sábado, 30 de agosto de 2014

Sezefredo Taveira (final)




Nem eu me conheço. Os outros?, só imagino. Cada vez mais me pergunto se deveras aprendi algo com o passar dos anos, e cada vez menos dou por fato consumado as respostas, parcas, que recolho sem método aqui e ali. O mundão é grande e sem porteiras, só a beleza nos salva. Descobri que não é necessário acreditar no belo para ser vítima dele, pois o arrebatamento vem como os terremotos: não respeita feriado ou dia santo, e nem há onde se esconder. Tentar não, fazendo ou deixando de fazer, tentativa não há. Fugir do mundo não protege de quase nada, a não ser do pior e do melhor ― justamente as coisas mais importantes da vida.
As etiquetas e as palavras falham. Devemos desconfiar delas como das verdades reveladas, palavras servem se pensarmos nelas como meras estações de um trem sem parada, nas quais a ignorância pousa brevemente o segredo que a língua vela e descobre. Livrar-se do que excede, livrar-se de si mesmo e permitir que o instante se configure, se instaure pleno, e em seguida desapareça. O existir é poema em fluxo, sua impermanência está no desmanchar constante do tempo, sua essência, no reconhecer-se parte integrante de um ciclo contínuo, uma viagem de fora para dentro repleta de indefinições, mas que ainda assim sugere o recomeço na primavera, a alegria no verão, a introspecção no outono e o silêncio no inverno, numa sucessão infinita e derradeira.
Este é o meu testemunho, a confissão daquilo que o tempo tatuou em mim de uma vez e para sempre, aquele nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelas ruas baldias ou junto ao mar, eu repetia esse mantra sagrado, desfolhava-o na brisa como se fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Sezefredo Taveira!, gritava até perder os bofes, gritava para que os costados dos navios pudessem devolver-me em forma de eco essa primeira lição de poesia, essa interminável soletração do absoluto.
Não há pedra que pense o vento como o vento pensa a pedra. Tenho a dor das conchas extraviadas, uma dor de pedaços que não voltam, eu sou os destroços de muitas pessoas. Em caso de perda, e também em todos os outros, melhor será contar histórias, enquanto as narramos, os futuros se prometem e os passados se acumulam. Só assim é possível abrir as tramas e soltar as pontas amarradas. Quanto ao que restar fechado, não devemos desistir: é importante prosseguir com os contos, libertar relatos, sonhos e devaneios, até que a contraluz de uma fala comece a delinear contornos na obscuridade.
Muitos anos depois, desintegrada a Maceió da minha infância, e já estrangeirado de raízes e paróquias, voltei à curva da rua do Farol. O portão trancado e as janelas vedadas por tábuas sinalizavam a deserção do palacete Taveira, lá dentro, no pomar carregado de fruta madura, a gataria se espreguiçava à sombra de bojudas porcelanas azuis. Metade de um século se passara desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada do amor, o universo branco e verde estriado de grossas grades negras e manchas róseas. Seus antigos dramas e habitantes já deveriam andar por outra, e mais metafísica, morada. Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos azulejados, as escadarias de mármore, o azinhavre no ferro das balaustradas. E chamei: Sezefredo Taveira!
Chamei a quem, a quê? Repetia inebriado a fórmula mágica, encantatória, conjurando o fantasma da mulher que em todas as outras mulheres busquei, encontrei e perdi ao longo da vida. Porém, a Rainha dadeira do meu reino maravilhoso de antanho emigrara em arribação de nuvens, transfigurada em legendas de musgo na pedra de cantaria, sublimada no cipó bravo a ingresiar as calhas derruídas do casarão; seu nome para sempre ignorado voou pelos ares como um pássaro, chocou-se contra o costado dos cargueiros de além-oceano, e voltou metamorfoseado em eco aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia dos nomes que não precisam mais de figura ou anedota, e se tornaram para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.


domingo, 24 de agosto de 2014

Sezefredo Taveira (2)


