sábado, 4 de janeiro de 2014

Leviathan melanophyllus (#4)



 ― Então, Ernaldo, quer dizer que você virou babá de gente grande? Hahaha, gente grande, hehehe, desculpem, às vezes me dá dessas... hahaha!
Nenhum deles riu. Ernaldo coçou a nuca ao tirar o capacete, tentou remediar o mal estar. Não que adiantasse grande coisa quando se tratava de Walter Blanco, o Dr. W. Completamente sem pêlos, exceção feita ao cavanhaque, envergando um jaleco imundo, sandálias idem de couro trançado, fedendo a amoníaco, aquele era o químico responsável pelo laboratório top do pedaço. “Tipo do cara que as pessoas só suportam porque precisam”, Dárius lembrou do perfil sucinto traçado pelo chefe a caminho do laboratório.
― Zoa não, doutor, o rapaz aí tem couro de jacaré, soldado dos bons...
― Soldado, é? Hum, sempre esqueço que vocês lá da Colméia gostam de brincar de casinha: governador, soldados, agricultores, profetas, administradores, uma beleza de comunidade... regrinhas, leis, prisão, expulsões, ostracismo e tutti quanti do receituário habitual de República-Utopia.
― Pois é, a gente dá um duro pra se organizar. Devia fazer o mesmo, deixamos nossas motoristas lá embaixo soterradas por um exército de baratas. Gastar mais em limpeza seria bom...
― Ora, ora, o que são as peludinhas voadoras perto de homens tão bem treinados? Se conheço bem as moças que te acompanham, não vão dar piti por causa de uns poucos artrópodes.
― Uns poucos?! Esse cara não sai desta toca há quantos anos? ― acachapado pela profusão de tubos, contêiners, bombas, centrífugas, freezers, frascos, barris, ampolas, retornas e fornos, Dárius principiava a se dar conta da náusea, efeito das fumigações nauseantes do que parecia ser um alambique de xixi do capeta.
Além dos equipamentos, pouco ali lembrava uma refinaria: quem contemplasse a balbúrdia das bancadas decrépitas daquele loft, os gritos e tropeções da malta frenética de assistentes maltrapilhos, dificilmente suspeitaria que um trabalho minimamente coordenado estivesse em curso naquele pardieiro. O famoso Galpão nem mesmo era um galpão, mas um edifício de quatro pisos. Apenas os dois andares superiores eram utilizados, no térreo e no mezzanino vigia um comodato simbiótico com as baratas e os ratos.
― Brejeiro, né, soldado? Dizer que isto já foi uma fábrica de anjinhos...
― Hã?! Que porra...?
― Uma clínica de abortos. Você não sofre demasiado da inteligência, hem rapaz? Demora pra pegar... tá no ofício certo, não força o miolo à toa. Homens de ação só pensam quando agem, parados, não valem nada.
― E você, professor, pensa muito antes de ser escroto com alguém?
― Ahá, bravo Ernaldo, finalmente você me trouxe alguém capaz de falar ― Dr. W tirou os óculos de armação quadrada e fixou Dárius com interesse ― Saiba que aqui se produzem vacinas, remédios, fertilizantes, explosivos, e também a jóia da coroa, a mercadoria que vocês necessitam como o ar que respiram: alucinógenos pra suportar o autoengano. Escroto, você disse? Esteja certo disto, nada é mais escroto do que a vida de um homem inteligente nos períodos trevosos da barbárie.
― Blanco, por favor, confira a nossa a mercadoria e dê o seu ok pra podermos fechar o escambo. Temos uma descida complicada à nossa espera com as mochilas cheias ― Ernaldo apresentava papéis e faturas na esperança de desviar o assunto.
― Cê tem bronca de soldados, né doutor? Devia mesmo era contratar alguns seguranças pr’esta sua birosca, tá criando mais bicho que esgoto.
― Inutilidade cara, rapaz. Isto é negócio...
― Belo negócio o seu, sintetizar drogas!
― Bah, um dos comércios mais antigos da humanidade. Além do quê, não preciso de bedel: os bicharocos têm medo do cheiro deste lugar.
― Hahaha, medo?, pergunta pras ratazana lá de baixo, fio...
― Tá rindo de quê, meganha? Meu business é sério, não engano ninguém, não: quem tá comigo, tá pela grana. Cansou? Cai fora, vai curtir a vida com dinheiro no bolso. Ih, Naldo, acho que dei com a língua nos dentes de novo...
