quarta-feira, 29 de agosto de 2012

o fruto anuncia a colheita




a torre me tem
enraizado
na finta do vôo

estou deitado como um mar
e o não transita
teu corpo

amarei um nome obscuro
uma cidade imaginada
um desenho

na pele para fazer
memória


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

para quem faz o amor o amante?



 

você toca a matéria

e agita

me a alma

 

o amor não é forma

amor trans

forma

 

não se pode mentalizar

o ilimitado

aprisionar o diálogo

impedir

 

o momento da criação

aquilo que deve

nascer

 

numa relação arquitetônica

e musical

a experiência bruta

da cor

 

a grande ordem virá

do tempo

anterior à duração

inarticulado

 

e belo elemento

que afasta o mundo

enlaça

 

plurais

você nasceu para me

fazer ex

 

plodir

 

sábado, 25 de agosto de 2012

eles passarão, eu, passarinho





para compor um céu é preciso

haver passarinhos

antes mesmo até

do azul

 

mas é fundamental haver

margens

e um rio para correr nelas

e casas

com quintal, pitangueira

e goiaba no pé

 

quando foi a última vez que fiz algo

pela primeira vez

na vida?

 

comecei perdendo os heróis

na família

no esporte

na música

e na política

 

comecei a perder aos poucos

a audição

a vista

a memória

e a paciência

 

mas não perdi a esperança

vou consultar o pai Maicknuclear:

lê poema

amarra prosa

traz seu texto de volta

em sete dias

 

— esse sim, funciona!

 

domingo, 19 de agosto de 2012

já não




já não ardo
vivo

já não chovo
choro

já não destilo
escrevo

já não tenho
todo

tempo


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

não tenho notícias de mim



a tarde

           dorme

                      a dor

pausa

          o sol

descansa

              o ruído das folhas

dispersa

             o incêndio

da alma

             vou quebrar

                        antigas

 certezas

                e te dar

                        os cacos

da minha

               vaidade

domingo, 12 de agosto de 2012

O corno do Bife (epílogo)

(foto: José António Doutel Martins Coroado)

            Ao fim e ao cabo, depois de calcorrear as casas dos parentes, a Mãe deixou os miúdos com os pais dela, figuras colossais que se gravaram no Menino como tatuagens na alma, e de quem nunca deixará de se lembrar pelo resto dos seus dias; na despedida a mamã disse que eu já era grande (oito anos!) e devia ser forte e ajudar a tomar conta do meu irmãozito, que voltaria logo, e, enquanto e não, deveria obedecer aos avós; como se precisasse: naquela época, um pirralho refilar para um adulto ― que dirá desobedecer! ― era tareia na certa; a Avó não era de economizar nas estampilhas, mas educava mesmo era por meio de seus impagáveis adágios, os quais sempre trazia como que na algibeira a propósito de todo e qualquer assunto: “Homem pequenino é maroto ou bailarino”, “Ovelha que berra, bocado que perde”, “Quem não come por já ter comido, não tem doença de perigo”.

