sábado, 28 de abril de 2012

paisagem




a rua escurece azul
os topos ainda refulgem
a incandescência curta última
respiração da glória-lume

lâmpadas despertam
nos postes indefinidas
figuras na calçada
e o céu a explodir magentas

morros recortam horizontais
silhuetas pardos monumentos
contra o dia violeta
a invasão silenciosa do roxo

o vulto desenha na paisagem
radial volumes de concreto
tudo em volta a remoinhar
a espuma rala das nuvens

domingo, 22 de abril de 2012

Os filhos da cabeleireira (parte final)




           André se levantou com os punhos fechados pronto para socar a cara do irmão; a meio do caminho, pensou melhor. Pôs-se a andar em círculos pela cozinha como um tigre de circo. Pisava duro, parecia esperar por uma oportunidade melhor enquanto o irmão remexia o café na caneca com a maior calma do mundo.
            ― Quer saber? O Tiago morreu fazendo aquilo que mais gostava, cercado de amigos, irmãos de afinidade. Ele acreditava no que fazia. E você, bródi, qual é a tua mesmo? Pensa que não te filmei lá na Santa Zita, fingindo que rezava? Rapá, tudo na tua vida é fake, teu carro é o falso smart car, o cavanhaque, cê pintou de loiro, anda pra cima e pra baixo com esse cachimbinho de boiola que tu faz que fuma... fala sério, mano, tu é o maior espuma de chope, nada é à vera, até a filosofia é de araque... como é que é mesmo?, religião pros ateu, fé pra leigo... que porra é essa, hem? Mano, tu é falso que nem nota de três real.
            ― Bom, bom, chega; não vamos a lugar nenhum nessa toada. Nós dois estamos abalados... é uma seqüência de tragédias, mas precisamos esfriar a cabeça e falar a mesma língua, agora que a mãe... não está mais aqui. Ninguém tem o monopólio da dor.
            André parou na frente da pia, inclinou-se para alcançar a alavanca do vitrô basculante da janela. O frio havia piorado.
            ― Falando em monopólio, parece que temos um aqui... não é irmão?
            ― Como assim? Que é que você está querendo dizer?
            ― Não estou querendo, estou dizendo. Dona Gildair fez uma doação pra um de nós dois. E não foi pra mim.
            ― Como é que você...? Quer dizer, você está invertendo as coisas; não é bem assim...
            ― Ah tá, não deve ser assim, deve ser assado. Agora diz você pra mim: que é que eu vou pensar de um Judas que vê a mãe de luto, na pior, tomando uns tarja preta bem nervoso, e cola nela pra ficar com a casa onde ela mora?
            ― Não admito que você me fale desse jeito, não é...
            ― Não é, mas parece, meu bróder. Ainda mais quando a gente lembra que esta região valorizou muito depois da chegada da estação de metrô... diferente de tu, meninão, que nunca valorizou nem o bairro, nem a família de onde veio ― estendeu ambos os braços, virando de frente para o irmão mais velho ― Este cafofo agora vale uma gaita da boa.
