Desmoronei.
Vou cambaleando para a cama e desabo nela fazendo estralar as correntes de sustentação. Afundo a cabeça nas mãos tentando fazê-la pensar com movimentos ritmados, catar fiapos de lembrança, recordar qualquer coisa que me tire desta nova prisão. O vácuo.
Não há uma história para contar, nem tesouros insignificantes guardados em gavetas ou armários, agendas, bilhetes de cinema, tecidos desfiados, roupas que não servem mais, brinquedos velhos ou uma casa familiar que me viu crescer. Tudo que tenho são pensamentos ocos, ou menos ainda, os tijolos do pensamento ― palavras ―, e as palavras não passam de cascas de coisas que eram, que foram, que vão se esfarelando pelas vielas do tempo até se tornarem o que são: murmúrio, sobras, rumor, restos de fala, gargarejo, cacareco.
Levanto, enfurecido; não há um único objeto, nenhuma pista à minha volta. Começo a dar voltas na maldita caixa onde me prenderam, sim, porque esta é a única coisa certa nisso tudo: estou preso. Curiosamente não sinto mais a debilidade nas pernas, ando sem embaraços no perímetro e também na diagonal do quarto retangular. Deve ser a raiva. Paro.
Diante da porta-espelho retomo a inspeção adiada: o cabelo e a barba me dizem alguma coisa, as unhas grossas, recém-cortadas, também: alguém cuidou da minha higiene pessoal por um bom tempo. Arranco a camisa, para descobrir um torso despelado; procuro nos braços e pernas por sinais de algemas ou picadas de agulhas. Nada.
Não possuo nenhum tipo de tatuagem ou marca característica, apenas uma cicatriz antiga de apendicite na parte inferior do abdome. Por quê me haveriam de ter cortado as unhas e raspado os pêlos? Os dentes estão em bom estado, aparentemente, o que me lembra da falta que está fazendo uma boa refeição.
Qual será o meu prato favorito?
E é então que experimento uma seqüência de epifanias microscópicas, frustras, incapazes de se unir numa narrativa, mas com a marca do vivido: a dor ambígua de tudo que deixa traço. Recupero, em fragmentos minuciosos, a textura de uma cortina, a manteiga manchada na lata, um beijo no quintal, sandálias, uma foto de grupo escolar, a alegria de correr na chuva. São memórias extremamente pessoais, que pertencem (pertencerão ainda?) a um alguém entre milhões de alguéns, porém, quem sou eu, a pessoa que as abriga?
Nada me garante que não esteja sonhando, embora contra esta hipótese sinta uma angústia bem carnal e a fé cega dos sentidos, mas, principalmente, a intuição de haver aqui um ‘fora’ que não sou eu ― a sensação de ‘outridade’, a resistência que só a realidade sem adjetivos consegue opor ao desejo.
Novamente caio no choro, mas desta vez é o aboio murcho, longo e desconsolado de quem teve a lembrança de um sonho nas mãos e a perdeu ao despertar completamente. Parece que estou sempre a correr atrás de ouro de tolo; outra imagem que me surge: o rato de laboratório fazendo girar a roda inútil. E essa merda de zumbido que não pára!
Pensando bem, deve ser da luz branca; lâmpadas fluorescentes fazem esse barulhinho chato que só.
As luminárias embutidas no teto. Estarei sendo filmado, esquadrinhado em cada reação e movimento, tendo os sinais vitais monitorados à distância por uma junta de cientistas loucos de uma raça alienígena e malvada?
Puta que pariu, se já não estava, fiquei louco de pedra. Delírios de fome, só pode. Espera, lembro de ter ouvido alguém dizer que jejuava para obter um ‘barato’, uma fonte de inspiração artística... droga, onde foi que ouvi isso?!
Um barulho de mecanismo automático sendo acionado. A caixa está se abrindo! A porta de vidro corre para cima à maneira de um alçapão, revelando a espessura descomunal da parede.