Já o Avô era de fala pouca e certeira; demorava uma eternidade a comer e a contar suas histórias da tropa, enquanto amassava côdeas de pão sentado no escano da cozinha onde se defumavam as alheiras, o presunto e as morcelas; alto e forte como um embondeiro, derretia-se com os netos, jogava à bola com eles dentro de casa (talvez lembrando de seus tempos de guarda-redes); nunca o vi sair à rua sem chapéu, nem ir à missa; preferia os cavalos aos homens e dizia que as motas eram cavalos cegos, pois faziam tudo que as bestas que as montavam queriam sem refugar; foi ele, o Senhor Morgado da Aldeia dos Quatro Montes, que me contou a mãe das verdades dolorosas: “Há só dois tipos de homens: pregos e martelos”; a outra grande revelação, para a qual não estava ainda preparado, veio da Avó:
            ― Comunistas, o catano, o que eles são é COMODISTAS; não gostam de pegar na enxada e ir ganhar a jeira como toda a gente. Ala moleiro, que quem não trabuca, não manduca! Que me venham por cá esses emplosmeiros com as fantochadas da reforma agrária, a ver se não lhes meto o sacho nos cornipos!
Eles não sabem que o sonho
            É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer
            A aldeia, que mal e mal conta um milhar de viventes, é um peculiar universo em miniatura, relíquia do Portugal d’antanho; não se escuta aqui o ratatá da metralha como em Angola, quando muito, zurra um burro ao longe e outros replicam logo a seguir; a água potável, ainda vão as mulheres buscar à bica e trazem-na em cântaros sobre rodilhas na cabeça; o sentimento predominante dos aldeões é de apreensão, quando não de reprovação aberta, à pândega lúdico-política do país depois da Revolução de Abril; e principalmente quando se fala da temida reforma agrária ― disseminou-se a crença de que o cidadão possuidor de duas vacas, por exemplo, venha a ter uma delas confiscada pelo governo...
            ― És um labrego do caraças, ó Dez-pras-Duas, não vês que isso é o socialismo? O que nos vão engrampar é com o comunismo, em que o governo fica-te mas é com as duas vacas, pá!...
            O Dez-pras-Duas tinha os pés bem abertos, como ponteiros de relógio, em vez de paralelos como todo mundo, aliás, quase todos em Quatro Montes carregam uma alcunha oriunda de características físicas, morais ou de alguma anedota da pessoa; uma forma de a comunidade reafirmar seu poder, até mesmo sobre o Registo Civil e a vontade das famílias; assim, havia a Chóia, o Merujas, a Lailai, o Saltão, o Caga-na Saquita, o Choninhas, o Caga-no-Almude, o Zé-das-Migas, a Marianinha-do-Cabaz, o Amândio-Pé-de-Chibo, a Laura-dos-Pompons, o Quico Meleiro e o inacreditável... Putaria (!); efectivamente, os apodos não eram palavras como as outras, pois que a ninguém acontecia de pronunciar a nomeada do professor da primária com risotas ou ironias, e até mesmo às crianças era permitido usar a alcunha tremenda do Sô-Psor ― logo nós, que jamais nos ocorria de andar a dizer asneiras graúdas na frente dos mais velhos.
            O Menino não tinha alcunha, compartia o título do Avô (que vinha do tempo da guerra civil) no diminutivo: Morgadinho, dizia o Quico Melo, maluco da aldeia; mas então, no recreio da escola, a palavra lhe é dita, mais que isso, cuspida na cara pelo Armindo Moncoso: “Retornado”!; escusava legenda ou explicação, nem do complemento “de merda” precisava, estava tudo dito; ómessa, que culpa tinha eu de Portugal ter aumentado dez por cento da sua população em menos de um ano, ou de ter nascido português de segunda classe?, e o coitado do meu irmão, que não dormia de medo à noite e precisava que eu lhe contasse histórias, tinha culpa?; éramos sobreviventes de um desastre mental, tínhamos sido atropelados pela marcha insana da história com H maiúsculo ― e também pela história de um povo iludido pela vã glória de mandar.