            ― Pois foi pensando na família que a dona Gilda me chamou. Foi ela que me procurou. E quer saber? Ela estava muito preocupada com você, queria que eu cuidasse do patrimônio porque sabia que você não tem responsabilidade pra cuidar nem de um canário-da-terra.
            Logo após a morte do irmão, efetivamente, Lucas se reaproximara da mãe. Foi nesta breve convivência que acabou por descobrir a galinha dos ovos de ouro; a mãe falou-lhe da oferta de uma empreiteira que pretendia derrubar meio quarteirão da rua para construir um condomínio de luxo. Cardiopata, extremante abalada com o assassinato de Tiago, Gildair temia morrer de uma hora para a outra; receava, sobretudo, que André dissipasse a herança que deveria lhe garantir algum futuro.
            Lucas contratou um advogado de sua confiança que sacramentou na letra da lei a doação dos cinqüenta por cento do imóvel de que a mãe poderia dispor em vida. Assim, Lucas passava a ter direito sobre três quartos do valor do imóvel; o que ele não tinha como saber: a funcionária do cartório onde lavraram a operação era cliente do Gilda Beauty e revelou a tramóia toda para André.
            ― Luquita, tá ligado que a Cleide tá de barriga?...
            ― Sim, a mãe também me contou essa: mais uma das suas... já deve estar pra nascer, né? Por essas e por outras é que ela me pediu pra...
            ― Desliga a fita, meu, comigo não precisa fazer o número do arrimo-de-família, comigo não violão! Tu só serve de arrimo é pra ti mesmo... Acontece que tenho novidades: o brasilino não é meu, é do Tiago ― André fez uma pausa e esperou que a revelação fizesse efeito.
            ― Tá doidão? A Cleide sempre foi treta tua, Dé, que merda é essa agora?
            Na mosca.
            ― Olha aê, assim tu parece que foi criado na quebrada, não aquele mauricinho que põe blusa de gola rolê pra pagar de papo-cabeça...
            ― Pára de falar asneiras e me explica essa história, André.
            ― Acontece, Luqueta, que, sem herdeiros, nosso irmão Tiago sairia da frente na linha dos herdeiros, não é? Mas, e se ele tiver um filho?, e se a mãe desse filho me deixar administrar a parte dele enquanto ele for menor? Daí, queridão, a tua porcentagem da bolada, mesmo com a doação da mamãe, muda um pouco, precisa dividir mais, né não?
            ― Deixa de ser idiota, o filho é teu!
            ― É verdade. Mas você ainda deve lembrar que eu e o Tiago éramos gêmeos... como provar? Vai valer o que a Cleide disser.
            Lucas se encaminha na direção da saída com as chaves do carro na mão; treme de nervoso, mas procura disfarçar a comoção.
― Não acredito que você é capaz de uma coisa destas!...
            ― Dona Gilda também não acreditava que você ia me esfolar, Lucas, aliás, ela nunca soube avaliar os homens direito. Nem mesmo os próprios filhos. Já você, mano, acha que porque tem um canudo é mais ligeiro que todo mundo; é o problema dos inteligentes: acham que só eles são inteligentes.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Os filhos da cabeleireira (parte 2)


