quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
tocar a pele do agora
quando se abraça o instante
tudo que estanca
move
nasce pra morrer de novo
e voltar
adiante com os vermelhos
da manhã tão branca
e para que saibas
abismo
ainda estou aqui
domingo, 12 de janeiro de 2014
MARESIA
Sabor de sal.
Sabor de mar.
O teu bafo de alga
e teu hálito quente de concha
Tua onda me arrasta
entre pedras escuras de limo
Até bem mais além,
onde dormem antigos naufrágios.
foto: Nicoletta Ceccoli
sábado, 11 de janeiro de 2014
Leviathan melanophyllus (final)
O retorno foi um
festival de contratempos, a começar pelo teiú esfomeado que lhes bloqueou o
acesso da escadaria; em seguida, um ataque de formigas-de-correição obrigou-os
a fugir pela via mais íngreme dos rufos e tubulações de água pluvial.
Escorregaram velozes dentro dos coletores forrados de limo rezando para não
encontrar obstruções na descida vertical ― uma trombada brusca, e o lote de
nitroglicerina que carregavam nas mochilas os transformaria em patê de gente.
Se destabacaram
no jardim, onde encontraram barra limpa. As motoristas tomavam água sentadas à
sombra do caminhão. Carregaram rapidamente e saíram cantando pneu. Ernaldo mudou
as duplas para a volta: pegou o volante do jipe ao lado de Dárius, necessitava
estreitar a vigilância sobre o comandado. Durante dez minutos rodaram em silêncio. Miados
ferozes, poucos quarteirões à frente de onde se encontravam, forçaram novo
desvio. Desceram mais ainda, a sudoeste, na direção das margens do rio, de modo
a contornar os felinos.
O sol começava
a declinar, mas o mau cheiro ribeirinho entrava na cabine do carro sem a menor
cerimônia.
― Boss, já
ouviu falar da porca croca?
― Porca cro...
que porca, que buzanga é essa?
― Uma coisa
que o meu avô contava, da época em que se mandava nos animais, quando uma
galinha não fazia o estrago de um tiranossauro... É o seguinte: a bicha pira na
batatinha, e em vez de dar de mamar pros filhos, ela sufoca e mata os
leitõezinhos. Vinha o povo e matava na hora, porque diziam que já não servia pra
criação.
― Hmm, bela
história motivacional... Assim que os teus miolos descansam da peleja...
― É que, tipo,
não consigo parar de pensar...esse químico maluco tá falando uma verdade: nossa
gente larga os desobedientes na rua, desarmados, chamam isso de justiça, invadimos
e roubamos outros povos, mas trata-se apenas de ataques preventivos... Cara, já
faz tempo que a república virou império!
― Dárius,
esquece o Dr. W, ele adora por minhoca na cabeça dos outros. Não estamos numa
situação normal, talvez nunca mais voltemos a uma, temos que agir e reagir sem
padrões muito elevados de ética ou uma moral coerente... Viramos soldadinhos de
chumbo, pilotamos brinquedos recondicionados, nossas bombas?, biribinhas... as foices?,
facas de manteiga, lâminas afiadas do cabo de colheres de café! Só que aí eu não
vejo alternativas na praça, nada muito diferente por aí.
― Há sim,
sempre existe outro lugar se você se mantém em movimento. Ninguém
está naquilo que quer sentir, mas no que sente sem querer; já não sinto que posso
continuar fechado lá na colônia. Eu quero ir, preciso ir. O mundão é perigoso, mas
aberto... aquela colônia encolhe a gente, quer dizer, mais ainda, não...?
― E você pensa
que eu emborco o xarope todo sem engulhar? Vem essa porra de bolor radiativo e
encolhe todos pro tamanho de lagartixas, daí, quando desaparece o preconceito
de raça junto com a cor da pele, vem a discriminação por tamanho, e então, nós,
os baixinhos entre os nanicos, viramos a população descartável, os soldados, os
mão-branca que fazem o serviço externo sujo... Acha que eu amo muito tudo
isso?!
― Pois então,
Naldo, tu é militar, eu não, tu é conhecido como o maior sobrevivente, eu,
entrei na correria pra achar um meio de me matar com dignidade... Você foi o
primeiro a perceber que não sou do ramo, cara, sou só um cretino que perdeu
tudo. Deixa esse bote inflável na minha, olha pro outro lado lá na marginal,
que eu sumo pra nunca mais nessas águas imundas. Vou subir com o rio, ma
direção do interior. Conta a história de sempre pros caras: perdas em combate. Acontece
todo o dias, ninguém liga.
Rebeca não se
conformava. Como se não bastassem armas e vitualha, Ernaldo ainda pusera
dinheiro na mão do desertor. Socava o painel e praguejava com as mãos longe do
volante, e o caminhão em disparada.
― Que caralho!
Essa do Naldo é foda, não entendo, deixar o mala se mandar assim na boa, e mais
grana, comida e roupa lavada...!