            Tirei o cinto e comecei a rodá-lo acima da cabeça; era o combinado da nossa guerra dos botões: os “turras” giravam os cintos até se acertarem mutuamente, encurtada a distância, a peleja era na mão, no chute, no arranhão, na mordida, no cuspe, embolados no chão, como fosse; o importante era não fugir da luta, não amochar, alombar sem tugir nem mugir, porque senão, era humilhação para o resto da vida; o Menino provavelmente apanhou, já que era um lingrinhas sem a vocação de amachucar os outros, mas não tinha sido desonrado, que era o que importava; o estrago, porém, estava feito: agora sabia que não ia poder fingir que pertencia àquele mundo, nem, talvez, vir a pertencer a nenhum outro; entre tragédias maiores e menores à minha volta (“retornados” sem teto, pão ou parentes, traumatizados de guerra, um tio que perdera um braço), até que o meu drama era pequeno, mas, por outro lado, este meu pequeno drama era, e ainda é, tudo que tenho.
            Acontece que aos americanos e aos ingleses não lhes interessava ter uma Cuba européia e, assim como fizeram na Itália e na América do Sul, trataram de neutralizar os comunas lusos; a modos que resolveram pressionar a favor dos “retornados” e até lhes adoçaram a boca com rebuçados, afinal, eram o contingente mais anti-esquerda disponível; foi assim que o IARN, instituto de apoio ao retorno dos nacionais, começou a distribuir pelo país todo alimentos doados pela ONU; era uma festa em Quatro Montes: na Casa do Povo distribuía-se leite em pó, embutidos, chocolates (divinos), arroz, açúcar, cereais em flocos, farinha, tudo de qualidade infinitamente superior ao que conhecíamos; o irmão do Avô, tio que havia morado também em Angola, onde tivera um comércio no Cacuaco, também lá ia retirar seus víveres; era um tipo fiche com os miúdos, um contador de anedotas sujas no café e um belo rapioqueiro com as mulheres; andava sempre atrás do gado faldriqueiro, repetia a Avó.
            ― Ê pá, devagar com o andor, não me esbodeguem as caixas... é tudo atamancado às três pancadas nesta terra; olha só o que aqui vai, leiam: Ce-as-cás, le-os-lós... Corned beef; hahaha, isto é pro corno do Bife!
            Riram ao bom rir, porém, estava armada a maca: a lata de carne moída da ONU passou a ser a lata do Bife, ou melhor, do corno do Bife; que, evidentemente, não gostou nada quando soube da pilhéria; fosse por ser corno, ou ter sido, ou porque não lhe agradava que um explorador de pretos, um “retornado” ― ainda que pertencente a família local de certa fidalguia ― andasse a falar barato de gente honesta; o Bife agora andava de navalha à cinta e dizia a quem quisesse ouvir que ia fazer a barba à barriga do Tio-Avô; este, do seu lado, respondia que, se nunca tivera medo aos terroristas das colónias, não ia ter de um patego que não entendia um trocadilho; no fim de semana seguinte iam-se os dois encontrar numa feira de animais no Toural; o Avô estava mais calado que o costume, preocupado com o irmão naquela manhã ao atrelar a Carriça, o Menino ia com ele à feira, excitação e terror compunham a expectativa do desenlace.
            Que não houve, quer dizer, houve, mas foi pacífico; os dois homens puseram-se logo de acordo, se abraçaram e foram tomar uma carraspana na adega de um amigo; juntaram-se os dois à esquina a tocar a concertina e a dançar o solidó; o Avô ainda passou lá e o Menino os viu a tomar uma ginjinha da boa.
            ― Ó seu Teixeira, que isto não são modos de se falar de um cristão... terá esquecido o engaço?, veja que aqui em Portugal há modos, e cousa e tal, não é como lá na África, onde íeis à peida das pretas, mulatas e cabritas, e ficavam-se todos nas tintas...
            ― Ó Bife, deixa-te de lérias, pá. Sabes que não te chamei de corno a ti... ao fim e ao cabo, nesta aldeia o que não falta é disso. Também pudera! Não deixais haver cá uma casa-das-primas, dá no que dá: andam todos com todos, e já não se pode dizer quem é corno e quem não é; se queres saber, o padre ainda é o mais honesto... só tem uma que eu saiba. O ser humano é o mesmo em todo lado, não é Quatro Montes, ou a África, é o país: isto aqui é e sempre foi uma putaria do carago!

