O Deus de um
homem é o monstro do outro. De resto, o que se faz na vida é jogar. Tudo pode
fazer parte do jogo no grupo de doze pessoas que trabalham na 1Q84, salvo
política e religião. Menos pela primeira que pela segunda, em pouco tempo ficou
evidente a necessidade de impor limites de cima pra baixo; maiormente por causa
da bancada evangélica: majoritária, multifacetada e proselitista. Com o poder
de Cristo não se bole.
Adotamos o
sistema japonês: uma bancada contínua serpenteia em ângulos retos através do
escritório, não há paredes, salas fechadas, nem divisórias, cada um dispõe de
uma porta de armário, uma cadeira, um terminal e, eventualmente, alguns
servidores. Todos vêem e ouvem todos, o tempo todo. Ninguém está imune à zoação
geral, exceto o Capo di tutti i capi ― embora soe pretensioso, tive de proteger
o Todo Poderoso de qualquer possibilidade de caçoada ou assédio moral.
Administrar
pessoas não é brinquedo, aprendi errando.
Originalmente,
era um bom programador para automação comercial, desenvolvi o sistema
carro-chefe da empresa há quinze anos: um programa estável, eficiente,
interface intuitiva, pouquíssimos bugs. Associei-me a um vendedor ambicioso, o
Mamma Mia, e criamos uma empresa de serviços bem sucedida no altamente
competitivo mercado de tecnologia da informação. O organograma é enxuto: são dois
níveis hierárquicos, dois sócios e dez pê-jotas contratados; e três categorias
funcionais: vendedores, técnicos e programadores.
― Gaúcho, tô
cheia de todo mês ser a campeã de vendas e também das reclamações internas...
― Você é
ninja, menina, tem o DNA do marreteiro: fala mansa, chavequeira e com sangue no
zóio pra vender... Natural que a turma aqui dentro chie, você promete até
casamento pra fechar a venda, depois os outros que se virem pra entregar...
A Gogrila é
assim, vendedora nata, viradora, capaz de convencer esquimó a comprar freezer,
mas o nível da baixo-estima dela oscila perpetuamente entre a meia e a sola do
sapato. Com ela, tenho sempre que elogiar, apoiar, mostrar a face dourada da
pílula amarga.
― Pô, mas os
cara não dão uma folga, ficam no meu pé o dia todo, feito band aid.
― Don’t worry,
be happy, com eles eu me entendo. Como é que tá o papo com a rede de magazines?
Se entrarmos lá, ficamo bonito na foto!
― Humm, não
quero nem falar pra não zicar, mas já tou com um pé e meio lá dentro!...
Um belo dia,
ela resolveu trazer no escritório o imbecil com quem namora, noiva, desfaz o
namoro/noivado, volta, rompe novamente, há uns oito anos. Um animal de tetas
que a destrata publicamente, desdiz diante dos amigos, fala errado ― e ainda
por cima ganha menos da metade do que ela ganha. Foi o suficiente pra que surgisse
uma nova criatura mitológica no nosso bestiário: o Gogrilo. O namorado, ou
noivo, ou ex-atual, ou seja lá o que for, ostentava um tórax largo como o de um
gorila... encimando umas perninhas de grilo. Quem o Gogrilo ama, Gogrila será.
A natureza humana
não tem forma definida, aparece e desaparece como uma fantasmagoria, foge ao
entendimento, esconde-se na região nebulosa das crenças, do acaso, das taras.
Qualquer um dos meus funcionários poderia ser o patrão. Por que isso não
acontece? Difícil explicar. Há um misterioso mix de timidez, auto-sabotagem,
infantilidade, ignorância e acoelhamento, que impede a maioria das pessoas de
atingir seu potencial.
O
caso mais intrigante pra mim é o Dozão. Uma inteligência alienígena superior
nascida numa favela, um cara brilhante que não suporta a autoria, se acomodando
na colaboração do projeto de outrem. Negrão de um metro e oitenta e cinco,
gênio autodidata da programação, killer no design de software, e, no entanto,
um simplório capaz de cair na mais manjada das casas-de-caboclo.
― Fala aí, meu
irmão, um negão dessa idade... é verdade o que dizem?, quer dizer, o tamanho da
mandioca...
― Ah mano,
aqui é dozão...
― Dozão?!
Dozinho, isso sim, pô meu, isso daí é um isqueirinho bic!...
― Quer deixar
eu falar?
― Mano, tu é a
vergonha da raça!
― Caraca,
doze? Hahaha! Um gambitinho de sabiá...
― É, é! Com
esse palito de fósforo tu deve fazer a mulherada gozar... de tanta cosquinha!
― Cês querem
me ouvir, porra, é dozão... mole! Mole, entendeu?!
― Não é mole,
não, fio, um homão desse com um gancho de toalha de rosto...
Dozão ficou ensandecido,
virado no cão, saiu feito um louco, o rosto distorcido num esgar de louco, olhos
injetados, prometendo que íamos ter de engolir aquela palhaçada. Ninguém
entendeu nada, até que, uns quarenta minutos depois, ele liga de casa e põe a mulher na linha.
Alguém apertou a tecla do viva-voz, todos pararam de trabalhar pra escutá-lo.
― Mulher, faça
o favor, conta pra eles, vai... fala o tamanho da criança, vai!
― Desculpa
gente, o Sebastião chegou aqui falando meio estranho, ele andou bebendo? Nem
sei que história de centímetros é essa, ele inventa muito, não deve ser isso
tudo que ele tá falando...
Em resumo, esta escolha do Supremo cabe a mim, na
qualidade de aniversariante do mês. Ainda não decidi. Na minha lista tríplice
despontam o Psai, a Gogrila e o Dozão.