Ignoro se ele era alagoano ou mais um dos muitos imigrantes portugueses estabelecidos em Maceió que enriqueciam no ramo de tecidos, passamanaria, secos e molhados, e terminavam comendadores antes de se retirar para a terrinha. Porém, no bangalô da rua do Farol, na exuberância equatorial do jardim, caminhando pela sombra de árvores tronchas com o mormaço equatorial, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota ― a esposa do Sezefredo Taveira.
O passado é esse animal que nunca termina de agonizar, até hoje me maltrata não ter retido o nome daquela deusa, a jovem senhora que a cidade, uníssona, proclamava adúltera. A mulher do Sezefredo. As coisas sem forma são as mais pronunciadas por crianças: recordo-me especialmente de seus olhos garços, cintilando infixos entre esverdeados e azuis, uma cor na fronteira de céu e mar. Toda vestida de branco, ela se aproximava da varanda do sobrado e seu olhar seguia o trajeto do amante que vinha caminhando pela calçada defronte, pausado, elegante, insaciavelmente feliz.
Quando ele passava diante da varanda, ela lhe sorria, e nesse sorriso, que tornava mais oscilante a cor dos seus olhos, fremia um universo de desconhecidas volúpias, toda a glória da carne à espera. Possivelmente, a memória, com suas tintas falsárias, pintou-a para mim de branco, envolta em sedas e tafetás na antecipação do êxtase vespertino numa alcova misteriosa. A cama larga, de patente, haveria de ter travesseiros altos e rendados e castos lençóis de linho cheirando a alfazema, e não faltaria mesmo um mosquiteiro para resguardar o idílio da investida dos piuns vindos dos mangues e sarjetas.
Inclinando levemente a aba do chapéu chile, roupa de imaculado linho cru e sapatos de duas cores, o amante dobrava a esquina saudando-a uma última vez. Ela se retirava da janela (e da vista da molecada escondida e à espreita), ia dedicar-se aos afazeres domésticos, cuidar do de-comer do marido manso; sumia no interior do sobrado cheio de vasos de flores e bibelôs sobre o piano.
Ninguém perdoava ― embora muitos, silenciosamente, compreendessem ― Sezefredo Taveira por dividir a beleza deslumbrante da mulher, usufruindo a meias (quiçá a quintas) o lânguido pestanejar daqueles olhos garços. Não ousava separar-se dela ou matá-la, apesar da tradição local assegurar aos machos traídos em seus brios pronta absolvição no tribunal do júri, caso resolvessem, como então se dizia, “lavar a honra com sangue”.
Nisto residia o mais arcano aspecto que o mundo confrontava ao olhar e à fantasia de menino: mal podia imaginar como era possível aos adultos viverem na confusa amálgama de putaria e moralismo em que, efetivamente, vivem. Mas é inegável que o arranjo do casal a três bafejou aqueles anos distantes com a doce maciez da infância dos curumins; a mansão Taveira, crivada de sacadas, cegas janelas e vitrais coloridos, em sua rotina devassamente plácida, no balançar das copas das mangueiras e cajueiros do seu jardim com a viração no fecho da tarde, foi assim me ensinando paciente cada rococó da inesperada arquitetura do desejo.
E foram aquelas duas palavras, tão imbuídas para mim de misturados sentidos, que tiveram o poder de extorquir a única opinião política que cheguei a ouvir de meu pai. O grande silêncio gravado na parede da memória, a mudez rombuda e obstinada de papai. Foi na época de uma grande eleição, a nossa casa, normalmente pacata, estava cheia da parentada vinda do sertão brabo; alguém comentou que Sezefredo Taveira declarara publicamente seu apoio à candidatura Góis Monteiro.
― Quem, o corno? Belo incentivo o Silvestre teve, um monte de bacharelismo em papel de jornal... Parolagem!
― Se ao menos ele botar comida nos comícios do Góis Monteiro, já é alguma coisa. Mas rapaz, é verdade verdadeira, fato sabido e havido por certo, a bandalha no palacete do Comendador come solta e sossegada?
― Dizem que ele gosta demais da ingrata; tem o coração mole, é o que é. E depois, fazer o quê, se nos particulares do amor, tudo que não pode, manda?
― Ah, mas não se preocupem, cornos somos todos ― fosse pelo teor da assertiva, fosse por papai ser orador bissexto, fez-se pesado silêncio ― Não se iludam: nas eleições, todo mundo é corno.
― Oxe, mas que conversa é essa, macho velho? E como é isso?
― É simples, na política o chifrudo é o povo, sempre o último a saber.



sábado, 16 de agosto de 2014

Sezefredo Taveira (1)




