Quando menina,
tinha medo do monstro que vivia embaixo da cama.
Era o medo em
estado bruto, sem cara, sem nome, sem nenhuma razão. Não imaginava como ele seria,
nem o que poderia fazer comigo. Sabia apenas que bastava nascer o dia para o
terror ir embora.
Agora sei mais.
Na verdade, são
muitos os monstros, e assisto às barbaridades que fazem com o meu corpo como se
tudo estivesse acontecendo em outra pessoa.
Hoje sou uma
mulher com medo de perder o seu homem. Por isso faço qualquer coisa que me
manda fazer, por isso estou na garupa da moto dele indo para um motel imundo
onde vinte criaturas medonhas vão passar a noite comigo.
Agora, o dia
vem e o terror não vai embora.
― Você não
gosta de mim, Fidencio. Não de verdade.
― Por quê?
― Se gostasse
mesmo de mim, não me dividia com outros homens...
― Quantas
vezes vamos voltar a esse assunto? Nós vamos ganhar um bom dinheiro com os avá yvýpe, e daí a gente vai viver em
outro lugar melhor. Nadi, não podemos desistir agora, estamos quase conseguindo
juntar o preço da liberdade. Liberdade, Nadi, a melhor coisa do mundo!
Fidencio quer
morar em Copacabana, bem junto à praia. Lá não precisaremos lembrar, porque o
Brasil é um lugar feliz e sem passado; com dinheiro, viveremos como flechas,
sempre em frente, rumo à felicidade e ao esquecimento. Porque a dor é um rio de
má água correndo para trás.
― Não sei.
Eles dão medo, não temem Deus nem Tupã, vivem na escuridão do inferno, ninguém
sabe direito onde. Achava que era tudo mentira do povo, histórias de Teju Jaguá, mas são de verdade. Não
gosto deles, quem conhece tem nojo. Trazem a sombra na alma, fazem tudo ao
contrário, igual Japeusá, pra
confundir as pessoas e tirar vantagem delas.
― Eles trazem
é o bolso cheio, isso sim. Chegamos.
Descemos. Ele
acende um cigarro, vai até a portaria e fala com alguém atrás de um guichê.
Volta com uma chave na mão.
Nunca entra,
me deixa sempre na porta dos muquifos e fica lá, vigiando. Talvez não suporte
ver o que se passa lá dentro. Talvez não consiga imaginar que aquilo está
acontecendo com outra pessoa.
― Quarto
quinze, segundo corredor.
― Você não
pode vir comigo, só uma vez?...
― Escuta,
esquece essas caiporices de índio, nós tamo nessa pra se dar bem. Sair deste
buraco. Te espero aqui, tá bom?
A estrada do
perdão é asfaltada com os cacos das dores passadas. Nas poucas vezes quando sonho,
estou andando num chão lodoso como um passado, e todos os habitantes do
manicômio sem cor da minha vida entoam uma canção de fantasmas, uma melodia
monótona de vergonha e culpa.
― Ah, Mädchen, nós a aguardávamos ansiosos...
por favor, entre.
Os homenzinhos
sempre começam com uma conversa gentil de gente educada, depois, vão ficando
agitados, violentos, e só falam naquela língua chiada e venenosa deles. É como
se esquecessem de mim, de tão ocupados comigo. Mas eu não esqueço dos pássaros
mortos na minha mochila de escola, nem do dia em que o cachorro da casa
apareceu degolado.
― Isso, tire a
roupa toda, mostre esse seu corpo maravilhoso, nossos convidados querem que
desfile antes de fazer os lances...
Estavam muito
excitados e mais agressivos do que o costume. Fiz sexo oral em vários deles,
alguns me introduziam aparelhos. Até que entendi: era o leilão de uma escrava
sexual. Algum demônio ia me comprar e levar pras cavernas!
Fiquei
bastante machucada. Pedi a eles a única coisa que me dá conforto após horas de
estupro: uma barra de sabão pra me lavar. Na parte interna da embalagem do
sabonete escrevi usando o lápis da maquiagem: “Seqüestrada, vão me levar Serra
de Maracayú”.