A morte não
dói no morto, mas nos outros ― com a estupidez passa-se o mesmo. A consciência é
o enganche: faz nascer o eu, ainda que ao preço de o fazer sofrer. Mas não
acontece de inventarmos apenas um eu, inventamos sobretudo os outros.
A roda
travara. No meio do círculo de famintos, Bob e o menino não tinham como fugir,
o pai, postado a dez passos do limite externo do grupo, mantinha a arma
engatilhada. Ninguém se atrevia a dar um passo. Ninguém recuava. Os olhares de todos
relanceavam de um para o outro em busca de alguma reação.
Evitavam desencadear
a tempestade sabendo que ela viria, certa e segura.
Cedo ou tarde.
O problema é
que quem fizesse o primeiro movimento chamaria para si fatalmente o ataque
inicial. Havia uma flecha e um tiro engatilhados que dificilmente errariam seu
alvo, o bando estava desarmado, mas certamente massacraria os autores dos
disparos aproveitando a superioridade numérica.
“Gente, temos
comida suficiente pra todo mundo. Será que não podemos resolver esta bagaça na
boa?”
“Cala a boca
Bob! Será que você ainda não esgotou sua cota de tosqueiras por hoje?”
“O rapaz tem
razão, dividam sua comida conosco e ninguém precisa se machucar”, o gordinho
líder da horda assumiu um tom conciliador.
“Aí maluco,
meu acordo é o seguinte: vocês dão o fora e ficam todos vivos, se resolverem arriscar
alguém vai se dar muito mal... Quem vai querer tirar a sorte grande? Pensem
bem”, ele mirou a espingarda bem na cara do pica. A bandeira branca acabava de
ser arriada.
Imperceptivelmente
começaram a se mexer, arrastando os pés com cautela como se pudessem abandonar
o impasse de maneira gradual. Queriam chegar à omelete sem quebrar os ovos.
“Que foi
isso?”
Neste exato
momento disparou um charivari de alarmes e ring
tones de celular, bafafá desconcertante e cacofônico em franco desacordo
com os ruídos da floresta. Ninguém conseguia localizar a origem da barulheira,
até que o Bob sacou o celular do bolso.
“Ih,
rapaziada, é o meu, deixei ligado just in
case. Nossa, a internet voltou, tá chegando uma pá de mensagens... o apagão
acabou!”
Um silêncio constrangido
se instalou na cena. O círculo se desorganizou. Ele abaixou a arma, no que foi
imitado pelo filho.
“Bom, é, acho
que podemos dar um pouco da comida pra vocês... Ei! Vocês estão indo embora?”
O ex-líder do
grupo ainda se virou pra responder, os outros simplesmente sumiram pelo mato.
“Não precisa
mais, vou pra casa. Todos vão, acho. Agora é voltar cada um pra sua vida. O
futuro já não é mais o que era.”
Um comentário:
Tudo é circunstancial?! Entre a fome e a vontade de comer?
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