Em nossa casa havia muitos livros em prateleiras que alcançavam o teto, raros tinham o dom de interessar-me. Meu pai costumava trazer para casa grandes livros negros com lombadas de pano ― livros-caixa, anuários, registros de fretes e notas fiscais ― e passava as noites em silenciosos trabalhos de contabilidade. Eu deixava-me ficar ao seu lado na mesa da sala de jantar, e terminava sempre dormindo, a cabeça apoiada no vértice superior do triângulo formado pelo braço direito.
À meia noite, ele interrompia as contas e cálculos, fechava os livros, armava-se de um revólver, e saía sob o céu estrelado para dar três voltas de corrente no cadeado do portão. Vez por outra, era despertado pelo tiro para o alto que ele costumava dar de aviso aos ladrões ― os gatunos desafiavam a vigilância dos cachorros Dito e Zorro, vezeiros em roubar galinhas do quintal dos fundos.
Quase nunca encontrava o que queria nas estantes abarrotadas. Lembro do The Story of the Romans, de H. A. Guerber, da Geografia Ilustrada do Brasil de Borges dos Reis, livro cuja maior atração eram os mapas coloridos, além de inúmeras obras sobre direito e leis, que não diziam nada a quem vivia à cata de histórias de fadas, relatos de aventuras, mistérios e crimes. Muito raramente, Florencinho, meu primo, trazia exemplares do Tico-Tico e folhetos do Nick Carter.
Em revistas antigas, como Eu sei tudo, encontradas na casa de tia Dora, mãe do Florencinho, eu agarrava novos retalhos desse mundo evanescente. Isolava-me, lia, e as fotografias em sépia, cor de cinema, ampliavam ainda mais o milagre daquelas páginas. Uma constelação de palavras encantadas fulgia na minha infância gris, além dos galhos floridos da paisagem, no claro do céu azul, embaixo do sol grande. Eram palavras azuis como o anil das lavadeiras, navios brancos, iguais às nuvens boiando acima dos negros anuns em revoada.
Swaíli, Bessarábia, Guatemala, Mississipi, Tasmânia, Cunhambebe, Pajuçara, Fernão Velho, Trapiche da Barra, Ponta da Terra.
Mas não havia nome para tudo. Nomes de lugares, nomes de pessoas, nomes de nomes, palavras sem pele, despojadas de toda a sua carga de história, mais figura que acervo, catálogos do aleatório, índices de chuva e pedra, efígies abstratas. As coisas tinham nomes, mas que nome poderia eu dar a certo momento veludoso e odorante, ao minuto em que só havia maresia e gaivotas no ar, as notas distantes do piano de vovó, a assuada dos moleques em torno do quebra-pote nas tardes de domingo? Um dia seria preciso, adivinhava, inventar palavras, seguir as indicações perdidas do velho mapa dos piratas para desenterrar do sótão a arca empoeirada, e, então, retirar dela amorosamente o inestimável tesouro do novo.
Na ganga bruta daqueles tempos nímios se aderiu um nome, Sezefredo Taveira, morava na rua do Farol, no final, onde o bonde fazia a curva de volta para o centro. Os muros brancos cercando o quarteirão semi-escondiam o sobrado, também branco, que aparecia por entre as grades e as pinhas do portão. O palacete branco exalava riqueza, luxo, secretos esplendores. Além dos balcões fechados, mudas venezianas e sacadas, impregnado nas estatuetas de mármore espalhadas pelo jardim musguento, daquele universo de opulência e finos azulejos transudava constantemente o perfume do rosmaninho, das dálias e do jasmim em flor.
Era o palácio de Sezefredo Taveira. E esse nome, ao qual sou incapaz de ligar um rosto, uma pessoa, ocupou toda a minha infância com a sua magia, era o preâmbulo das encantações, demorava-se no meu peito como uma bolha de sabão, para se estilhaçar em solfejos no ar eternamente perfumado pelo Oceano. E assim, Sezefredo Taveira era apenas um nome: a belíssima sonoridade de um caco de mitologia, uma flor alienígena que, no lugar de pétalas, possuía sílabas.


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Blecaute (final)


A morte não dói no morto, mas nos outros ― com a estupidez passa-se o mesmo. A consciência é o enganche: faz nascer o eu, ainda que ao preço de o fazer sofrer. Mas não acontece de inventarmos apenas um eu, inventamos sobretudo os outros.
A roda travara. No meio do círculo de famintos, Bob e o menino não tinham como fugir, o pai, postado a dez passos do limite externo do grupo, mantinha a arma engatilhada. Ninguém se atrevia a dar um passo. Ninguém recuava. Os olhares de todos relanceavam de um para o outro em busca de alguma reação.
Evitavam desencadear a tempestade sabendo que ela viria, certa e segura.
Cedo ou tarde.
O problema é que quem fizesse o primeiro movimento chamaria para si fatalmente o ataque inicial. Havia uma flecha e um tiro engatilhados que dificilmente errariam seu alvo, o bando estava desarmado, mas certamente massacraria os autores dos disparos aproveitando a superioridade numérica.
“Gente, temos comida suficiente pra todo mundo. Será que não podemos resolver esta bagaça na boa?”
“Cala a boca Bob! Será que você ainda não esgotou sua cota de tosqueiras por hoje?”
“O rapaz tem razão, dividam sua comida conosco e ninguém precisa se machucar”, o gordinho líder da horda assumiu um tom conciliador.
“Aí maluco, meu acordo é o seguinte: vocês dão o fora e ficam todos vivos, se resolverem arriscar alguém vai se dar muito mal... Quem vai querer tirar a sorte grande? Pensem bem”, ele mirou a espingarda bem na cara do pica. A bandeira branca acabava de ser arriada.
Imperceptivelmente começaram a se mexer, arrastando os pés com cautela como se pudessem abandonar o impasse de maneira gradual. Queriam chegar à omelete sem quebrar os ovos.
“Que foi isso?”
Neste exato momento disparou um charivari de alarmes e ring tones de celular, bafafá desconcertante e cacofônico em franco desacordo com os ruídos da floresta. Ninguém conseguia localizar a origem da barulheira, até que o Bob sacou o celular do bolso.
“Ih, rapaziada, é o meu, deixei ligado just in case. Nossa, a internet voltou, tá chegando uma pá de mensagens... o apagão acabou!”
Um silêncio constrangido se instalou na cena. O círculo se desorganizou. Ele abaixou a arma, no que foi imitado pelo filho.
“Bom, é, acho que podemos dar um pouco da comida pra vocês... Ei! Vocês estão indo embora?”
O ex-líder do grupo ainda se virou pra responder, os outros simplesmente sumiram pelo mato.
“Não precisa mais, vou pra casa. Todos vão, acho. Agora é voltar cada um pra sua vida. O futuro já não é mais o que era.”