quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Noitches Paraguayas (parte 3)


Agenciar a vinda de um grupo musical do seu país para um país que não era o seu mostrou ser um pesadelo logístico para Raulino, mas lhe iluminou uma sua faceta desconhecida: sentia-se leve, espectral, como se os seus passos mal tocassem o chão, um amante da vida, amigo da coisa, do bicho e do homem; maravilhosas ondas de ternura o inundavam no meio da multidão, anjos sussurravam-lhe uma língua tão doce que todos que o ouviam acreditavam nele. Seus dias, subitamente invadidos de sonhos luminosos, proporcionavam-lhe por vezes uma alegria tão quieta que ele se isolava na escuridão para chorar, sentindo um estranho desejo de morrer. Era como se a vida lhe oferecesse um tira-gosto da sua carne mais essencial.
Ecoavam ainda em sua cabeça as palavras do amigo Xico, o rapsodo do bajo fondo, quando lhe perguntou como é que saberia se o caminho que pretendia trilhar de agora em diante era o certo. Engordurando as mãos no sangue coagulado dos rins, fígado e vísceras, e lambendo as beiças para o sarrabulho da Antônia, famosa restauratrice da baixa gastronomia paulistana, ele respondeu na lata em seu estilo taxativo e rocambolesco:
― Nego véio, esse é o quarto mistério de Fátima... sabia não?, a Virgem entregou a três pastorinhos o busílis, as respostas das grandes questões da humanidade, tipo, com Camões que Castro Alves, como se faz o Capão ficar Redondo, ou ainda, quem deixou o Tatuapé... mas o certo é que não há caminho antes da caminhada, compay, o importante é que algo em você se conecte ao mundo lá fora... porque a eficiência nasce da beleza, porque a felicidade, como a poesia, é simples, mas o difícil é ser simples... pense nesse futebol mágico do Barça: é a antropofagização dos canibais, harmonia, ritmo e melopéia, a forma sem norma, o morto-vivo do gato quântico, veneno antimonotonia, remáedio que me dê alegria, inteligência coletiva habilitando o individual criativo; o caminho, meu bróder, nasce quando a trama do desejo se liga à Matrix do mundão velho sem porteira.
O homem põe e Deus dispõe; Deus dá, Deus tira. E assim, no mesmo dia em que os músicos do Noches chegavam a São Paulo, Raulino recebia um duro golpe: um dos seus maiores clientes fora preso numa rumorosa operação da Polícia Federal. Lá estava, em todos os noticiários, executivos de um banco ligado a uma rede de televisão tinham sido pegos em fraudes contábeis e doações eleitorais para lá de suspeitas; as televisões mostravam os vídeos gravados, as conversas de celular grampeadas. Era um escândalo retumbante, figuras de proa do jet set envolvidas em intermediações nebulosas, propinas milionárias e negociatas envolvendo uma ampla gama de subcelebridades, políticos e empresários de baixo calão e grosso calibre. Mas o estrago estava feito: as acusações convergiam para o agora detido Grimaldo Laughton Precioso.
Uma merda de tamanho GG; pouco antes de ir em cana, Precioso havia encomendado a Raulino um lote de “balas”, speed, “doces” e “pó de pirlimpimpim” para uma festinha de encerramento de ano da sua corretora, agora lacrada pela PF. Resultado: com a mercadoria entregue e em paradeiro desconhecido, Raulino precisava pagar vinte mil ao trafica porque o seu cliente estava impossibilitado de mexer em qualquer centavo dos seus muitos milhões. A engrenagem da roda da fortuna girava, girava, e parecia sempre parar no mesmo lugar: os cachorros grandes brigando e ele no meio do fogo cruzado. Deram-lhe três dias.
Uma sacanagem do cacete, com tantas milhetas voando de lá pra cá em malas, malotes bancários e cuecas, Raulino estava com o fiofó na reta por pouco mais de dez mil dólares. Simplesmente não tinha de onde tirar aquela grana, menos ainda em tão curto prazo. É o cu da cobra, pensou desolado, pobre só vai pra frente quando tropeça mesmo. E lá foi ele conduzir os músicos para as suas “acomodações”: um galpão no Ipiranga cedido por um cineasta cliente seu; segundo as informações o lugar servira de oficina a um tio recém-falecido do diretor, parece que era empalhador.
Na rua do Grito, próxima à avenida das Juntas Provisórias e contíguo à favela de Heliópolis, acharam o endereço; na parte da frente ficava a produtora de cinema, seguiram para os fundos onde ficava a oficina do velho. Ergueram com dificuldade o portão de ferro corrugado, acenderam as luzes e pararam no limiar, mudos. Uma fedentina indescritível. Recheando as bancadas, mesas de dissecação, escabelos e estantes, podia-se ver uma profusão de escamas, vísceras, brânquias, barbilhões, orelhas, lábios e bordos de pele esticada; um ambiente feérico repleto de aves, répteis, anfíbios e mamíferos de pequeno porte, um zoológico estático ― Raulino se perdera na tradução, em vez de uma marcenaria de móveis de palhinha, um maldito de um laboratório de taxidermia!
Distante dali, o irmão mais novo estava sendo apresentado a um mundo novo. Os outros garotos-bandeira, recheios como ele das placas de propaganda imobiliária, levaram Rosendo para pipar crack antes de pegar no serviço; este primeiro “tum” da pedra duraria quase a tarde toda, tornando mais suportável sua jornada de menino invisível.

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