            Alguma coisa parecia pinicar Lucas, mas ele permanecia reticente, como se estivesse com dificuldade para achar as palavras certas. André, que de bobo não tinha nada, pescou no ar.
            ― Desembucha bro, quem tranca muito fica com hemorróida e intestino preso...
― É o lance do bilhete da mãe... como é que uma coisa dessas vai parar na televisão? É muita invasão, não entendo. Neste país não se pode publicar uma mísera biografia sem a sogra, o cachorro e o papagaio assinarem...
― Ih, fio, é o que eu tava te dizendo: nessa hora não há gente, só abutre. Você não tava aqui pra ver a romaria que isto virou, mano, nego me oferecia dinheiro, di-nhei-ro, só matando!, por pedaços da roupa que ela tava usando... naquele dia ― o maxilar de André crispava-se em espasmos furiosos. Tirou de vez a gravata preta.
― De certo modo, era previsível. Funerais revelam mais sobre os vivos do que sobre os mortos. Guardar este tipo de relíquias permite às pessoas se apoderar do ato do suicida, provar que até o mais individual e subjetivo dos atos pode ser transmutado em fato social... uma maneira de reafirmar a perdurabilidade da comunidade dos vivos.
            ― Luquita, não saco nada desse teu quás-quás-quás; intelectualês não é comigo, só te digo uma coisa...
            ― Aquilo que ela escreveu no bilhete não me sai da cabeça: “minha saudade nunca passa”.
            ― Bem, você sabe, sempre soubemos, né?, o Ti era o filhinho querido dela...
            Tiago.
            Finalmente haviam entrado no assunto que ambos sabiam inevitável. Tiago era gêmeo de André; pouco depois de eles nascerem é que o pai sumira. A história oficial rezava que o malaquias só tinha esperado Gildair voltar do hospital para cair no mundo. André não exagerava: Tiago era mesmo o escolhido da mãe, o mais cercado de quindins e agradinhos; aquele que sempre era perdoado e a quem ela, invariavelmente, passava a mão na cabeça. Coincidência ou não, só Tiago cortava o cabelo no salão da mãe.
            ― Nunca consegui entender como é que ela foi capaz de estabelecer uma diferença tão marcada entre duas pessoas idênticas. Coração de mãe é mesmo a boca da escuridão... Hahaha!
            ― Que foi que te deu, maluco, tá rindo de quê?
            ― Lembrei de como você alugava a paciência dela, lembra?, você a chamava de dona ‘Judiaí’... tudo por causa dos dengos dela com o Tiago; deixava ela uma onça. Mas vocês eram os irmãos que nunca se largavam, por outro lado...
            Tiago e André cresceram apavorando o bairro, brigavam na escola, na rua e nas baladas, granjeando a justa fama de valentões do pedaço. Chegados cronologicamente à idade adulta, só havia uma forma de conservarem a aura de malvados sem aderir ao banditismo puro e simples: aderiram então a uma torcida organizada de futebol. Graças à, digamos assim, expertise acumulada, galgaram paulatinamente os postos da hierarquia hooliganesca chegando à diretoria da agremiação. Deste ponto em diante, as brigas em que passaram a se envolver mudaram de patamar ― a escala aumentou, as conseqüências também: as mortes que inevitavelmente sucediam passaram a ser vingadas com sangue novo, num ciclo de vendettas sem fim entre as gangues uniformizadas.
            Tudo acontecera três meses antes.
Os irmãos desciam a avenida Inajar de Souza rumo ao Pacaembu onde se realizaria o maior clássico do futebol paulista, quando o grupo deles foi emboscado pelas torcidas rivais. O conflito se generalizou com as falanges de marmanjos se enfrentando armados de paus, socos-ingleses, pedras, barras de ferro e o que encontrassem pela frente. No meio da confusa escaramuça, surgiram motos de alta cilindrada arremetendo contra a multidão e dirigindo-se para um pequeno punhado de brigões que se haviam refugiado num posto de gasolina fechado; os motoqueiros sacaram armas automáticas e as descarregaram em Tiago e outro rapaz, que ficou paraplégico devido aos ferimentos. Tiago morreria dois dias depois no hospital.
            A conversa morreu de novo. André pegou o coador de papel no armário para passar um café; Lucas resmungou que não conseguiria dormir mais tarde. Você pretende dormir hoje?, respondeu-lhe o irmão secamente. Tomaram o café em silêncio.
            ― Uma merda o meu nome no meio disso tudo... ― Lucas falava mais para si mesmo, enquanto assoprava encostando os lábios na borda da caneca.
            ― O seu nome, caralho, o seu nome?! ― André perdeu a boa, esmurrava a mesa fuzilando o irmão com o olhar ― É com isso que cê tá preocupado? Maninho, deixa eu fazer um desenho pra você entender: nosso irmão foi assassinado, nossa mãe não agüentou o baque e SE MA-TOU! Se matou, imbecil, um foi morto, a outra se matou!
            ― Pra você é fácil falar, não é uma pessoa pública... que carreira você tem? Dirigente de torcida organizada de futebol, é essa a sua profissão, André?
            ― É sim, e daí? Não roubo nem engano ninguém; não sou como meu bróder que vive de extorquir velhotas na Terra Santa. Belo filósofo você, guia turístico de beatas milionetes em Jerusalém!
            ― Ah é?, fui eu que combinei aquela briga que matou nosso irmão? Quem foi que chegou até a ser preso como um dos principais suspeitos da polícia? Você, irmãozinho, você e o Tiago estavam envolvidos nisso até o pescoço, e você, VO-CÊ, é responsável pela morte do seu irmão e da sua mãe!

