quarta-feira, 24 de setembro de 2014

a técnica perdida de achar coisas que não existem (3)


No quarto do hotel luxuoso ― de estilo moderno, porém retrô ―, nem todas as notícias a me aguardar eram boas. Como prometido, as instruções detalhadas do que deveria fazer no dia seguinte lá estavam, dentro de um envelope com as iniciais DSK. Quem diabos é essa pessoa, ou seria uma empresa? O “d” e o “s” ainda poderiam encaixar em mim, via-me tranquilamente como Daniel Santos, Douglas Silva, ou até Diego Souza, mas o K fazia pensar num sobrenome estrangeiro. E eu tinha cara de tudo, menos de japa ou gringo. O conteúdo da mala preta foi outro balde de água gelada: roupas de mulher.
Figura, corpo, presença, são designações muito elaboradas, noções situadas na região dos meios; o mesmo já não se pode dizer da existência de carne e osso despida de nome: algo nela ainda não penetrou até às fontes físicas da vida, permanecendo ao largo do organismo inconsciente e generalizável onde se abriga a idéia. Eu estava ali completamente só, procurando religar os fios de algum propósito aos nervos e tendões de um corpo, de uma biografia, quando decidi que não seria o Ricardo-Coração-de-Leão, mas o Ricardo-Coração-dos-Outros ― passaria a viver consoante o que esperassem de mim, e não mais me conformaria à ilusão auto-imposta de um self único, pessoal e intransferível.
Pagando bem, que mal que tem? Ia ser pago para atuar num filme comercial, uma propaganda de um produto médico. Um ator era o que queriam que eu fosse? Eu seria um ator. Sem problemas, contanto que me dessem hospedagem, roupas, traslados, mordomias, grana no bolso, e, ao final, me pusessem de volta num avião. Pode-se viver perfeitamente sem uma identidade fixa, estável, neste mundo de consistência mercurial onde as perguntas já contêm as respostas. Por um desses redobramentos de fora para dentro, tudo sempre pode ser outra coisa, mas é a superfície que se torna essencial e profunda.
A van chegou pontualmente à oito da manhã para me buscar. Fui levado pelas ruas de uma cidade desconhecida para o galpão de uma produtora num bairro residencial e bastante arborizado. Gravar um comercial de poucos segundos é uma atividade extenuante que envolve uma equipe inimaginável de fotógrafos, editores, diretores, produtores, técnicos, maquiadores e figurinistas, além dos atores. Há todo tipo de especialistas num set de filmagens, inclusive os experts em coisa nenhuma. Ficamos um dia inteiro repetindo cenas, acertando a luz, o som, as falas, a marcação de cena, até chegar a uma peça audiovisual que seria submetida à aprovação do cliente no dia seguinte.
Pelo que pude acompanhar da montagem na edição final, o filmete ficou mais ou menos assim:
Cena 1 – Plano aberto, externa. Tiozinho sentado na praia numa cadeira branca tomando uma água de côco, aproxima-se uma gostosona, falsa loira, de biquíni cortininha fio dental ao som de um samba partido alto. Ela deixa cair a canga e se agacha para pegá-la arrebitando o bumbum bem na frente do macróbio, sem despertar nenhuma reação nele. Um sujeito de agasalho azul escuro que corria na areia da praia, chega pelo lado oposto da cadeira, por trás, e recomenda ao velhinho:
― Ô gente fina, tome Anemokol rapaz!
Cena 2 – Enquadramento médio, cena de estúdio, plano-seqüência único, um consultório médico bem clean, na parede do fundo de divisórias brancas um crucifixo de ferro batido, onde no lugar do Cristo vê-se o Homem Vitruviano. O médico, já de certa idade, respeitavelmente vestido com um jaleco de manga curta, óculos drummondianos, bigode fino e estetoscópio em volta o pescoço, caminha da direita para a esquerda, e se senta na mesa de trabalho segurando uma caixa do produto virada para a tela.
― A saúde, a energia, a vitalidade, e o apetite, você consegue com...? Anemokol!
Packshot 1 – caixas empilhadas do produto, entra um lettering horizontal com o nome do produto, seguido de uma faixa diagonal que repete a fala do locutor:
― Anemokol, à venda nas farmácias e drogarias.
(Volta para a cena inicial) – Contraplano da cena 1, o velhinho se levanta, animado só com a dica, e corre pra xavecar a moça que se afastava na praia pela esquerda. À direita da tela o corredor se afasta.
Cena 3 – Edição rápida de várias externas com entrevistas de populares dando opinião sobre o remédio (no táxi, no botequim, no balcão da farmácia, na feira, um anão fala com a boca cheia de frango, etc.).
Packshot 2 - caixas empilhadas do produto, entra um lettering horizontal com o nome do produto, seguido de uma faixa diagonal com a fala do locutor:
― Anemokol, à venda nas farmácias e drogarias.
Cena 4 – Quarto de hotel, close no homem de chapéu e terno pretos (sou eu), óculos escuros, cinto fivelão de vaqueiro e botas idem de couro; ele termina de se vestir, travelling pelo quarto até uma mulher inteiramente nua, coberta apenas no púbis e mamilos por flocos de espuma, que emerge de uma jacuzzi com uma toalha enrolada na cabeça. Música sertaneja.
― Eu sou o machão brasileiro: invejado pelos homens, e querido, amado, pelas mulheres. Sabe por quê? Porque eu tomo Anemokol, A-ne-mo-kol. Com Anemokol eu tenho saúde, vitalidade... e muito apetite! È isso aí, Anemokol, vai por mim.
Já sem a toalha na cabeça, a morena escultural soltou os longos cabelos negros, vem por trás e me abraça, carinhosa e submissa. Eu, inteiramente vestido, ela, nua.
Packshot final - caixas empilhadas do produto, entra um lettering horizontal com o nome do produto, seguido de uma faixa diagonal com a fala do locutor, que desta vez acrescenta uma frase:
― Anemokol, à venda nas farmácias e drogarias. Anemokol, o estimulante do século!


Um comentário:

Anônimo disse...

Esse anemokol... Acho que lembro dele... Boa tirada!