sábado, 8 de novembro de 2014

Perivaldo e Cecivânia (#3)



Ele sempre soube que era negro, neguinho, urubu, boneco de piche, tiziu, tição, chiclete de onça, sempre percebeu os olhares atentos dos seguranças, as perguntas dos porteiros, as inevitáveis entradas de serviço, a espera com a pizza atrás das grades de edifícios onde nunca poderia entrar. Sempre soube que era adotado e que dos seus pais não poderia esperar nada, todos os dezessete da sua vida tinham sido uma segunda chance. Não era para ele ter nascido, nascido, quase não sobreviveu, crescido, agora se via na obrigação de cair no mundo de uma hora para a outra. O que Peri nunca poderia saber é que também ele se tornaria um negro fujão como Zumbi, mais um.
Nunca mais esqueceu aquela noite: doze de agosto, o ano ele não lembra porque ainda era muito pivete. Ele assistia ao Supercine, o filme tinha Tom Hanks na comédia Será que ele é? No intervalo, uma mensagem em vídeo interrompe a programação. Um homem encapuzado usando colete à prova de balas diante de uma bandeira que dizia: “O PCC luta pela injustiça carcerária. Paz e justiça”. O homem é negro, ou quase, como quase todo mundo na sua quebrada, ele fala das prisões, os depósitos dos humanos sem direitos, explica que a guerra não é contra a população, os inimigos são o Estado e o seu braço armado, a polícia. Ele termina com uma frase encarando a tela: “A luta é nós e vocês”.
Paz, justiça e liberdade, era o lema deles, repetiam como um refrão de rap. Peri descobriu no espaço de uma noite que não terá os dois primeiros, que só lhe sobrou a correria pela sua liberdade. Escapou mocosado na mala do carro de uma voluntária da ONG que ensinava teatro, dança e capoeira na favela. Dormiu numa ocupação da Barão de Limeira no centro da cidade, e saiu no dia seguinte para procurar outro lugar para ficar. Um dia luminoso e pachorrento de domingo começava na metrópole que não se importava com ele, as pessoas iam e vinham pelas ruas despreocupadamente.
Tentou parar de raciocinar, tentou parar de pensar que estava tudo errado: os bandidos lutavam pela justiça, enquanto a justiça lutava pelos ricos. Vocês? Nós? De quem é a luta? Quem são os mocinhos? Quem são os bandidos? O que ele sabia é que, no final, sempre o poderoso esmaga o fraco. Deslizava no seu skate carregando a mochila nas costas, bonezão de pala cobrindo o rosto e a carteira com dez reais enterrada no bolso da calça larga. Não tinha a menor idéia do que deveria fazer a partir de agora. A porra tava toda errada. Tudo.

As duas meninas haviam ensaiado a coreografia à exaustão, cansadas, deixaram-se cair na cama ainda acompanhando no tablet o clipe do Chimera Dance Cover. Os vídeos da música conhecida como K-pop, o pop coreano, rolavam na TV instalada no típico quarto de adolescente, grupos com nomes como Block B, Wide Vision, SHINee, 2NE1, Winlock Dance Crew, D.I.V.A., Tiny G, B2, Sun Mi, além do inimitável Psy.
― Zica monstra, amiga, zica monstra. Desculpa falar, mas esse mino tem a maior cara de encrenca.
― Por quê? Só porque ele é pobre? Qual é, Sandrinha, se for assim nós também não somos da burguesia...
― Ah, Ceci, a Freguesia não é a mesma coisa que o Capão, aqui é bairro, não é quebrada. Lá onde esse Peri mora, jacaré toma água no canudinho de medo de piranha, fia.
Caía a tarde. A menina admirava o estilo bem próprio de Ceci se vestir edançar, os olhos grandes e amendoados, o rosto moreno rosado, os lábios carnudos, os longos cabelos arrumados em dread locks coloridos. Na verdade, ninguém conseguia evitar um certo despeito diante da beleza de contornos tão definidos quanto suaves da amiga, que lhe parecia uma mistura de Rihanna com Beyoncé. A delícadeza da negritude somada à graça desdenhosa do índio.
― Então, as meninas tão aqui me cobrando, borá lá no Centro Cultural ensaiar?
― Certeza. Vai que o grupo dele também cola lá pra ensaiar...
― Até o nome que escolheram é zoado: Black tipo A!
― San, eu adoro o nome do nosso grupo: Sweet Nightmare, doce pesadelo.


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