quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Blecaute (final)


A morte não dói no morto, mas nos outros ― com a estupidez passa-se o mesmo. A consciência é o enganche: faz nascer o eu, ainda que ao preço de o fazer sofrer. Mas não acontece de inventarmos apenas um eu, inventamos sobretudo os outros.
A roda travara. No meio do círculo de famintos, Bob e o menino não tinham como fugir, o pai, postado a dez passos do limite externo do grupo, mantinha a arma engatilhada. Ninguém se atrevia a dar um passo. Ninguém recuava. Os olhares de todos relanceavam de um para o outro em busca de alguma reação.
Evitavam desencadear a tempestade sabendo que ela viria, certa e segura.
Cedo ou tarde.
O problema é que quem fizesse o primeiro movimento chamaria para si fatalmente o ataque inicial. Havia uma flecha e um tiro engatilhados que dificilmente errariam seu alvo, o bando estava desarmado, mas certamente massacraria os autores dos disparos aproveitando a superioridade numérica.
“Gente, temos comida suficiente pra todo mundo. Será que não podemos resolver esta bagaça na boa?”
“Cala a boca Bob! Será que você ainda não esgotou sua cota de tosqueiras por hoje?”
“O rapaz tem razão, dividam sua comida conosco e ninguém precisa se machucar”, o gordinho líder da horda assumiu um tom conciliador.
“Aí maluco, meu acordo é o seguinte: vocês dão o fora e ficam todos vivos, se resolverem arriscar alguém vai se dar muito mal... Quem vai querer tirar a sorte grande? Pensem bem”, ele mirou a espingarda bem na cara do pica. A bandeira branca acabava de ser arriada.
Imperceptivelmente começaram a se mexer, arrastando os pés com cautela como se pudessem abandonar o impasse de maneira gradual. Queriam chegar à omelete sem quebrar os ovos.
“Que foi isso?”
Neste exato momento disparou um charivari de alarmes e ring tones de celular, bafafá desconcertante e cacofônico em franco desacordo com os ruídos da floresta. Ninguém conseguia localizar a origem da barulheira, até que o Bob sacou o celular do bolso.
“Ih, rapaziada, é o meu, deixei ligado just in case. Nossa, a internet voltou, tá chegando uma pá de mensagens... o apagão acabou!”
Um silêncio constrangido se instalou na cena. O círculo se desorganizou. Ele abaixou a arma, no que foi imitado pelo filho.
“Bom, é, acho que podemos dar um pouco da comida pra vocês... Ei! Vocês estão indo embora?”
O ex-líder do grupo ainda se virou pra responder, os outros simplesmente sumiram pelo mato.
“Não precisa mais, vou pra casa. Todos vão, acho. Agora é voltar cada um pra sua vida. O futuro já não é mais o que era.”



Um comentário:

Anônimo disse...

Tudo é circunstancial?! Entre a fome e a vontade de comer?