domingo, 15 de abril de 2012

Os filhos da cabeleireira (parte 1)


            O Mini Cooper, modelo Countryman de cor verde Oxford metálica, pára na frente do sobrado na zona norte. O motorista buzina três vezes, impaciente. A luz do corredor lateral por onde se acessa a habitação principal e a edícula acende, um rapaz desce lentamente a escada. Os degraus margeiam o pequeno jardim da frente da casa e angulam suavemente para a esquerda, dividindo-se em dois ramos: um vai diretamente para a porta da rua, o outro dá na garagem. O Mini estaciona ao lado de um Passat antigo de frente rebaixada.
            Os dois irmãos miram-se silenciosamente na luz desmaiada da lâmpada de 40 watts da garagem; o mais novo, que ainda mora na casa onde passaram a infância, segue na frente. Chuvisca de leve, a noite caiu há pouco.
            ― Uff, que frio! Tinha esquecido como aqui é mais frio que na cidade ― o mais velho, Lucas, tem trinta e nove anos e leciona filosofia da religião numa importante universidade privada.
            ― A cidade é a mesma pra todo mundo. O frio também. Pois é, faz tempo... nem sabia se você ia acertar com a igreja ― André tem três anos a menos, o torso hipertrofiado exibe tatuagens coloridas até o punho direito; no topo do crânio, raspado com máquina zero, tatuou o símbolo do Yin-Yang. Disputa rinhas clandestinas que lhe rendem mil reais de cachê e as orelhas deformadas típicas dos lutadores de vale-tudo. É diretor de uma torcida organizada de futebol e faixa marrom de Muay Thai.
            ― Talvez você não acredite que isto é difícil pra mim também... Achou que eu não lembrava mais onde era a Santa Zita? Também fui criado na Brasilândia, irmão, só não esperava uma missa de sétimo dia tão cheia...
            ― É o cheiro do sangue que atrai, mano, tragédia é que dá audiência, desgraça na casa dos outros é novela. O que não faltava lá era urubu, as boca-de-maria, umas comadre com ar de quem tá de rosca, fazendo cara de “tinha-que-dar-no-que-deu”. Olha, ainda bem que sou evangélico, esse povinho de missa só sabe é de dar moral nos outro...
            Gildair pesava como um buraco imenso, pesava como as sombras no salão de beleza vazio que ambos atravessavam rumo à cozinha. Na penumbra desolada, viam-se passar por espelhos acostumados ao alarido das clientes e à iluminação intensa dos LEDs e lâmpadas dicróicas ― as macas de massagem, as estantes, os secadores, os consoles e prateleiras repletos, as cadeiras hidráulicas, os lavatórios de marmorite preta, chapinhas, pincéis, escovas, tesouras, tudo parecia ter ido embora junto com a dona. A manicure que trabalhava com a mãe deles há mais de vinte anos a encontrara pela manhã, caída no chão junto a uma garrafa de uísque, um frasco de xarope de cereja silvestre e o bilhete. O Gilda Beauty, estética e cabeleireira, nunca mais voltaria a abrir.
            ― A vida da dona Gildair era isto aqui... educou três filhos se matando de segunda a domingo nos alisamento, manicure, cremes rinses e tonalizadores, uma guerreira!
            ― O que chamamos de beleza tem muito de reencontro: um alumbre da primeira visitação do horror na infância. E ainda nos jogamos aos pés dessa deusa bárbara e cruel para lhe agradecer o desprezo e abandono com que nos destrói... um pouco de Rilke em sua memória, dona Gilda.
            ― Maninho, tu é bico doce que é o carai, com esse xavequinho cansado daí, a mulherada dorme no barulho que eu tô ligado. Caranga da hora, professor e tal, tu tá bonito na foto, só no filé...
            Lucas foi para a geladeira; na falta de algo razoável, serviu-se de um copo de água. Os gostos da casa eram calóricos demais para ele; a sua imagem nos reflexos do salão veio-lhe então, junto com a constatação dolorosa do avanço da calvície. André retirou o paletó apertado (era do outro irmão), afrouxou a gravata e passou a observar os gestos do irmão escanchado numa cadeira com revestimento de fórmica igual ao da mesa. Lucas sentou-se do outro lado da mesa. A cozinha tinha sido para eles o centro emocional do lar, o parlamento e o supremo tribunal da família Letorazzi, ou do que sobrou dela depois que o pai abandonou a mulher com três filhos pequenos, deixando-lhes um sobrenome e explicação nenhuma.
            ― E o pai? Depois de todos esses anos desaparecido... como é que ele, quer dizer, quem...?
            ― Ah, esse tranqueira, veio ver se come algum, com certeza... fiquei no veneno de ir lá e dar uma no cara de pau! Quanto mais reza, mais aparece assombração: nego toma um chá de sumiço de mais de trinta anos e aparece, assim, do nada, na cara mais lavada do mundo! Dizem que estava na Itália, pra variar, vivendo nas costa de mulher; deve ter umas dez família espalhada por aí, esse mala sem alça...
            Pater familias et Mater dolorosa...
            ― Que foi?
            ― Nada.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A Caixa (parte final)


