Foi
numa manhã cinzenta como esta, mesclando-se ao som da chuva que caía sobre os
jardins suspensos do MASP, que a vigilante escutou pela primeira vez a melodia
do pífano. A princípio, deixou-se estar, imóvel e aterrorizada; talvez fosse
música ambiente, até que já não cabia dúvida: saindo da obra de Van Gogh, O Aluno, também chamada Garoto de Quepe Azul, ouvia o sedutor
chamado que a convidava a entrar na tela e se perder no país dos suicidas. Um
dos resultados de contemplar o mesmo quadro por muito tempo é que os detalhes
se incorporam de maneira concreta, a pintura como que nos pertence ― vemos nela
o que nenhuma outra pessoa poderá ver.
Neno bem que a
tentou avisar.
― Cuidado, não
entre no mundo da arte. Você vai destruir todas as obras, principalmente
aquelas que mais ama.
Não tem tempo
a perder; dentro de uma hora e meia precisa chegar a casa, pegar o neto e levar
para a creche. A desmiolada da mãe, sua filha Elvira, já está em outra roubada;
não há de ser uma criança que a impedirá de viver seu novo grande amor. São
três conduções do serviço até sua casa de tijolo aparente em Parada de Taipas:
metrô, ônibus e lotação; mesmo assim, não consegue deixar de passar pela sala
do segundo andar para se despedir do filho do carteiro. O escolar do quepe
azul, Camille Roulin. Numa carta para o irmão, Vincent escreveu: “pintei os
retratos de toda a família; todos tipos bem franceses, embora tenham cara de
russos”. Só Rosa compreende a que “russos” o pintor se referia: na verdade,
quis dizer “rosas”, quis dizer exilados, trânsfugas, imigrantes de uma pátria
triste: o país dos que cansaram.
Voltar na hora
em que todos vêm é um exercício de solidão acompanhada; a massa no contrafluxo,
rugindo de raiva e pressa, e ela na outra margem do rio da miséria cotidiana.
Rosa ainda ouve o flautim ao descer no ponto; ainda não sabe explicar o
fascínio daquele milagre da pura linguagem, mensagens de além-túmulo de um
pobre diabo distante dela mais de cem anos. O dobro da idade que completa hoje.
Se fizer um bolo, alguém se lembrará de lhe cantar um parabéns em casa? Decorou
as falas do professor Tassotti nos cursos que incluem visita guiada ao acervo.
― ... reparem
as extensas áreas monocromáticas, os contrastes impressionantes, a força que
pulsa nas camadas espessas de tinta espremida diretamente das bisnagas. Mais
adiante, no Passeio ao Crepúsculo,
também de 1888, gostaria de lhes chamar a atenção para as duas zonas bem
distintas da luz: no alto, à direita, os azuis escuros dos Alpilles, de onde a
noite cai rapidamente; o casal dirige-se para a esquerda, onde predominam os
verdes claros; na borda inferior, o detalhe malicioso do passarinho. É preciso
levar em conta que esta era a perspectiva da janela do hospício em Saint-Rémy,
onde o haviam internado; a metáfora do ato sexual parece-me bastante óbvia. Como
lhes mostrarei mais tarde na sala de projeção, nas pinceladas convulsas do Trigal com Corvos e da Noite Estrelada, igualmente pertencendo
a este período final na Provença, trava-se uma avassaladora batalha cósmica e
já não estamos simplesmente acompanhando a evolução de um artista excepcional:
é como se assistíssemos ao nascimento do Universo.
O marido a
espera no portão de ferro sem pintura; o portão é meio caído dos engonços,
precisa ser levantado para abrir. Está trombudo, como de costume; apressado,
como de costume, para ir trabalhar ― a mesma pressa que lhe falta para voltar.
Nem um beijo, nem uma palavrinha meiga. Que dirá, um feliz aniversário.
―
Tô indo. O menino não comeu pão, só o leite tomou. Ah, vê se não faz macarrão
de novo na janta, já foi onte e ontonte.
Wanderson,
o neto de cinco anos, vai arrastado para o ponto; ele é bem irrequieto, pudera,
sem a mãe por perto as crianças de hoje em dia ficam incontroláveis. Enquanto
passa o menino por baixo da catraca do ônibus pensa se o está criando bem.
Talvez esteja apenas repetindo os mesmos erros que cometeu com os filhos. Tem
só dois, Deus e o desinteresse do marido não lhe deram mais. O filho mais novo
já não aparece muito, vive na rua; só dá as caras em casa a horas desencontradas,
volta com um ar esquisito, transtornado. As coisas não param de sumir: na
semana passada foi o liquidificador, que ela ainda nem tinha acabado de pagar
no crediário.
Rosa
deixa o olhar vagar distraidamente pela cozinha, espera o café passar no coador
de papel; não quer se voltar na direção da sala e do quintal que reclamam uma
boa faxina. Em silêncio, morde os lábios ao reparar, junto do pote de café,
entre pacotinhos de chá, sacos de pão dormido e latas de embutidos, uma garrafa
pet cheia de água sanitária. Pensa em como é fácil morrer, e que não deve deixar
escapar tão magnífica ocasião e lugar. Bastam uns goles daquela água que
passarinho não bebe para apagar de uma vez todo aquele cotidiano de imagens
cinza, de filhos perdidos, de marido desalmado, de tédio mortal no museu.
―
Ô vida besta, Deus meu! ― disse para si mesma, para Deus ou para as paredes,
tanto fazia.
.Mas
quando já estava a ponto de pegar a garrafa, quando o menino azul do quadro já
recomeçara a tocar o pífano diabólico na sua cabeça, aconteceu de pensar no
desgraçado do seu marido e de repente descobriu que havia algo no ar da manhã,
nesse estar sozinha e triste na cozinha, que agitava seu sangue de um modo
quase agradável. Na verdade, seu marido está pegando a vizinha da rua de baixo,
a piriguete sem graça da mercearia (e o desgraçado achando que ela não sabe de
nada); na verdade, o sem vergonha do marido é um espírito sem luz merecedor de
compaixão, e precisa ser ajudado, o que não deixa de ser uma boa razão para
seguir vivendo, para seguir preparando o café, para seguir tentando que seu
marido recupere a alegria e volte a ser aquele homem encantador que havia
conhecido no Playcenter há trinta anos, quando lhe pagou um algodão doce.
Decidiu
que vai fazer um bolo.