domingo, 18 de agosto de 2013

die Präparatoren (parte 2)


A garçonete segue os meus movimentos com cara de nojo e pena e descaso. Está cansada, é gorda e já desistiu.
Engulo o café. No tampo da mesa e no encosto da cadeira dobrável a ferrugem vai apagando o nome da cerveja Polar. Pingos do café acumulado embaixo da xícara salpicam a minha camiseta de manchas marrons.
Suspiro aliviada.
A nova pessoa que estou me tornando é fissurada em café, e ainda não tinha tomado nenhum até àquela hora. Acendo um cigarro sem me importar com a opinião da garçonete.
Incrível como essa outra que apareceu faz coisas que eu detestava poucos meses atrás. Café e cerveja estão no topo da lista, mentir para os meus pais também.
A fumaça do cigarro irrita meus olhos. O bar de beira de estrada toca música brasileira.
Lá fora cai uma chuva indecisa, os carros sacolejam na rua enlameada.
O pior foi descobrir que já não consigo viver sem a pessoa que me faz sofrer. Penso em morrer com a mesma freqüência que tomo cafés, cervejas e fumo cigarros Mustang. Todos vícios que peguei dele.
Se o meu pai não andasse sempre tão ocupado bebendo, e a minha mãe não estivesse sempre com um filho na fralda e outro no peito, talvez tivessem percebido que eu já fui.
Bato a cinza do cigarro na direção da linha que separa o chão molhado do seco. Os pequenos rolos de cinza se desmancham sob o bombardeio impiedoso das gotas da chuva.
Mas pode ser que as coisas sejam assim mesmo, e os pais só estão esperando que eu vá embora, sofrer com o meu próprio marido bêbado. Embarrigar, engordar, se entediar, como a mulher atrás do balcão.
Ela espanta as moscas com o pano encardido que leva pendurado no ombro.
Ele não chega, não ouço o barulho da moto vermelha chegando na chuva. Chega cada vez mais atrasado, cheio de pressa, coisas importantes pra fazer em outro lugar. Então me dou conta de que estou ficando igual a todas as mulheres, minha mãe, a professora, a garçonete, a loira do cartaz na parede descascada. Esperando, esperando, com a paciência das árvores, a teimosia das montanhas, a eternidade das planícies do céu
Quando o conheci era só um garoto mais velho do colégio, um pouco vesgo, a grossa sobrancelha única sublinhada pelos cílios longos e negros. Dizia coisas bonitas, às vezes, numa língua estranha. Riu da minha crença no mundo prometido além do grande rio, o ywy mara ey, a Terra sem Mal.
― Isso é coisa de índio velho. Hinterwelt. Não existe nada depois do mundo, nem atrás, ou antes dele: a única coisa que há e pode haver é o agora. Estar vivo é estar do lado dos fortes, os fracos só sobrevivem pra servir aos vencedores.
― Quando os fracos sobrevivem se igualam aos fortes. Você fala qualquer coisa, diz e desdiz...
― Oh, mas que chato, uma contradição! O desdito tá dito, então, sem problemas. Eu sou imenso, contenho multidões.
Durante seis meses foi simpático comigo, sempre dizendo que eu era linda, me levava pra casa na garupa da moto. Qualquer garota gosta deste tipo de atenção. E assim ele foi me conquistando, até que um dia desviou o caminho e me levou pra casa dele.
Confessou seu amor por mim naquela tarde.
Fomos para o quarto ouvir música, tomamos uma bebida que devia estar cheia de droga. Fiquei completamente balão. Mesmo assim foi muito mágico.
Começava ali o inferno e terminava o céu.
Fidencio tinha armado tudo. Dias depois, me contou o que tinha acontecido e mostrou as fotos. Falou que ia levá-las pro meu pai ver, espalhar cópias na escola, mostraria pro povoado inteiro, se eu não o obedecesse.
Por que faz isso comigo, que o amo tanto?
A partir daí, começou a ir me buscar algumas vezes por semana, depois que os meus pais vão dormir. Saímos escondidos e ele me leva pra casas abandonadas da região, porões escuros, onde fico até as quatro horas da manhã sendo estuprada por cerca de dez homens por noite.
No início, estava tão assustada que demorei pra perceber quem eram aqueles homens. Os avá yvýpe, uma raça esquisita de seres das profundezas da terra. Anõezinhos pálidos e maus, que falam numa língua áspera, imperativa.
Às vezes é um por vez, outras, aparecem juntos e usam objetos que me deixam dolorida. Virei escrava dele, um menino atuando como recrutador dos habitantes de Nueva Germania. Acho que ganha um bom dinheiro com eles.
Depois que me deixa em casa, pouco consigo dormir antes de hora de acordar e ir pra escola. Sem entender porque eu ando tão cansada, meus pais me levaram ao pajé. Mas não consegui contar nada.
― Só se vive na sua vez. Tomar o partido da vida é assumir a maior de todas as tarefas: melhorar a raça humana, incluindo o extermínio implacável de tudo o que for degenerado e parasita ― disse ontem quando me trazia pra casa de madrugada.


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