A Luzinete, a moça que cuida da
minha irmã, falou que já acabou a hora do parquinho, é a hora que eu menos
gosto do dia: voltar pra casa. Pra começar a gente mora num apartamento
diferente das outras pessoas, grande, vazio, nunca toca música, ninguém faz
barulho, e a mamãe deixa tudo muito arrumado.
Arrumado DEMAIS, nada na nossa
casa nunca sai do lugar certo. Um lugar pra cada coisa, cada coisa em seu
lugar, ela vive falando. Mamãe é muito, muito nervosa, tem mania de arrumação e
limpeza, toda vez que ela tá no computador eu vejo ela estudando sobre germes e
bactérias. Ela se tranca no quarto pra chorar.
Tem três moças que trabalham aqui,
a Luzinete, a Marilda e a Cida, elas têm que lavar as mãos a toda hora com
álcool-gel senão vão pra rua. A Cida é a mais faladeira, que eu gosto mais
também, outro dia ouvi ela dizendo que a mamãe não tem vida, que ela vive
encaramujada neste apartamento.
Encaramujada, nunca tinha ouvido
essa palavra mas entendi na hora o significado. Tem palavras que são assim,
explicam logo de uma vez, outras a gente nem percebe de tão fáceis, e algumas
são como as bolhas de sabão: quando a gente acha que pegou elas, elas estouram
na nossa cara e fazem cócegas no nariz.
Eu acredito nas palavras, mas não
acredito nas pessoas porque as pessoas têm a mania de falar uma coisa e fazer
outra. Se o mundo fosse feito de palavras que só querem dizer uma coisa não
seria todo torto como é. A minha mãe não deixa ninguém falar palavrão, ela diz
que é muito feio. Só o papai às vezes fala um monte de palavrões.
Quando eu era bem pequena, minha
irmã ainda era bebê, eu ficava tentando fazer o tempo parar. Nunca consegui.
Tudo por causa da Cida que ficava me dizendo que eu podia fazer a mágica de “sumir
com a hora”, ela me dava um relógio velho e me dizia pra ficar quietinha dentro
do armário. O tempo que eu agüentasse não tinha passado de verdade, era pra
sempre só meu.
Demorei muito até entender que os
outros relógios não tinham parado enquanto eu me escondia, as coisas todas
continuavam a acontecer e só comigo não tinha acontecido nada. Acho que era o
jeito da Cida me proteger, ou sei lá, ela é assim mesmo, cheia de potocas e
histórias da loira do banheiro.
Mas não desisti, mudei só o
caminho de chegar aonde eu quero: se não posso parar o tempo do relógio, vou
parar o tempo em mim.
Porque ficar igual aos adultos é que não vou, de jeito e
maneira, não vou namorar, não vou casar, não vou ter filhos, não vou ficar
velhinha ― se deixarem, nem morrer eu vou porque viro estrela de purpurina.
Se fosse perguntar ninguém gostaria
de crescer e virar grande, as pessoas apenas deixam isso acontecer por falta de
imaginação e cansaço e também preguiça. Quando eu olho à minha volta vejo que
as crianças são todas diferentes, mas os adultos parecem muito iguais, como se
tivessem desaprendido a coisa importante que sabiam.
Gente grande parece que gosta de
resolver um problema criando outro maior ainda. Não falha nunca. As coisas
estão dando errado? Faz mais um pouco do mesmo que estava fazendo antes, e se
mesmo assim tá zoado, continua, porque o importante é que uma idéia esteja
certa mesmo se o mundo tem que ficar de ponta cabeça.
Pois é, mas foi direitinho o que
aconteceu aqui em casa quando a minha irmã acabou criando uma baita confusão.
Eu tenho certeza que aquele moço não fez nada, mas ninguém nem quer me ouvir.
4 comentários:
Caro filipe com i,
esta segunda entrada é muito boa!
Abraço
Eu estou adorando. Cairam umas lagriminhas. Foram por causa da beleza, acho. Não coram de triste... Debora
Quis dizer: não foram de tristeza
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