quarta-feira, 4 de julho de 2012

Rosa faz anos (epílogo)



            Manda para baixo uma boa talagada da pinga esquisitona. A zonzeira danada lhe sobe quase instantaneamente, despenca de cara no tampo da mesa. Quando volta a conseguir erguer meio rosto e olhar em torno, descobre que não está mais na cozinha; endireita-se como pode no que parece ser uma carteira escolar, solitária na saleta abafada de paredes encardidas. Diante dela, sobre um estrado muito precário, de ripas soltas e podres, e com pregos perigosamente expostos, há uma mesa com pastas de arquivo, fitas cassete e fotos espalhadas.
Três homenzinhos minúsculos consultam os papéis e as fotos, fazem caretas e comentários em surdina entre si, põem e tiram freneticamente os óculos pequenos das carantonhas enormes. Vestem uma bata azul excessivamente apertada nos corpinhos gorduchos, o que ajuda a tornar ainda mais ridículos seus movimentos nervosos, e seriam absolutamente idênticos não fosse pelos penteados ― ocorre-lhe que parecem uma pantomima lamentável dos Três Patetas, exceto pelo carequinha que usa um barrete.
― Eh, bem, vamos iniciar o caso da senhora Rosa Maria Nonato de Sousa, 50 anos, que vem tendo pensamentos de auto-eliminação há seis meses... ― começou, como se estivesse lendo, o anãozinho de cabelos espetados em todas as direções.
― ... é nosso dever preveni-la de que esta é a derradeira instância, e que não caberá recurso, portanto, toda decisão tomada aqui... ― o de cabelo preto cortado em cuia prosseguiu do ponto onde o outro pausou, como num jogral.
― É, é isso mesmo: não é porque a sua vida está uma merda, que você vai se matar assim, sem mais... Temos informações precisas de que a senhora fala durante o sono: “Esta vida para quê?”; seu marido nunca escuta porque está sempre pra lá de Marrakesh quando deita ao seu lado... ― o da barretina nem bem acabou de falar, e os outros dois já o apostrofavam com cala-bocas e o cobriam de saraivadas de tabefes. Estabeleceu-se a confusão.
― Ei, ei, querem parar? Podem ao menos me explicar que lugar é este, quem são vocês e o que estamos fazendo? Parem de bater um no outro, já! Vamos, isso não são modos...
― Isso mesmo ― queixou-se o careca, enquanto descia do estrado para buscar o boné caído na confusão ―, vocês sabem muito bem que pra código 13 tem de haver três de nós, não adianta me mandar embora!
― Código 13?...
― É quando a ocorrência envolve tra-la-lás como você, que escolhem sair da sala antes de bater o sinal ― desta vez o máquina-zero não apanhou, mas ganhou olhares de ódio dos outros integrantes da mesa.
― O que esse débil mental quis dizer é que a senhora não passou para o lado de cá, isto é, não inteiramente, ainda há tempo de voltar para trás, retornar para os seus...
― Rosa, nós somos Assessores de Deus, ajudantes do Taumaturgo que criou os céus e a Terra, que lhe presenteou o mais precioso dos dons...
― Sei, com que então não morri, e isto não é o Inferno? ― à menção desta última palavra, um arrepio simultâneo percorreu os corpinhos dos seus interlocutores.
― Oh não, nada disso, não somos servidores de Semihazah, esse maldito entre os malditos, cujo único objetivo é destruir a Criação, obra magna do nosso Mestre.
            ― Estamos aqui para tentar convencê-la a desistir de morrer antes da hora, a seguir em frente... não há outro jogo Rosa: é estar na vida, boa ou ruim, ou nada...
            ― Azazel é que fez os homens acreditarem nessa patranha de vida após a morte, de castigos e recompensas futuras, como se vocês fossem os cachorrinhos de Pavlov que realmente são. Vamos abrir o jogo de uma vez: seu marido é um bosta; seu filho, que está passando cada objeto da casa nos cobres, vai se acabar no crack; sua filha, cérebro de ostra, vai embarrigar dos homens mais inúteis que encontrar... E quem vai cuidar ‘do’ lojinha?
            ― Quer dizer que eu só sirvo para cuidar dos outros? Vocês estão me dizendo que é o Tisnado que anda pondo idéias na minha cabeça?
            ― Claro! A destruição pode até criar uma coisinha ou outra, mas, em algum momento, sempre se volta contra a matéria viva. Porque acha que estamos sempre pressionando contra a pesquisa com células-tronco, o divórcio, a camisinha, o aborto? Não nos importa se o pato é macho, desde que bote ovo...
            ― O seu pensamento de há pouco estava errado: quem mais precisa de você hoje, é o Wanderson. Só ele interessa. Agüenta mais uns dez, quinze aninhos, que custa?
            ― Outra coisa, afaste-se da grande arte, ela põe muita merda na cabeça de pessoas até mais preparadas que você. Artistas têm essa mania de rivalizar com o Taumaturgo; é preciso que a Arte fique em seu lugar: as pessoas comuns podem sentir que há ali luz e trevas, mas nunca devem saber o que é o quê. Como isso foi acontecer com você Rosa, não sabemos; não teve educação, cuidado, carinho, nem outros meios, mas chegou a esse conhecimento.
            ― Tá certo, entendi. Mas é que, queria me encontrar com Deus antes de ir, posso? Um professor lá no museu disse que Ele estava morto...
            ― Er, veja, não vai dar... talvez não agüente a visão direta da Sua grandeza...
            ― Hmm, além disso, Ele está sempre muito ocupado com o Cosmos, você nem imagina a trabalheira que dá...
            ― E também, nega, o Velho tá muito é gagá; você imagine, tem uma eternidade de anos... Já não lembra de porra nenhuma, coitado; quem faz tudo s...
            Aí começou uma barafunda terrível: os dois anõezinhos com cabelos se atiraram sobre o do barrete aos xingos, muquetões, cuspidas e gritos; Rosa teve imensa dificuldade em tirá-los de cima do pobre-diabo. Quase o esganavam.
            ― Bom, já vou indo. Foi um pouco decepcionante saber que Deus já não se lembra de nós, Seus filhos; mas eu também já tinha me esquecido da razão de viver... Como vou fazer para continuar, sabendo o que sei agora?
            ―Não haverá problemas: tudo que vai sobrar na sua memória será um sonho desconexo e estranho; uma história que algo em você contou, mas que se recusará a entender.
Rosa abre bem os olhos, e ainda um pouco tonta, recompõe sua figura enquanto comprova que tudo continua igual na sua cozinha e na sua existência. Sabe, como o holandês lhe ensinou, que a tristeza durará para sempre; mas já não ouve mais o flautim, e as cores do mundo voltaram à imobilidade habitual: tudo na mais perfeita e triste ordem. Talvez seja melhor assim, voltar para a sua rotina grisalha e amorfa, voltar para este país maravilhoso e sem propósito, cruel e macio chamado realidade de todos os dias ― em outras palavras, contentar-se com o que tem para hoje.
Nunca mais voltou a conversar com o menino azul.

Um comentário:

José Doutel Coroado disse...

Caro filipe com i,
Triste... mas a estória está bem bolada!
abs