiam-na imensamente, principalmente este último, com sua cômica magreza e a voz infantil a contrastar com o linguajar chulo de forte sotaque ligúrio; aquilo que diziam tinha o poder inebriante de um licor exótico: a entrevista em inglês com um americano importante, os milhões de liras ― que ela se apressou a dizer que dividiria com os irmãos e os pais ―, as futuras capas de revista, etc. Não conhecia aquele sentimento, uma doce euforia que inunda a vida de possibilidades e tão facilmente se confunde com a boa ventura.
Gravou uma mensagem que entregariam à sua família para que se tranqüilizasse: nos próximos dias estaria envolvida em importantes negociações, ocupada de tal forma que talvez nem conseguisse telefonar para eles. A mensagem terminava com um recado para a sua irmã preferida, Loretta.
― Fique feliz por mim mana, nunca me senti tão bem, acalme papai e mamãe, você sabe como eles são, vêem perigo em tudo. Todos me tratam tão bem! Estou fazendo o que você sempre me disse para fazer: ir atrás dos meus sonhos. Não tenho realmente necessidade de um prazo para refletir, estou consciente do caminho que escolhi. Você pode fazer a sua vida sem mim mais facilmente do que eu sem você; não precisa de ninguém para construir o seu lugar no mundo. Comigo é diferente, me sinto como as andorinhas a brincar no céu... penso muito no que você me disse um dia: “quanta liberdade, por tão pouca responsabilidade”. Quando puder, volto e te conto tudinho, Lori, agora eu sou Barbara, a Barbarella, recorda?

Na casa dos Morandi o clima é de apreensão e terror naquela madrugada de quarta para quinta feira. Emanuele, o pai, desmoronou na poltrona depois de dar os três únicos telefonemas de que foi capaz: ligou para a polícia para comunicar o desaparecimento; para Irmã Costanza, diretora do conservatório, pedindo para ser imediatamente avisado caso alguma das colegas de aula tivesse informações; e, finalmente, para o arcebispo Casimir Markevicius, seu chefe no Banco do Vaticano. Confusamente, temendo as conclusões, ia juntando os cacos de conclusão na sua cabeça; a reação do monsignore deu a entender que o pior tinha acontecido: Manuela fora seqüestrada pela Máfia.
A polícia sugeriu que esperasse, afinal, o mais comum nestes casos é que a menina estivesse “passeando com amigos”.
Ele sabia, sabia de tudo e não podia abrir a boca; se o fizesse, as coisas poderiam se tornar ainda piores para a sua filha naquele momento. Sabia até o preço do resgate ― que nunca seria pedido à família ―, duzentos e cinqüenta milhões de dólares! Os filhos e a mulher estavam feito barata-voa pela casa, iam e vinham até perto do telefone, paravam como se lembrando de algo, para retomar em seguida a peregrinação aleatória com o olhar perdido. Ninguém dormia.
Emanuele Morandi arriscara demais ao fazer da sua menina protegée do todo-poderoso Markevicius; conhecia a fama do americano: fumava charutos cubanos, freqüentava salões e academias de ginástica muito mais do que sacristias, dividia a mesa com gângsteres e a cama com atrizes. A falência do Banco Ambrosiano causara pesadas perdas nas finanças do crime organizado, e eles agora buscavam reaver o dinheiro à sua maneira brutal. Do alto da torre Nicolau V, onde tinha certeza de não ter seus telefones grampeados, o monsignore acionava sua multitentacular rede de contatos; assegurando às famiglias ítalo-americanas que faria de tudo para indenizá-los. Soube que a adolescente estava nas mãos da Banda della Magliana, uma gangue romana chefiada por Enrico de Pedis ― o Renatino.
Apesar do apoio incondicional do Papa, que jogou seu prestígio para impedir a prisão do arcebispo pelo governo italiano, ninguém conseguiu dobrar o implacável secretário Agostino Casaroli, que já havia bloqueado a promoção de Markevicius à púrpura cardinalícia. A Igreja não reconheceria as contas secretas da Cosa Nostra em seu banco.
Dez dias depois, durante o Angelus da missa, o Santo Padre apelou aos captores de Manuela pela sua libertação. A hipótese de seqüestro era admitida oficial e publicamente pela primeira vez.

― Ninguém tinha me avisado que viria de Nova York para “fazer” uma criança... ― Donny Gambalonga, o tal Mr. Barkley, é na verdade um killer americano designado para acompanhar a operação de cobrança pelo clã dos Genovese.
― Se te faltar o sangue-frio, cugino, nós mesmos damos conta do caso ― De Pedis gostaria de resolver as coisas sem ingerências externas, mas ordens são ordens.
― Hmm, estou aqui para resolver problemas. É o meu trabalho. Se não fosse eu a fazê-lo, seria outro... não me custa mais nem menos. É verdade que a garota era do monsenhor?... Ok, acho que vou “brincar” um pouquinho com ela, antes.
Manuela compreendeu finalmente a verdade. Como sucede mais ou menos a todo mundo, aprende-se com a vida, mas sempre tarde demais.

― Vai doer muito, quer dizer, quando...?
― Não, bimba, vai doer só durante um minuto. Depois, passa tudo.