― Nunca falta esse seu número, certo Walter? Se prepare Dárius, agora vem a parte em que ele fala sobre todos os defeitos da Colônia.
― Pois é meninão, pela tua cara, parece que ninguém te contou sobre esse “detalhe” da vida adulta: o dinheiro ainda existe, e ainda é a mola que dá corda na máquina do mundo. Aposto que também se “esqueceram” de falar sobre a Ilha do Prazer, do Círculo, do McSweeney’s e de todo o resto, não foi? A vida é muito mais do que trabalhar pela grandeza dos ideais da Colméia... você é jovem, tá esperando o quê? Que bonita coisa sustentar os privilégios duma casta de representantes do vazio! Olha ali ― Dr. W apontou para o embrulho que dois ajudantes acabavam de depositar no chão. ― Acha mesmo que dá pra trocar esse tanto de meta da melhor qualidade pela comidinha da sua granja? Nosso escambo principal é money, bufunfa, moeda sonante, esse o peso artificial que acerta todas as balanças... se da mochila do teu capitão não sair o ouro que me devem, nego, necas de pilulinhas pra embalar os festivais do socialismo hippie da tua tribo. Colônia Cecília, ainda tiveram o desplante de homenagear os libertários do passado... O tempora o mores!
― Caramba, Blanco, só porque você tem esse câncer incurável não tem o direito de... Dárius, a gente que tá nas ruas, vive uma outra realidade, você sabe que algumas informações são...
― Subtraídas. É isso que cê ia dizer? Não, claro que não, você já até tá falando como eles, Ernaldo... um dia desses você se descobre um belo de um burocrata, no seu posto importante de back office, mentindo pra alienados que não querem ouvir a verdade. Ah, sim, vocês são muito estritos lá na Colm... na Colônia, vocês põem criminosos na rua sem armas. O que isso significa soldado? Seja sincero.
― O Ernaldo falou tudo, se organizar não é nenhum pecado em tempos tão perigosos como estes, há várias comunidades como a nossa... Você não é o chefe desta bagaça? Vocês não têm leis aqui?
― Temos uma lei só: o mercado. Se pagam melhor fora, o sujeito vaza. Sem ramelagem, sem choro, nem ranger de dentes. Mando sobre aquilo que entendo, química; sobre o resto, quem pode legislar?, cada um sabe o que é melhor ou pior pra sua vida. O advento do Leviathan foi uma catástrofe natural com o auxílio luxuoso da incúria humana, não um castigo divino.
― Você sabe por que ficamos assim, pequenos?...
― Mocinho, na ciência, chegamos no máximo aos “comos”, os “porquês” ficam na área restrita ocupada pelos seus marqueteiros e místicos. Hahaha! Tudo que sei é que a epidemia começou a se espalhar a partir de Three Miles Island, Fukushima e Chernobyl... o caso mais bem documentado é o de Chernobyl, o maior evento nuclear da história, equivalente à explosão de quatrocentas bombas de Hiroshima: décadas depois de ter sido selado com toneladas de chumbo e concreto, numa inspeção de rotina com câmera-robô, descobriu-se uma mancha escura crescendo nas paredes do reator quatro. Nada menos que trinta e sete espécies de fungos mutantes sobreviviam num lugar onde não poderia haver vida pelos próximos novecentos anos! De alguma maneira, o Clodosporium sphaerospermum e o Penicillium hirsutus aprenderam a usar a radiação atômica e o pigmento melanina como as plantas usam a clorofila e a radiação solar pra produzir energia. Eles descobriram a radiossíntese. Em humanos, estes fungos provocaram alterações no DNA, reduzindo a humanidade a criaturinhas albinas com quinze centímetros de altura. E assim chegamos a esta situação: indefesos, isolados em bunkers, dirigindo carrinhos de brinquedo, usando armas improvisadas contra o novo predador do topo da cadeia alimentar: o gato doméstico.


Um comentário:

Anônimo disse...

Essa dos fungos mutantes vivendo por radiosíntese foi uma bela sacada!
Sib