            As guerras são feitas com propaganda, exércitos, soldados, batalhas, bombas e tiros, mas quem as ganha são sempre os poetas; Agostinho Neto, que ganhou a guerra em Angola, era poeta, fraquito, mas era; o Menino descobriu, ouvindo a rádio naqueles anos loucos, a força irresistível da poesia musicada; ele descobriu que a verdadeira pátria não é sequer a língua, como dizia o poeta, mas a poesia; a verdadeira pátria não está nos hinos nacionais, essas xaropadas canalhas sempre a falar de vitórias antigas, dias de glória, pavilhões sagrados, canhões, sangue e nações valentes e imortais; num belo dia de outono, o menino descobriu o verdadeiro hino nacional português, uma canção que termina assim:
            Eles não sabem nem sonham
            Que o sonho comanda a vida
            E que sempre que o homem sonha
            O mundo pula e avança
            Como bola colorida
    Entre as mãos de uma criança

domingo, 5 de agosto de 2012

O corno do Bife (parte 3)




            O professor Mortimer e o capitão Blake, da Scotland Yard, tinham ido passar algumas semanas na encantadora Ilha de São Miguel, a Ilha Verde dos Açores; uma tradição muito antiga considera-a como um dos cumes submersos de Atlântida, misterioso continente desaparecido de que fala o grande filósofo Platão; o professor e o capitão, que não tira o cachimbo da boca nem para ir à casa de banho, vivem à procura do imprevisto e de novas aventuras, por isto logo se metem a explorar as gargantas e desfiladeiros selvagens das proximidades do vale vulcânico das Furnas, dando com a entrada de uma profunda caverna na região conhecida como Forno do Diabo; assim começava o enredo do “Enigma da Atlântida” de Edgar P. Jacobs, história aos quadradinhos que tinha na capa um enxame de naves parecidas a mosquitos encarnados a fugir da Terra; assim me sentia eu, um fugitivo do planeta azul, um náufrago à deriva no Atlântico, assim passei a viver pelo resto da vida: sempre em fuga, sempre pronto a abandonar tudo e todos a qualquer hora e seguir adiante; uma vez perdido “o” lar, percebe-se que sobre a terra não existe lar, apenas hospedagem; sem pouso, nem repouso, só estadia.
            Pousamos em Portugal, aliás, no Porto; “segue sempre por bom caminho”, como dizia o Aniki Bóbó.
            Grândola, vila morena
            Terra da fraternidade
            O povo é quem mais ordena
            Dentro de ti, ó cidade
            A mui nobre, leal e invicta cidade do Porto; aqui moram tios, primos, amigos, parentes e a Avó paterna; o Menino se lembra de quando a mamã do Pai veio visitá-los em Angola e foi-lhe servido mamão: “se não precisei até hoje da papaia, não há de ser agora que a hei de experimentar”; chamam a Avó de mulher-de-armas, pois criou quatro filhos sozinha na dureza do pós-guerra depois de perder o marido para a tísica (e também, dizem, para a boêmia), ela é a senhora Directora de uma escola para meninas que abriu naquele ano para os rapazes; como o ano lectivo ainda não terminara, teria de cumprir um mês e meio antes das férias; no intervalo grande do colégio, enquanto abro a merenda, olho em volta e não vejo mais do que três gajos em todo o pátio ― jogar bola está descartado, paciência, vamos pular corda e brincar ao passa-anel pela primeira vez na vida; durante as aulas, o Menino acumula bilhetes sem assinatura contendo declarações das rapariguitas ― fartura inédita, nunca antes, nunca depois.
