quarta-feira, 22 de maio de 2013

O último fim de mundo do milênio (X)




METALEIRO & DOUTOR JORDÃO 23:00

            O doutor Jordão toma o seu conhaque. Aguarda a chegada iminente de importantes convidados para uma festa privativa. Secreta, seria o adjetivo mais adequado para a cerimônia da qual era anfitrião naquela noite. O vulgo não tem como entender as coisas tais quais são, não concebe que há uma dialética, um rigor matemático, nos rituais do dogma. Tudo que a plebe pode conhecer da religião é kerigma, manifestação exterior, a parte mais rasa e evidente da fé.
            Ele imagina vividamente o Sumo Sacerdote (Kohen Gadol) penetrando no espaço mais sagrado do tabernáculo no Templo de Salomão ― é o único que pode fazê-lo ―, seus passos são curtos, trêmulos de emoção. Só uma vez por ano lhe é permitido adentrar o Santo dos Santos (Kodesh haKodashim) e contemplar a Arca da Aliança: no dia em que todos os pecados são perdoados, o Yom Kipur. Aos pés do sacerdote estão atadas grossas cordas.
            Este, o detalhe revelador. Reza a tradição que as cordas servem para que o pontífice seja arrastado para fora caso lhe sobrevenha um ataque de emoção ao pronunciar o Tetragrammaton, as consoantes do nome do Altíssimo (YHWH). Um estratagema para evitar a profanação. Porém, a emenda desvela o soneto: a incúria humana age sempre depois do leite derramado. Antes que pensassem nas cordas, pelo menos um dos sumos sacerdotes teve de ser resgatado por pés e mãos impuros. Elevar e conspurcar, adorar e macular, faces indissolúveis do sagrado.
            Levanta-se, vai ao salão conferir os preparativos para o ponto alto do folguedo: o concurso. O interior da mansão recende a incenso e flores, passando uma impressão de severa suntuosidade em meio ao mobiliário de mogno escuro, aos arquivos, candelabros, móveis e câmaras repletas de antigüidades, bem como dezenas de retábulos, oratórios, imagens e turíbulos. A sala principal da casa é uma reprodução da antiga capela particular dos papas na basílica de São João em Latrão, o Sancta Sanctorum dos católicos.
            O chão e o teto deste salão-capela são revestidos em mármore carrara, as paredes altas abrigam as loggias com retratos de santos e da Virgem, reproduzindo fielmente os afrescos medievais na parte alta com os martírios de São Lourenço e São Nicolau, a lapidação de Santo Estéfano e a decapitação de Santa Inês. No altar, uma antiqüíssima imagem do Redentor e réplicas das maiores relíquias cristãs: um assento da última ceia, sandálias dos apóstolos, a coroa de espinhos, o bastão que açoitou o Cristo, as cabeças de Pedro e Paulo e o prepúcio de Jesus Menino.
            Os convidados chegam. Destacados membros da Cúria metropolitana, decanos de colégios, sanatórios e irmãos de caridade, prelados de todos os níveis da hierarquia eclesiástica, chegavam encapuzados em longas vestes escuras e trocavam com o anfitrião a senha e a contra-senha da reunião.
            ― Quais são as seis questões evidenciais que determinam as ações humanas?
― Quis, quid, quomodo, ubi, quando, cur (quem, o que, como, onde, quando, por que)?
Os mais idosos são levados a um vestíbulo para retocar o figurino, enquanto os mais jovens, em sua maioria seminaristas e diáconos, sentam-se em cadeiras de espaldar alto em nogueira trabalhada. Numa inversão da pirâmide do poder, hoje serão eles os juízes de uma diversão inocente: os altos dignitários montados de drag queen se exibindo para os mais belos noviços dos seminários. O desfile das tiazonas mais lembrava um baile da saudade de Hollywood: Judy Garland, Teda Bara, Carmen Miranda, Scarlett O’Hara, Liza Minelli, Sofia Loren, Luz Del Fuego, Anita Ekberg... Um dos mancebos se levantou da sua cadeira e cobriu com um pano o crucifixo da parede ― não convinha que Ele visse aquilo.
Doutor Jordão, vestindo uma dalmática púrpura, alva e estola brancas, é chamado às pressas. Uns sujeitos estranhos estavam na porta dizendo que dali não sairiam sem falar com ele.
Mas, então, os imbecis da organizada finalmente chegaram... Que belo senso de pontualidade! Tinha marcado com eles às seis. Como é que conseguiram passar na portaria? Só entra neste condomínio quem tem o nome na... Ai, caramba, esqueci de tirar o nome deles da lista! Tanta coisa pra fazer, dá nisso... E agora? Que se danem, vou mandar os seguranças botarem eles pra correr.
― Aí mano, daqui nóis num sai enquanto o doutorzinho aí não der as cara, tá ligado? ― Marquinhos Paraná fazia o valente, sempre escudado atrás do gigante Quilo.
― É-é i-i-isso aí, me-melhor cha-cha-chamar o ba-bacana se-senão... ― Calunga metia sua colher gaguejante na discussão.
― Senão o quê?
Metaleiro avaliou a situação: em volta dos seis se aglomeravam uns quinze guarda-roupas, alguns deles já coçando o berro com a mão dentro do terno. Capitulou.
― Aí galera, vamo desacelerar, os cara tão maquinado, nem adianta se crescer pra cima desses otário... Vamo nessa!
O problema, no entanto, permanecia: como manter o ânimo da tropa depois de um dia em que nada tinha dado certo para eles, e ainda por cima não tinham grana para financiar uma farra em plena festa de fim de ano. Reuniram-se em volta do Monza. Metaleiro precisava de uma boa idéia, urgente.
― Aí Metaleiro, nóis tá aqui dentro num tá? Então, vamo dar um rolê no condomínio dos bacana, se bobear, tem alguma casa aí pra nóis fazer... ―como sempre, o Velho se saía com uma boa pedida.