Recado dado,
dica anotada.
Um alto morro
separado de outros derredor. É o lugar onde ficava antigamente o bairro
operário da companhia de papel, agora de todo abandonado, sem que haja dele
melhor memória que alguns destroços dos edifícios contíguos à estação
desativada do trem da Sorocabana. Alguns casebres levantados ao léu na sua
desolação, outros em pedaços ladeira abaixo, de mistura com ervas e tojo e
pedraria lavada, e em seguida fileiras de casas de alvenaria onde pobres e
remediados se dão à lavoura miúda e criação de galinhas e marrecos.
Dona Nelma, a
médium, mora no final da rua numa casa de muro baixo, caiada de azul com
requadros brancos e em cuja platibanda se vê uma data emoldurada: 1928. O
cheiro dos gatos é perceptível a dezenas de metros do portão, mas a quantidade
deles no interior da casa, no jardim, espandongados nas janelas, sobre os
móveis, deitados ao sol ou nas árvores, impressionam a todos que entram para se
consultar. Ex-atriz de novelas da televisão, Nelma recebe os clientes com hora
marcada na edícula da casa, um agregado insólito de puxadinhos que ameaça
desaparecer sob a proliferação de um cipoal desbordante de mato a crescer
livremente pelo terreno sem cercas.
Sentada numa
cadeira dobrável de boteco, Alda aceita o chá de erva cidreira que uma
assistente transex oferece numa bandeja. Anna tinha ido fumar um cigarro lá
fora, deixando-a sozinha com as suas dúvidas na sala de espera da grande
sensitiva. A maioria dos consulentes vinha em busca de mensagens de parentes
falecidos, filhos inconformados com a orfandade, viúvas sem consolo, diálogos
interrompidos, todos ali ansiavam o mesmo ungüento da alma, o mesmo lenitivo
para a ausência: contato.
Perdidas no
caminho, ela no volante e a co-pilota de olho nas rotas do waze, também tinham
perdido a hora: agora precisaria esperar por um encaixe nos horários do fim da
tarde. Tome palavras cruzadas, chazinhos e cigarros.
― Aldinha, por
que você não gravou a música que te mandei?
― Era sua
mesmo? “Eu leio o céu/que é você/eu leio a mão/ no seu seio/e eu sou o véu...”
― “... e o céu
é você. Porque o céu é um ser/um prisma do afeto/e o fim é o feto/e o ventre é
o tato...” E então, não gostou?
Sentiu uma
falange de pêlos se levantando ao longo de toda a espinha. A voz, a marra, as
inflexões e as mumunhas, tal e qual, era o jeito do Itamar Assumpção! Pra não
dizer cuspido e escarrado, diria esculpido em Carrara. Nunca
tinha visto aquilo, nem bem pisara na saletinha penumbrosa cheirando a mofo e
gatos, mal e mal iluminada por um lustre tiffany com pedaços do vitral
faltando, e a médium já tinha incorporado. Mas assim tinha sido sempre entre
eles dois, papo reto, falando na bucha sobre tudo e qualquer coisa, o que se
pode e o que nunca se deve falar.
― É que... é
que, bem, não parecia muito coisa sua, cê sabe, melô chiclete, não tinha nem
tempo composto... Como é que eu ia saber ao certo?
― Ao certo,
ninguém sabe nada. Dureza mandar canção através de nego que não saca tchongas
de música, quando o cavalo é pangaré não tem cavaleiro que adiante. E que porra
é esta de mesa branca?, eu sou preto Alda, Pretobrás!
― Foi o jeito,
não tem internet com o lado daí. Não brigue, não negue, me abrigue...
― Mesmo que
mal eu diga, entregue-me mel. Hahahaha!
― Você
continua o mesmo. Pensei que a eternidade ia sossegar teu facho, Beleléu.
― Uma ova, cê acha
que isto aqui é um domingo no parque, sossego e calma? Também se leva
catiripapo na alma.
― Bom, mas tu
ganhou tudo agora: songbook, homenagens, regravações mil...
― É o de
sempre: artista bom é artista morto. Tá só faltando o filme com o Lázaro Ramos
me interpretando nas telas, e a biografia não-autorizada, mas essa vai demorar:
é que o Satanás anda ocupado.
― Hehehe. Continua
antenado no movimento, você.
― Tu também
Alda, quando te vejo cercada desses jovens, uma molecada talentosa pacas,
conectando uma geração com a outra, ai menina, me dá uma vontade de estar aí
contigo!
― Nem diga,
cara, sinto tua falta todos os dias. Estou com você, lado a lado, o tempo penso
no que você disse, let’s dance, e não last dance.
― Mas tu
continua bunda mole a vida toda, não podia logo negociar vinte shows com o
SESC?
― Bicho, sabe
que escutei você no meu ouvido quando definimos a agenda de shows?
― Claro, nega,
eu tava do lado de cá berrando! Continua tudo igual aí, a mesma turminha de
egos inflados e mentes anoréxicas, quando será que o patropi vai crescer? Nossa
indústria cultural é o reflexo do país da bandalha, da mesquinharia, sempre a
velha celebração da esperteza burra, o triunfalismo carnavalizante.
― Como sei do
que cê tá falando, sofro isso na pele todos os dias...
― Mas então,
pra que foi que me chamou, me arrancando do desassossego dos mortos?
― Nem sei
direito, tinha tanta coisa pra te perguntar... mas agora, com você aqui, me
embananei toda. Que é que eu faço, ou melhor, que é que ainda tenho de fazer?
― Ah, não, sem
essa breguice de me perguntar o sentido da vida! Enquanto ela dura, andamos às
cegas, depois que acaba, menos luz ainda, Alda. Você sabe aonde vão as palavras
que não dizemos? Pra onde vai o que quisemos fazer e não fizemos? O que não nos
permitimos sentir? Pois bem, tudo isso se acumula na inteligência do corpo,
vira lágrimas, azedume, insônia, nostalgia besta, mágoas, por isso te digo: não
deixa escapar nenhum som, nenhuma canção que você puder botar no mundo. Alda,
você anda de Mercedes, mas não tem bens. Que se fodam os bens materiais! Alda,
tudo que deixamos de dizer não morre, nos mata.
― Eu te amo,
palmeira do deserto.
― Também. Do
amor ninguém escápula.