            ― Quero, posso e mando! ― o lema da Avó é conciso em cada palavra, verdadeiro em todas as sílabas, adamantino letra a letra; teria existido alguém capaz de a ter feito realmente abaixar a grimpa?, se calhar, nem o Marcelo Caetano, nem o próprio Salazar.
            Este último era um nome que carregava medo e fascínio e raiva e saudade; apenas um nome, mas que nunca saltava sem adjetivos da boca dos adultos: “o fascista do Salazar”, “assassino do Humberto Delgado”, ou, “respeito havia nos tempos do Salazar, não era esta pouca-vergonha”; com efeito, a metrópole mudara muito, os ventos sopravam uma brisa irresponsável, os barómetros de casinha (moça, bom tempo; rapaz, mau tempo) registavam o ar menos opresso, as passeatas a se formar espontaneamente nas esquinas, as tertúlias a brotar como cogumelos nas tascas, as cantorias, as minissaias, as bolsas de ráfia, as calças de ganga apertadas nos tomates, os saltos plataforma ― o Porto, cidade murada de ruas apertadas, de casas espremidas, de prédios unidos à ilharga e passeios estreitos, a foz bravia dos heróis do mar, capital primeira a que os mouros nunca deitaram a unha, tudo como que se tinha banhado de um colorido feérico e musical; aspirávamos inebriados o perfume efémero da liberdade, pois que ainda era tempo de cravos (“rosas em janeiro, minha rainha?”).
            Em cada esquina um amigo
            Em cada rosto igualdade
            Grândola, vila morena
            Terra da fraternidade
            Os meninos, porém, vão ficar com a família da Mãe no norte, lá na aldeia; toca a andar para Trás-os-Montes, Serra do Marão acima, e para cá do Marão, já diz o adágio, mandam os que cá estão; cá neva, mas não se esquia; cá também se fala muito de política e de muitas siglas, mas estas não parecem tão ameaçadoras como as que se ouvia em Luanda: MFA, PPD, CDS, PS, PCP, era o berda-merdas do Bochechas pra cá, o filho-da-côrta do Cunhal pra lá; tudo que consegui saber ao certo é que o Álvaro Cunhal tinha metido nos chavelhos de nos vender a Moscovo (e, Deus seja louvado, não conseguiu), quanto ao Bochechas, consta que nunca tomou a sopinha que a mamã dele tanto pedia; parecia-me ter atravessado o espelho da Alice: a metrópole era pequenina, a colónia (província ultramarina, dizia o outro), grande; Portugal era alegre e festivo, de Angola, só chegavam as notícias tristes dos combates; lá, havia uma guerra por procuração (americanos e sul-africanos do FNLA e da UNITA, contra russos e cubanos do MPLA), enquanto aqui, quase se podia apalpar a esperança; cá, construía-se uma democracia, lá, meus pais, numa cidade sitiada.
            