Prestes a obter as primeiras respostas desde que despertei, surgem-me duas idéias aparentemente desconexas entre si, embora a primeira decorra da situação e expectativa formadas: quem eu gostaria de encontrar agora?
Por outro lado, havia a história de um menino que recebeu um dom precioso, mas o medo e a mágoa fizeram dele um homem triste e poderoso, impedindo que se cumprisse seu grande destino. Onde vi, ou ouvi, isto é que não fica claro, porque a lembrança vem descosida de imagens ou informações biográficas.
Ouço passos, há alguém do outro lado.
Aproximo-me da porta, um tropel de medo e curiosidade hesitante pisando no acelerador e no freio descoordenadamente. O pouco que dá para ver de través, é um quarto com as mesmas paredes, o piso sintético, uma parte da cama e o buraco da privada. Sem janelas.
Deslizo arrastando os pés descalços com cautela até me postar por inteiro na abertura que liga as duas celas. É decepcionante não haver uma saída para fora, para qualquer outra coisa que não seja este mesmo lugar. Não há comunicação aparente para o exterior, apenas uma grossa porta de acrílico entre dois cômodos simétricos.
Lá está ele, o meu vizinho. Um homem atarracado e pálido metido no pijama amarelo, o ar desvairado que a barba e os cabelos compridos reforçam. Permanecemos silenciosos frente a frente durante um longo instante de observação mútua. O evidente atordoamento dele me faz desconfiar que também ignora tudo sobre a sua situação. Só não parecemos uma dupla de mímicos brincando de espelho porque estou sem a camisa do uniforme.
Ele toma a iniciativa.
― Kiu estas vi? Kio estas ĉi tiu loko? Kio estas ĉi tiu loko?
― Que azar, um estrangeiro... Não entendo patavina do que você fala, meu amigo. Do you speak english? English, do you speak english? ― não sabia que falava inglês, talvez só conheça estas palavras.
― Mi ne komprenas kion vi diras. Kie vi estas?
― Ai, ai, começamos mal, assim não nos entendemos. Esta conversa não ajuda nada deste jeito...
― Liaj haroj, lia barbo, vi batis tie ankaŭ! Kio okazis al ni?
O cara passa para o meu quarto e põe-se a andar por ele, esquadrinhando todos os cantos. Desconfortável. E antipático: um pouco entrão por demais. Vamos tentando manter um contato rudimentar por meio de gestos. Podia ao menos falar a minha língua, o paspalho.
― Como pode ver, este é o apartamento decorado, duplex, hãm, os aposentos são modestos, mas limpinhos. A vista é que não é lá essas coisas... ah, desista, você não vai entender nada mesmo...
― Kio estas ĉi tiu loko? ― o sujeito repete várias vezes esta pergunta falando consigo mesmo, o que me deixa ainda mais puto da vida. Loco, loco ele diz, loco é tu, mané.
O rosto dele é indefinível sob a barba hirsuta, tenho a impressão de que não se parece com os que estava acostumado a conviver na vida esquecida que deixei para trás; mas também nada me garante que isto seja verdade. Ele estaca, espia em torno, como para se certificar de que não somos escutados, e se aproxima do meu ouvido enquanto aponta ambos indicadores para o peito e a cabeça sublinhando as palavras.
― Volis scii, kiu mi estas, sed mi ne memoras ion.