― Pô, Beca, o
cara foi firmeza naquela treta do louva deus, dá um desconto... Além de que, o
Naldo tá certo: ele não tem o que fazer na Colônia.
― Bom, se o
camarada agüenta esses nossos corres, é porque inútil de tudo não é...
― Inútil é
exatamente o que ele é, não tem razão de ser em si mesmo, nem função dentro do
grupo. O Dárus é uma máquina celibatária: impossível, inútil, incompreensível e
delirante. Melhor pra ele que deitar raízes, é se deslocar, mudar de ares,
recomeçar. Talvez seja a única maneira de não morrer rápido.
Retribuíram o
adeus do companheiro. Ernaldo fez-lhe as últimas recomendações: tomasse cuidado
com falcões mateiros e cobras-d’água. O vento tinha levantado novamente, nuvens
adensando a leste.
Ele desceu por
entre um bando de capivaras que pastavam. Ficou por um instante à margem, antes
de laçar o bote.
Olhava a
superfície das águas se encrespar formando figuras imprevisíveis que brilhavam
ao acaso em todas as direções.
O vento era um
só, mas naquele espelho d’água pareciam ser mil os ventos que sopravam.
De todos os
lados.
Um espetáculo
inexplicável, abrupto, guiado pelas combinações imprevisíveis da sorte ― a sua
vida.
Só começava a
entender.
sábado, 4 de janeiro de 2014
Leviathan melanophyllus (#4)
Nenhum deles riu.
Ernaldo coçou a nuca ao tirar o capacete, tentou remediar o mal estar. Não que
adiantasse grande coisa quando se tratava de Walter Blanco, o Dr. W.
Completamente sem pêlos, exceção feita ao cavanhaque, envergando um jaleco
imundo, sandálias idem de couro trançado, fedendo a amoníaco, aquele era o
químico responsável pelo laboratório top do pedaço. “Tipo do cara que as
pessoas só suportam porque precisam”, Dárius lembrou do perfil sucinto traçado
pelo chefe a caminho do laboratório.
― Zoa não,
doutor, o rapaz aí tem couro de jacaré, soldado dos bons...
― Soldado, é? Hum,
sempre esqueço que vocês lá da Colméia gostam de brincar de casinha: governador,
soldados, agricultores, profetas, administradores, uma beleza de comunidade...
regrinhas, leis, prisão, expulsões, ostracismo e tutti quanti do receituário
habitual de República-Utopia.
― Pois é, a
gente dá um duro pra se organizar. Devia fazer o mesmo, deixamos nossas
motoristas lá embaixo soterradas por um exército de baratas. Gastar mais em
limpeza seria bom...
― Ora, ora, o
que são as peludinhas voadoras perto de homens tão bem treinados? Se conheço
bem as moças que te acompanham, não vão dar piti por causa de uns poucos
artrópodes.
― Uns poucos?!
Esse cara não sai desta toca há quantos anos? ― acachapado pela profusão de
tubos, contêiners, bombas, centrífugas, freezers, frascos, barris, ampolas,
retornas e fornos, Dárius principiava a se dar conta da náusea, efeito das fumigações
nauseantes do que parecia ser um alambique de xixi do capeta.
Além dos
equipamentos, pouco ali lembrava uma refinaria: quem contemplasse a balbúrdia
das bancadas decrépitas daquele loft, os gritos e tropeções da malta frenética de
assistentes maltrapilhos, dificilmente suspeitaria que um trabalho minimamente
coordenado estivesse em curso naquele pardieiro. O famoso Galpão nem mesmo era
um galpão, mas um edifício de quatro pisos. Apenas os dois andares superiores
eram utilizados, no térreo e no mezzanino vigia um comodato simbiótico com as
baratas e os ratos.
― Brejeiro,
né, soldado? Dizer que isto já foi uma fábrica de anjinhos...
― Hã?! Que
porra...?
― Uma clínica
de abortos. Você não sofre demasiado da inteligência, hem rapaz? Demora pra
pegar... tá no ofício certo, não força o miolo à toa. Homens de ação só pensam quando
agem, parados, não valem nada.
― E você, professor,
pensa muito antes de ser escroto com alguém?
― Ahá, bravo
Ernaldo, finalmente você me trouxe alguém capaz de falar ― Dr. W tirou os
óculos de armação quadrada e fixou Dárius com interesse ― Saiba que aqui se
produzem vacinas, remédios, fertilizantes, explosivos, e também a jóia da
coroa, a mercadoria que vocês necessitam como o ar que respiram: alucinógenos
pra suportar o autoengano. Escroto, você disse? Esteja certo disto, nada é mais
escroto do que a vida de um homem inteligente nos períodos trevosos da
barbárie.
― Blanco, por
favor, confira a nossa a mercadoria e dê o seu ok pra podermos fechar o escambo.
