quarta-feira, 14 de março de 2012

4 mulheres de perfil (IV)

4. Val

            Val é uma outra coisa, um problema bem maior.
Para começar, o que se tem é só um pedaço de palavra: não é improvável que ‘Val’ seja somente um diminutivo, parte de um outro nome ou apelido. Faltam informações básicas sobre a sua origem. E também tem esse detalhe de ela mesma não ser inteira, melhor dizendo, não ter sido como todas as outras mulheres.
É realmente decepcionante constatar quão pouco resultou da busca descabelada que ela empreendeu atrás do seu passado, dos vestígios que poderiam tê-la guiado ao porto seguro de uma identidade. Ainda mais quando se leva em conta a delicadeza de alma e a generosidade que se desprendem dos seus escritos confessionais e, principalmente, da sua poesia de forte acento clariciano.

Seus braços tinham pêlos dourados
e o valor
que as coisas douradas têm

seu corpo mantinha um lugar
abafado e escuro
como o fruto que aguarda

e precisa atravessar
incólume
uma estação adversa.

            Alguns chegaram a comparar sua prosa com a exasperação límpida de um Caio Fernando Abreu, outros, mais afoitos, viram na estrutura despojada e no prosaísmo dos seus versos uma citação direta de Ana Cristina César. Com esta última, certamente partilhou o destino trágico, abreviador de uma carreira tão curta quanto intensa. Absurdos boatos circularam na época dando como certo que teria sido amante do dramaturgo Campos de Carvalho. Teorias delirantes e despropósitos à parte, o que parece certo é que se tratou de um caso único nas letras nacionais.
            No início todos pensaram que era spam. Recebia-se a mensagem, a foto e a pergunta: Você sabe quem ela é? Depois, como quase tudo na internet, virou bagunça e se espalhou como um meme viral nas redes sociais. ‘Você sabe quem é Val?’ tornou-se sinônimo de gozação, de mulher que está caçando, e por aí vai; apareceram sucedâneos masculinos, transexuais, falsas pistas, enfim, o drama pessoal na rede ganhou ares bufões de farsa cruel ― a dimensão e o peso dos faits divers. Embora fosse previsível.
           
O mundo passa em imagens, fotografias em fuga, moção em vez de mundo; image-in-ação ― pois não há acesso extra-poético ao mundo, nada que não seja: contingência, falha, risco, provisoriedade...

Este trecho faz parte da última postagem feita por Val no seu blog pessoal, aqui constatamos a sua conhecida obsessão com as imagens e a vertigem que elas provocam na vida contemporânea; mas é numa passagem logo a seguir que muitos encontram, por assim dizer, seu bilhete de despedida: “Quero a palavra transparente e total de uma consciência sem segredo, essa palavra-objeto equipada com toda a violência da sua explosão, capaz de convocar os piores terrores do sagrado: o inferno, o céu, a infância, a matéria bruta, a loucura, etc. Aspiro ao que é só natureza e só a natureza tem: o poder do fim”.
Val desapareceu desde essa data, e com ela desapareceram todas as imagens ― e não eram poucas ― que havia dela na web. Nunca mais foi encontrada.
Os fatos conhecidos são estes que seguem.
Tudo teria começado com uma série de fotos íntimas (“mulheres vulvares”) iniciada há anos pela fotógrafa Celiara, que vem a ser filha do mega empresário, o Sr. X. Poucos hoje ainda se lembram do fato, mas houve nos anos de 1970 um caso célebre que envolveu jovens de famílias ricas numa festa de embalo em que uma menina menor de idade foi estuprada e morta depois de ser drogada com cocaína e alcoolizada. O caso não deu em nada: seis testemunhas morreram ou se mudaram do país, e os rapazes, entre eles o jovem Sr. X, foram inocentados na justiça. Este evento mudou definitivamente os rumos da vida dele, que decidiu se dedicar de corpo e alma ao trabalho nas empresas do pai; start da mais bem sucedida carreira de um homem de negócios brasileiro.
Celiara foi educada num escola suíça em que as colegas lhe mandavam links para a página da Wikipédia que mencionava os detalhes do crime do pai. Hoje, depois de três rehabs, ela se dedica às causas feministas; as fotorreportagens ousadas, focadas na denúncia dos maus tratos e exploração das mulheres, lhe renderam fama e prêmios internacionais. Só ela poderia dizer quem é Val. O problema: Celiara desapareceu quando fazia uma reportagem sobre tribos que praticam a circuncisão feminina, a clitorectomia. Há grande chance de que esteja morta: a região onde foi capturada por guerrilheiros, entre o Chade e o Sudão, é uma das mais perigosas do mundo. Nunca foi pedido resgate.
Durante anos ela vinha fotografando mulheres ao redor do mundo; a todas sempre pedia para lhes fotografar a xoxota. Da coleção armazenada em milhões de pixels nos arquivos da fotógrafa, saiu a imagem apenas identificada por três letras, ‘Val’, e uma data de 2009. Val era apenas uma entre muitas combinações de bits em um arquivo de dados digitais; como se tornou consciente, capaz de sair em busca de si mesma e, finalmente, se deletar, é o que resta por esclarecer.
Val é a mulher quintessencial ― um xibiu cabeludo em meio a milhares de raspadinhas, bigodinhos de Chaplin e moicanos ―, a fêmea resumida ao órgão sexual. Menos que uma buceta, ela é apenas a foto de uma buceta. Não admira, assim, que a sua demanda na internet tenha dado margem a tantos equívocos. Como guardião legal dos arquivos da filha, o Sr. X afirmou que não revelará o material inédito lá contido.

Renda-se
como eu me rendi
não se preocupe
em entender

mergulhe
como eu mergulhei
viver é desconhecido

mistério
que ultrapassa todo
entendimento

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