Sem se importar com a minha incompreensão, puxou meu braço me arrastando para o canto. A manobra era de um ridículo pueril, como se, ao esconder a cara, houvéssemos deixado de ser vistos e passado para um aposento privado.
― Rigardu kion mi trovis en la angulo de la ĉelo...
De repente, vejo-o pondo a mão por baixo da camisa no gesto de buscar algo. Um lâmina rebrilha na obscuridade.
Balanço o tronco para trás instintivamente, mas interrompo o movimento voltando na direção dele com o joelho direito erguido atingindo-o em cheio na barriga. (Essas coisas são muito mais difíceis de começar do que parar.) Ele cai gritando de dor, eu me atiro em cima desfechando socos, mordidas e pontapés. Tamanha é a fúria que chego a me sentir tranqüilo, quase feliz, executando uma coreografia familiar de tão fácil; experimento, neste estado de suspensão, a estranha euforia que proporciona a proximidade da morte.
Depois de um tempo em que ele já não reage caído no chão, dou-lhe os últimos chutes e saio dali para me sentar na cama. Parece que já não respira.
Desmaio de cansaço.
Ao acordar, a cela está vazia. Não há sinais do meu vizinho; não fosse pelo sangue e os arranhões dos braços e do tronco, poderia acreditar que tinha tido um pesadelo. O pé direito está inchado, a unha de um dedo da mão, virada: os golpes existiram e foram para valer. Porém a dor não vem daí.
Faz um pouco de frio, resolvo colocar a camisa que está jogada no chão ao lado de onde vomitei. Ao me baixar, vejo uma tira de tecido coberta de sangue fresco. Era isso que o cara ia me mostrar: uma fita adesiva prateada.
O que fazer comigo? O sentido do que aconteceu escapa, mas sou capaz de antecipar o desolamento e aridez da responsabilidade total. O que fazer com o que eu fiz?
A única verdade que não dói é a dos outros. Se até há pouco tempo não sabia nada acerca de mim, na hora do sapeca iá-iá obtive a informação essencial: martelo ou prego?, lutar ou correr?; passei por uma tomografia ontológica só para descobrir que não existem bons ou maus, apenas homens que fazem o mal e homens que sonham com o mal. De um só golpe me vi do tamanho de Deus, velho como o Universo, abolindo o certo e o errado, emergindo em pleno nada, sem Deus, sem desculpas, diante de um futuro infinitamente culpado.
Decidi que vou guardar esse troço comigo; um souvenir da vida daqui pra frente. Parece pouco, e talvez seja muito pouco, mas é suficiente para contar a minha história. A do sobrevivente.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Claricianas, #3


A parte minha que ignoro
é uma maçã
no escuro

Lado oculto com que desejo
e busco
no vão de mim a mim

Onde menos sei
está
o que mais ensina:

Os avessos da pele
a ferocidade do hábito
a letra da paixão

Através do que não vejo
negocio com a época
que me coube viver

Estranhas cidades mortas
onde
formas petrificam circunstâncias

Mumificadas uma necrópole
de movimentos
de silêncios de vazios

A extraordinária sonoridade
do nada
feita do avesso do som

Extensas quedas admiráveis
o sono
sem sonho dos zumbis

Desfalecimento que amortalha
os mortos
numa vida onírica

A morte pela qual todo
um
torna-se espírito e outro