Fiquei com
aquilo dentro, música ruminante de entranhas e miolos por todo o resto do dia,
e como havia um domingo a preencher agora que tinha ido, mais sentia se alongarem
o exílio e a preguiça. Queria, precisava, daquela mulher, da maneira como sabia
ouvir os meus silêncios e os traduzir sem que eu tivesse explicado nada, quase
sem ter merecido a estrela que guiava nossos encontros com jeito de despedida.
The Lady Vanishes, mais uma vez, garçom.
Se o que ela
dizia fosse perto do razoável, eu estaria vivendo dentro de uma Matrix das
Organizações Tabajara, um Truman Show com ares de Chacrinha no qual o patropi
fabricava a última tendência ideológica da Sereníssima República para a Glória do
Poder de Cristo. Banânia, o samba-exaltação de uma Kakânia pós-moderna e
tropical, grande nação consumidora de drogas, sangue e Deus.
Apressei a
toalete matinal, estava na hora da sessão solene em homenagem aos setenta e
cinco anos da morte do poeta. Meu pai faria um dos discursos que abriam o mês
de trabalho dos Grandes Epoptas, sentia-me na obrigação de prestigiá-lo de
tanto que havia insistido na minha presença pra compor a família margarina. A
ocasião era especial, mas a reunião da Cabala rapidamente degenerou em grossa
pancadaria ideológica. O assunto, pra variar, fugiu da pauta artística pra cair
na seara cáustica das contendas políticas: papai fazia o seu número favorito.
“Venerandos,
venais e venéreos Prebostes, Láutons e Arquimandritas, estamos em um limiar da
história nacional, somos chamados a assumir a responsabilidade à qual a rua nos
conclama e dizer em alto e bom som que eis realizado o fim do presidencialismo
de coalizão, raiz de todos os males da governabilidade de nossa pátria. O
populismo, excelências, morreu de inanição.”
(Aplausos,
aplausos)
“O país pede
mais ousadia, mais vigor e empreendedorismo, além de lideranças ilibadas...”
(Nesse momento
grita um popular das galerias)
“Mas o senhor
está diretamente indiciado no escândalo da venda de indulgências fiscais!!”
(O baderneiro
é rapidamente imobilizado por três seguranças que se revezam chutando sua
cabeça no chão por alguns minutos)
“Claro,
aproveitamos o resultado da boa colheita, sucessivos governos enfraquecidos
pela recessão mundial nos permitiram revolucionar os costumes da nossa vida
política: flexibilização das leis trabalhistas, liberdade total ao mercado,
aumento das despesas de custeio e de representação pra deputados e juízes, além
da reforma política que conjurou de vez o fantasma da participação popular
direta em nossas terras. E tudo isto foi obra da fé, da fortaleza moral e ética
que encontramos nas Sagradas Escrituras...”
“Discordo, ínclito
apóstolo, o que vocês instalaram foi a versão 2.0 do velho parlamentarismo de
espoliação, a religião provou ser apenas mais uma doutrina autoritária na
política. Vocês pegaram foi o Brasil pra Cristo, isso sim.”
(O Gardingo
questionou sem pedir licença ao orador, ouviram-se gritos de outros
congregados)
“Respeite esta
Casa!”
“Lembremos ao
povo o caos que espreitava nosso país: corrupção galopante, mídia sem controle,
Bolsa-bandido, famílias destroçadas, o Estado tem a obrigação de informar ao
cidadão o conceito de família, a ditadura gay havia atingido até as nossas
novelas do horário nobre, gays, dulcíssimos milenários, queriam ter os mesmos
direitos que nós...”
“Direitos
humanos só pra humanos direitos, como consta na Lei Bolsonaro!”
“O sangue de
Jesus tem poder!”
“Sai,
Satanás!”
(Desmaios,
fortes aplausos, choro de comoção no plenário. Deputados se aparteiam fora do
controle do mesário)
“Vemos aqui o
nosso Preclaro Apedeuta, defensor da vida, pastor de almas e currais
eleitorais, ombudsman da moral alheia, que tem a desfaçatez de invocar
rancorosos anátemas sobre grupos ameaçados nos seus sermões televisivos. Acaso
terá se informado acerca da violência a que estão submetidos homossexuais,
transexuais e praticantes de cultos afrobrasileiros em nosso meio?”
“O comércio
com espíritos, a feitiçaria, são as marcas do atraso que tanto pesa nos ombros
do povo, uma vez que o sacrifício do Cristo nos resgatou da idolatria e do
pecado original todo sacrifício doravante tornou-se pura crueldade. O caminho,
a verdade e a vida só existem em Cristo, fora dele o que há é o império das
drogas, da libertinagem, a vadiagem e a desagregação familiar.”
“Mas não se
trata, então, de uma religião do amor universal, a tudo e a todos, como pode
caber tanto ódio ao que é diferente? Por nada do que está à sua volta o senhor
se sente responsável? A Bíblia tornou-se praticamente a nossa Constituição,
cada parábola virou jurisprudência, e ainda assim o país não pára de bater
recordes de violência, corrupção e ineficiência. Não será o caso de
confessarmos a nós mesmos que pegamos o atalho errado da história?”
“Vossa
excelência, Tiufado do partido da Diversidade, é que vem levantar a bandeira do
decoro parlamentar? Qual é a noção de decoro de uma agremiação que mais parece
uma nave louca de ecochatos, viados, aborteiras, comunistas e aberrações de
circo?”
Neste momento
irrompeu um protesto vindo das galerias superiores da Câmara, um grupo de
índios protestava pela anexação de uma reserva pelo avanço da fronteira do
agrobusiness. Desta vez a resposta veio mais rápida e enérgica. Um grupo de
seguranças fortemente armado postou-se ao redor da mesa diretora e abriu fogo
de metralhadora na direção dos manifestantes. A matança foi indiscriminada,
sobreviventes se esgueiravam por baixo dos cadáveres de velhos, mulheres e
crianças na direção da saída, apenas pra encontrá-la bloqueada.
Todos se
atiraram instintivamente ao chão. No meio da enorme confusão estabelecida,
senti alguém me puxando pelo braço. Era ela.
“Vem comigo,
tem uma coisa que eu quero que você veja.”