METALEIRO & DOUTOR JORDÃO
23:00
O
doutor Jordão toma o seu conhaque. Aguarda a chegada iminente de importantes
convidados para uma festa privativa. Secreta, seria o adjetivo mais adequado
para a cerimônia da qual era anfitrião naquela noite. O vulgo não tem como
entender as coisas tais quais são, não concebe que há uma dialética, um rigor
matemático, nos rituais do dogma. Tudo que a plebe pode conhecer da religião é
kerigma, manifestação exterior, a parte mais rasa e evidente da fé.
Ele
imagina vividamente o Sumo Sacerdote (Kohen Gadol) penetrando no espaço mais
sagrado do tabernáculo no Templo de Salomão ― é o único que pode fazê-lo ―,
seus passos são curtos, trêmulos de emoção. Só uma vez por ano lhe é permitido
adentrar o Santo dos Santos (Kodesh haKodashim) e contemplar a Arca da Aliança:
no dia em que todos os pecados são perdoados, o Yom Kipur. Aos pés do sacerdote
estão atadas grossas cordas.
Este,
o detalhe revelador. Reza a tradição que as cordas servem para que o pontífice
seja arrastado para fora caso lhe sobrevenha um ataque de emoção ao pronunciar
o Tetragrammaton, as consoantes do nome do Altíssimo (YHWH). Um estratagema
para evitar a profanação. Porém, a emenda desvela o soneto: a incúria humana
age sempre depois do leite derramado. Antes que pensassem nas cordas, pelo
menos um dos sumos sacerdotes teve de ser resgatado por pés e mãos impuros. Elevar
e conspurcar, adorar e macular, faces indissolúveis do sagrado.
Levanta-se,
vai ao salão conferir os preparativos para o ponto alto do folguedo: o concurso.
O interior da mansão recende a incenso e flores, passando uma impressão de
severa suntuosidade em meio ao mobiliário de mogno escuro, aos arquivos, candelabros,
móveis e câmaras repletas de antigüidades, bem como dezenas de retábulos, oratórios,
imagens e turíbulos. A sala principal da casa é uma reprodução da antiga capela
particular dos papas na basílica de São João em Latrão, o Sancta Sanctorum dos
católicos.
O
chão e o teto deste salão-capela são revestidos em mármore carrara, as paredes
altas abrigam as loggias com retratos de santos e da Virgem, reproduzindo
fielmente os afrescos medievais na parte alta com os martírios de São Lourenço
e São Nicolau, a lapidação de Santo Estéfano e a decapitação de Santa Inês. No
altar, uma antiqüíssima imagem do Redentor e réplicas das maiores relíquias
cristãs: um assento da última ceia, sandálias dos apóstolos, a coroa de
espinhos, o bastão que açoitou o Cristo, as cabeças de Pedro e Paulo e o
prepúcio de Jesus Menino.
Os
convidados chegam. Destacados membros da Cúria metropolitana, decanos de
colégios, sanatórios e irmãos de caridade, prelados de todos os níveis da
hierarquia eclesiástica, chegavam encapuzados em longas vestes escuras e trocavam
com o anfitrião a senha e a contra-senha da reunião.
―
Quais são as seis questões evidenciais que determinam as ações humanas?
― Quis, quid,
quomodo, ubi, quando, cur (quem, o que, como, onde, quando, por que)?
Os mais idosos
são levados a um vestíbulo para retocar o figurino, enquanto os mais jovens, em
sua maioria seminaristas e diáconos, sentam-se em cadeiras de espaldar alto em
nogueira trabalhada. Numa inversão da pirâmide do poder, hoje serão eles os
juízes de uma diversão inocente: os altos dignitários montados de drag queen se
exibindo para os mais belos noviços dos seminários. O desfile das tiazonas mais
lembrava um baile da saudade de Hollywood: Judy Garland, Teda Bara, Carmen
Miranda, Scarlett O’Hara, Liza Minelli, Sofia Loren, Luz Del Fuego, Anita
Ekberg... Um dos mancebos se levantou da sua cadeira e cobriu com um pano o crucifixo
da parede ― não convinha que Ele visse aquilo.
Doutor Jordão,
vestindo uma dalmática púrpura, alva e estola brancas, é chamado às pressas.
Uns sujeitos estranhos estavam na porta dizendo que dali não sairiam sem falar
com ele.
Mas, então, os imbecis da organizada
finalmente chegaram... Que belo senso de pontualidade! Tinha marcado com eles
às seis. Como é que conseguiram passar na portaria? Só entra neste condomínio
quem tem o nome na... Ai, caramba, esqueci de tirar o nome deles da lista!
Tanta coisa pra fazer, dá nisso... E agora? Que se danem, vou mandar os
seguranças botarem eles pra correr.
― Aí mano,
daqui nóis num sai enquanto o doutorzinho aí não der as cara, tá ligado? ―
Marquinhos Paraná fazia o valente, sempre escudado atrás do gigante Quilo.
― É-é i-i-isso
aí, me-melhor cha-cha-chamar o ba-bacana se-senão... ― Calunga metia sua colher
gaguejante na discussão.
― Senão o quê?
Metaleiro
avaliou a situação: em volta dos seis se aglomeravam uns quinze guarda-roupas,
alguns deles já coçando o berro com a mão dentro do terno. Capitulou.
― Aí galera,
vamo desacelerar, os cara tão maquinado, nem adianta se crescer pra cima desses
otário... Vamo nessa!
O problema, no
entanto, permanecia: como manter o ânimo da tropa depois de um dia em que nada
tinha dado certo para eles, e ainda por cima não tinham grana para financiar
uma farra em plena festa de fim de ano. Reuniram-se em volta do Monza.
Metaleiro precisava de uma boa idéia, urgente.
― Aí
Metaleiro, nóis tá aqui dentro num tá? Então, vamo dar um rolê no condomínio
dos bacana, se bobear, tem alguma casa aí pra nóis fazer... ―como sempre, o
Velho se saía com uma boa pedida.
Um comentário:
Coisa de louco!
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