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O corno do Bife (parte 2)



            ― Ê pá, toca a andar, pá. Daqui pra diante é só sarilho, não viste o que fez o Corujo? Mandou embarcar quase que a empresa toda pro Algarve, aquele é que é fino!, dizem que a camionete Scania que mandou pra Lisboa não tinha nem a primeira prestação paga... E a mulher, então?, levou cosidas à fatiota e à anágua diamantes a não poder mais. Que ficas tu aqui a fazer, criatura? ― coisa rara, o Fábio falava a sério, mais um amigo a avisar inutilmente o Pai; desta vez nem contou a costumeira anedota do conhecido comum cuja mulher metia-se com Luanda inteira, e que o médico lhe havia assegurado tratar-se de uma psicopata: “pois sim, psicopata ou não, pra mim o que ela é, é uma grandessíssima psicoputa!”; riam-se sempre do fecho da anedota, mas nem ele a contou, nem se ouviam muitas risadas ultimamente.
            ― Convença o seu marido a sair o quanto antes, que o que ele tem são ilusões; mexa as quinamas menina, isto vai mas é andar pra trás. Construir um país, pois sim!, tinha a sua graça fazer um país a sério com estes matumbos... não vê como é que eles vivem sem lei nem roque, como os sobas nas cubatas fazem o que querem? As pretas nem usam cuecas, entregam-se a qualquer um, fazem a ginga-ginga às vezes a vários de uma fiada; os filhos depois, está-se a ver, uma zorraria dos infernos... não vai ter como criar os pequerruchos num lugar assim ― Eva, mulher do Fábio, também sente que é hora de partir; aquela vida de almoços na Messe, cervejas na Cuca, jantares no Mandarim e fins de semana a comer santolas e lagostas no Mussulo tinha acabado quando os combates entre os candidatos a libertadores de Angola chegaram às franjas das cidades; o que se via em Luanda era uns poucos soldados portugueses pelas ruas com as fardas desabotoadas, lafranhudos como o Che Guevara, a tresandar a cerveja e liamba.
            Nos primeiros filmes de que o Menino se lembra na vida já havia esta mesma falta de situação, o mesmo deslugar, o exílio secular da família e da raça; sim, porque agora ele tem não só uma cor, mas também uma raça: a raça errada, na hora errada e no país errado ― que agora jura que vai dar certo ―; é isto, vai ser como na história da leoa Elza: passar a vida se adaptando à savana que sempre foi sua, devolver a natureza ao bicho para readquirir alguma humanidade, porque os verbos do homem são desnaturar, desmatar, antinaturar; porque o bicho-homem é uma ausência, e não adianta subir as montanhas de Malanje: ainda quer mais de altura; pode atravessar o deserto de Namibe, e ainda vai lhe faltar solidão; pode contar cada grão de areia que o rio Kuanza lançou à Restinga, continuará impaciente; o animal gente agoniza muitas mortes por sofrer cada despedida, por sentir fome do que não existe, e é por isso que nunca há de estar em casa no mundo, ou fora dele; o Menino já conhece a metrópole (um lugar em preto e branco na sua memória), lá é frio, escuro e come-se o tempo todo, lá não é a sua casa, mas já foi dos Pais; será que vai poder andar por baixo das pontes do Porto, e morar numa rua daquelas do Aniki Bóbó?
            Nem todos fugiam, no entanto, muitos ficavam por cobiça, mangonha, medo de mudar e até falta de onde ir; mas também existia convicção: o Primo ficaria a trabalhar numa rádio revolucionária; os pais dele venderam tudo que tinham no Hucubal, um lugar bravio onde havia gorilas, corsas, panteras e tribos selvagens que caçavam o leão à catana e à flechada; vejo-o sentar-se na nossa sala, passar a mão sobre o naperon bordado que cobre o braço do maple, e anunciar aos incrédulos Pais (a Mãe é prima-irmã dele) a novidade.
            ― Nós não estamos a confundir liberdade com libertinagem... cumprir Abril é descolonizar, democratizar e desenvolver. Há uma grande nação multiétnica a nascer aqui, mas uma de verdade, não o império transcontinental do fascista do Salazar; uma nação que o povo oprimido por cinco séculos de jugo há de erguer com a dignidade da sua luta. Bem sei que achais isto loucura, pode ser, há momentos em que só pela boca dos loucos se ouvem as verdades; as revoluções são esses tempos loucos, perigosos, mas é um privilégio de poucos estar a viver, a realizar, uma revolução de verdade.
            A hora de partir se aproxima, o silêncio aumenta mais, se é que isto é possível; a aletria a sobrar no prato; o Pai a insistir para que a Mãe não lave a louça, afinal, a mulher-a-dias não está de saída da África, ele pede a ela com maus modos que pare de se comportar como se nada estivesse acontecendo; o Pai fica, leva-nos só até ao aeroporto, a Mãe volta para ele assim que nos instalar na metrópole; nada seria igual ao que tinha sido antes, ao que ainda era agora e já estava deixando de ser, sem que ao menos pudéssemos evitar; o Menino tenta ainda, coloca alma sobre as paisagens que aponta, sua memória quer aprisionar os objetos, tocar os cheiros, construir um panteão de máscaras de piedade e terror; mas os instantes fogem, escapam com a força inevitável do rio-tempo, e ensinam ao Menino que a morte é anterior a si mesma e que as crianças são como os profetas: enxergam o óbvio; enfim, embarcávamos para a Catralhamba num vôo noturno da TAP.



(fotos: Matthias Offodile)