Temos uma descida complicada à nossa espera com as mochilas cheias ― Ernaldo
apresentava papéis e faturas na esperança de desviar o assunto.
― Cê tem
bronca de soldados, né doutor? Devia mesmo era contratar alguns seguranças pr’esta
sua birosca, tá criando mais bicho que esgoto.
― Inutilidade
cara, rapaz. Isto é negócio...
― Belo negócio
o seu, sintetizar drogas!
― Bah, um dos
comércios mais antigos da humanidade. Além do quê, não preciso de bedel: os
bicharocos têm medo do cheiro deste lugar.
― Hahaha,
medo?, pergunta pras ratazana lá de baixo, fio...
― Tá rindo de
quê, meganha? Meu business é sério, não engano ninguém, não: quem tá comigo, tá
pela grana. Cansou? Cai fora, vai curtir a vida com dinheiro no bolso. Ih,
Naldo, acho que dei com a língua nos dentes de novo...
― Nunca falta
esse seu número, certo Walter? Se prepare Dárius, agora vem a parte em que ele
fala sobre todos os defeitos da
Colônia.
― Pois é meninão,
pela tua cara, parece que ninguém te contou sobre esse “detalhe” da vida
adulta: o dinheiro ainda existe, e ainda é a mola que dá corda na máquina do
mundo. Aposto que também se “esqueceram” de falar sobre a Ilha do Prazer, do
Círculo, do McSweeney’s e de todo o resto, não foi? A vida é muito mais do que
trabalhar pela grandeza dos ideais da Colméia... você é jovem, tá esperando o
quê? Que bonita coisa sustentar os privilégios duma casta de representantes do
vazio! Olha ali ― Dr. W apontou para o embrulho que dois ajudantes acabavam de
depositar no chão. ― Acha mesmo que dá pra trocar esse tanto de meta da melhor
qualidade pela comidinha da sua granja? Nosso escambo principal é money,
bufunfa, moeda sonante, esse o peso artificial que acerta todas as balanças...
se da mochila do teu capitão não sair o ouro que me devem, nego, necas de
pilulinhas pra embalar os festivais do socialismo hippie da tua tribo. Colônia
Cecília, ainda tiveram o desplante de homenagear os libertários do passado... O
tempora o mores!
― Caramba,
Blanco, só porque você tem esse câncer incurável não tem o direito de... Dárius,
a gente que tá nas ruas, vive uma outra realidade, você sabe que algumas
informações são...
― Subtraídas.
É isso que cê ia dizer? Não, claro que não, você já até tá falando como eles,
Ernaldo... um dia desses você se descobre um belo de um burocrata, no seu posto
importante de back office, mentindo pra alienados que não querem ouvir a
verdade. Ah, sim, vocês são muito estritos lá na Colm... na Colônia, vocês põem
criminosos na rua sem armas. O que isso significa soldado? Seja sincero.
― O Ernaldo falou
tudo, se organizar não é nenhum pecado em tempos tão perigosos como estes, há
várias comunidades como a nossa... Você não é o chefe desta bagaça? Vocês não
têm leis aqui?
― Temos uma
lei só: o mercado. Se pagam melhor fora, o sujeito vaza. Sem ramelagem, sem
choro, nem ranger de dentes. Mando sobre aquilo que entendo, química; sobre o
resto, quem pode legislar?, cada um sabe o que é melhor ou pior pra sua vida. O
advento do Leviathan foi uma catástrofe natural com o auxílio luxuoso da
incúria humana, não um castigo divino.
― Você sabe
por que ficamos assim, pequenos?...
― Mocinho, na
ciência, chegamos no máximo aos “comos”, os “porquês” ficam na área restrita
ocupada pelos seus marqueteiros e místicos. Hahaha! Tudo que sei é que a epidemia
começou a se espalhar a partir de Three Miles Island, Fukushima e Chernobyl...
o caso mais bem documentado é o de Chernobyl, o maior evento nuclear da história,
equivalente à explosão de quatrocentas bombas de Hiroshima: décadas depois de
ter sido selado com toneladas de chumbo e concreto, numa inspeção de rotina com
câmera-robô, descobriu-se uma mancha escura crescendo nas paredes do reator
quatro. Nada menos que trinta e sete espécies de fungos mutantes sobreviviam
num lugar onde não poderia haver vida pelos próximos novecentos anos! De alguma
maneira, o Clodosporium sphaerospermum e o Penicillium hirsutus aprenderam a
usar a radiação atômica e o pigmento melanina como as plantas usam a clorofila
e a radiação solar pra produzir energia. Eles descobriram a radiossíntese. Em
humanos, estes fungos provocaram alterações no DNA, reduzindo a humanidade a
criaturinhas albinas com quinze centímetros de altura. E assim chegamos a esta
situação: indefesos, isolados em bunkers, dirigindo carrinhos de brinquedo,
usando armas improvisadas contra o novo predador do topo da cadeia alimentar: o
gato doméstico.
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