Manda
para baixo uma boa talagada da pinga esquisitona. A zonzeira danada lhe sobe
quase instantaneamente, despenca de cara no tampo da mesa. Quando volta a
conseguir erguer meio rosto e olhar em torno, descobre que não está mais na
cozinha; endireita-se como pode no que parece ser uma carteira escolar,
solitária na saleta abafada de paredes encardidas. Diante dela, sobre um
estrado muito precário, de ripas soltas e podres, e com pregos perigosamente
expostos, há uma mesa com pastas de arquivo, fitas cassete e fotos espalhadas.
Três
homenzinhos minúsculos consultam os papéis e as fotos, fazem caretas e comentários
em surdina entre si, põem e tiram freneticamente os óculos pequenos das
carantonhas enormes. Vestem uma bata azul excessivamente apertada nos corpinhos
gorduchos, o que ajuda a tornar ainda mais ridículos seus movimentos nervosos,
e seriam absolutamente idênticos não fosse pelos penteados ― ocorre-lhe que
parecem uma pantomima lamentável dos Três Patetas, exceto pelo carequinha que
usa um barrete.
― Eh, bem,
vamos iniciar o caso da senhora Rosa Maria Nonato de Sousa, 50 anos, que vem
tendo pensamentos de auto-eliminação há seis meses... ― começou, como se
estivesse lendo, o anãozinho de cabelos espetados em todas as direções.
― ... é nosso
dever preveni-la de que esta é a derradeira instância, e que não caberá
recurso, portanto, toda decisão tomada aqui... ― o de cabelo preto cortado em
cuia prosseguiu do ponto onde o outro pausou, como num jogral.
― É, é isso
mesmo: não é porque a sua vida está uma merda, que você vai se matar assim, sem
mais... Temos informações precisas de que a senhora fala durante o sono: “Esta
vida para quê?”; seu marido nunca escuta porque está sempre pra lá de Marrakesh
quando deita ao seu lado... ― o da barretina nem bem acabou de falar, e os
outros dois já o apostrofavam com cala-bocas e o cobriam de saraivadas de
tabefes. Estabeleceu-se a confusão.
― Ei, ei,
querem parar? Podem ao menos me explicar que lugar é este, quem são vocês e o
que estamos fazendo? Parem de bater um no outro, já! Vamos, isso não são
modos...
― Isso mesmo ―
queixou-se o careca, enquanto descia do estrado para buscar o boné caído na
confusão ―, vocês sabem muito bem que pra código 13 tem de haver três de nós,
não adianta me mandar embora!
― Código
13?...
― É quando a
ocorrência envolve tra-la-lás como você, que escolhem sair da sala antes de
bater o sinal ― desta vez o máquina-zero não apanhou, mas ganhou olhares de
ódio dos outros integrantes da mesa.
― O que esse
débil mental quis dizer é que a senhora não passou para o lado de cá, isto é,
não inteiramente, ainda há tempo de voltar para trás, retornar para os seus...
― Rosa, nós
somos Assessores de Deus, ajudantes do Taumaturgo que criou os céus e a Terra,
que lhe presenteou o mais precioso dos dons...
― Sei, com que
então não morri, e isto não é o Inferno? ― à menção desta última palavra, um
arrepio simultâneo percorreu os corpinhos dos seus interlocutores.
― Oh não, nada
disso, não somos servidores de Semihazah, esse maldito entre os malditos, cujo
único objetivo é destruir a Criação, obra magna do nosso Mestre.
―
Estamos aqui para tentar convencê-la a desistir de morrer antes da hora, a
seguir em frente... não há outro jogo Rosa: é estar na vida, boa ou ruim, ou
nada...
―
Azazel é que fez os homens acreditarem nessa patranha de vida após a morte, de
castigos e recompensas futuras, como se vocês fossem os cachorrinhos de Pavlov
que realmente são. Vamos abrir o jogo de uma vez: seu marido é um bosta; seu
filho, que está passando cada objeto da casa nos cobres, vai se acabar no crack; sua filha, cérebro de ostra, vai
embarrigar dos homens mais inúteis que encontrar... E quem vai cuidar ‘do’
lojinha?
―
Quer dizer que eu só sirvo para cuidar dos outros? Vocês estão me dizendo que é
o Tisnado que anda pondo idéias na minha cabeça?
―
Claro! A destruição pode até criar uma coisinha ou outra, mas, em algum
momento, sempre se volta contra a matéria viva. Porque acha que estamos sempre
pressionando contra a pesquisa com células-tronco, o divórcio, a camisinha, o
aborto? Não nos importa se o pato é macho, desde que bote ovo...
―
O seu pensamento de há pouco estava errado: quem mais precisa de você hoje, é o
Wanderson. Só ele interessa. Agüenta mais uns dez, quinze aninhos, que custa?
―
Outra coisa, afaste-se da grande arte, ela põe muita merda na cabeça de pessoas
até mais preparadas que você. Artistas têm essa mania de rivalizar com o
Taumaturgo; é preciso que a Arte fique em seu lugar: as pessoas comuns podem sentir que há ali luz e trevas, mas nunca devem saber o que é o quê. Como
isso foi acontecer com você Rosa, não sabemos; não teve educação, cuidado,
carinho, nem outros meios, mas chegou a esse conhecimento.
―
Tá certo, entendi. Mas é que, queria me encontrar com Deus antes de ir, posso? Um
professor lá no museu disse que Ele estava morto...
―
Er, veja, não vai dar... talvez não agüente a visão direta da Sua grandeza...
―
Hmm, além disso, Ele está sempre muito ocupado com o Cosmos, você nem imagina a
trabalheira que dá...
―
E também, nega, o Velho tá muito é gagá; você imagine, tem uma eternidade de
anos... Já não lembra de porra nenhuma, coitado; quem faz tudo s...
Aí
começou uma barafunda terrível: os dois anõezinhos com cabelos se atiraram
sobre o do barrete aos xingos, muquetões, cuspidas e gritos; Rosa teve imensa
dificuldade em tirá-los de cima do pobre-diabo. Quase o esganavam.
―
Bom, já vou indo. Foi um pouco decepcionante saber que Deus já não se lembra de
nós, Seus filhos; mas eu também já tinha me esquecido da razão de viver... Como
vou fazer para continuar, sabendo o que sei agora?
―Não
haverá problemas: tudo que vai sobrar na sua memória será um sonho desconexo e
estranho; uma história que algo em você contou, mas que se recusará a entender.
Rosa abre bem
os olhos, e ainda um pouco tonta, recompõe sua figura enquanto comprova que
tudo continua igual na sua cozinha e na sua existência. Sabe, como o holandês
lhe ensinou, que a tristeza durará para sempre; mas já não ouve mais o flautim,
e as cores do mundo voltaram à imobilidade habitual: tudo na mais perfeita e
triste ordem. Talvez seja melhor assim, voltar para a sua rotina grisalha e
amorfa, voltar para este país maravilhoso e sem propósito, cruel e macio
chamado realidade de todos os dias ― em outras palavras, contentar-se com o que
tem para hoje.
Nunca mais
voltou a conversar com o menino azul.
Um comentário:
Caro filipe com i,
Triste... mas a estória está bem bolada!
abs
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