quarta-feira, 19 de março de 2014

O seqüestro de Alda Espinosa (#1)


            Por mais que eu tenha ensaiado com os músicos, ficado duas, até três horas, na passagem do som, no ajuste dos retornos, testando cabos e caixas, combinando as marcações com o hold, ainda estranho esse momento de vácuo: as conversas cessam, as luzes baixam, chega a hora de entrar em cena. A hora da estrela.
            Aí não contam a tarimba, os anos de estrada, aí o que vale é ter estômago, o ponto exato que concentra todo o espaço à minha volta. Apenas um aperto naquele lugar indeciso onde termina o peito e começa a barriga, no entanto, a partir deste nó de tripas vem a alma até o meu gogó e faz o cântaro cantar.
            Quando piso no palco, somem os desvãos, os enganos, todo o medo de ser ― cada canção é um porto, uma porta, um parto, e uma partida. Tenho de me esfoliar, deixar de ouvir a mim mesma, simplesmente ignorar e fluir, voltar ao clímax do começo do mundo. As metamorfoses da vida são incontáveis, sequer vale a pena tentar entendê-las... Há que entrar.
Fixo-me num olhar, numa pessoa. E basta um sorriso para ficar gravado a todo sempre. Basta um anônimo escondido por óculos de hastes de acetato, eis que o demônio da imagem prega na minha memória. Sofro de um tipo de memória, ao que me consta, afeita a se apegar livremente.
            Encaro ligeiramente vesga o microfone, respiro, mergulho em queda livre para o alto, na direção do túnel prateado que despejam os holofotes e canhões de luz. Uma viagem desde o início da minha carreira até o agora, que é o presente, mas o presente reconstruído inteiramente no seu pretérito explicado, algo assim como o tempo verbal do tempo.
            A verdade está em nós sem ser dita, a dor não pensa. Muitas vezes, culpa-se o próximo pela infelicidade que nós mesmos trouxemos para dentro de casa; freqüentemente, inserimos a própria história nas entrelinhas do que outros escreveram. Fantasmagorias truncam o radar da realidade: ouvimos o que não está na partitura, lemos além do que foi escrito, projetamos frustrações, desejos, e esperanças na tela de smartphones. As brigas com ela, cada vez mais feias, agora acontecem todos os dias.
            ― A minha vontade era rasgar a sua bíblia e o seu véu de beata em mil pedacinhos!
            ― Já não é o bastante interromper os meus salmos com Darwin, Dawkins, pontos de macumba e gargalhadas forçadas?
            ― Será que é tão difícil perceber o puro sadismo da sua atitude?
            ― E por quê? Só porque ouso querer atingir a paz em meio ao caos? Parece que isso te incomoda demais...
            ―Me pergunto, vez e sempre, como isso pode ser: tragédia em cima de tragédia, e você ali, ajoelhada, rezando.
            ― Ninguém se importa, porra! Todos estão inseguros e tudo sussa, o mundo acontecendo e ninguém se ligando no movimento. Eu tenho fé por nós duas.
            ― Na época, acreditei que a sua fé vinha da persistência, e através dela, a sua persistência, voltei aos bancos de madeira, às novenas, aos rituais.
            ― Você nem sabia ao certo o que estava fazendo, mas voltou. Voltamos...
            ― Não é isso, não, é justo o contrário... Como é que você, musicista, cantora, compositora, pode ficar tão apegada àquilo que não funciona mais?
            ― É esse seu trabalho solo,. está lhe subindo à cabeça, a sua nova melhor amiga pra sempre encheu você de sonhos loucos...
            ― Que bom que ainda posso sonhar loucamente! Talvez seja porque estou viva, ao contrário de você, meu bem.
            ― Ontem, meu bem, contei até cem, hoje já nem sei... Escuta, o nome vai ser esse mesmo?...
            ― Sim. É disso que se trata: o que vim fazer aqui.
            Acontece que nunca mais voltamos às boas, aos bons e velhos tempos, a relação estava bastante desgastada. Claro, “relação desgastada” é um dos mais sórdidos clichês de fim de caso, no game over do amor nem sempre primamos pela originalidade ― e, menos ainda, pela suavidade ou clareza de propósitos.
            Neste último quesito, porém, estou tranqüila sobre o que devo fazer: vou seqüestrá-la e dar um fim nela, a outra, a mais velha das duas. Estou cada vez mais certa de que só assim vou ter sossego.



2 comentários:

Anônimo disse...

Hummmm. Já gostei!

Dalva M. Ferreira disse...

Fantasmagorias truncam o radar da realidade... sempre!!! Como conviver com esses fantasmas e suas gorias, that is the question.