Haverá decerto
coisas piores na infância que o momento no qual descobrimos nos pais a
incapacidade não só de cuidar de nós, os filhos, mas também deles mesmos ―
disso, felizmente, só restam traços, não memória. Do que sim lembro bem foi a
chegada naquela casa: meu pai era a própria imagem do homem perplexo na
derrota, abandonado com três filhas pequenas para criar. Mudamos às pressas
para o sobradão requenguela logo depois que mamãe fugiu com um caminhoneiro, na
casa da nossa falecida avó ele talvez esperasse livrar a família daquela doença
contagiosa. A vergonha.
― Você
tá vendo as gracinhas dela? Foi assim que tudo começou.
― Ela
era só uma menina, e nós mais ainda...
―
Sempre defendendo ela, né? Claro, você é a boazinha, cheia de compaixão! Mas
pra mim a danada sabia muito bem o que estava fazendo: ficava desse jeito se
balançando, horas e horas. Possuída, diziam.
Dormíamos
sobre estopas num quarto sem luz em que as tábuas do assoalho gemiam à noite,
aliás, como tudo naquele edifício cansado. Na escola, apontavam-nos ao longe,
as outras meninas diziam que as mães proibiam de convidar a gente pra brincar
na casa delas. O povo da cidade nos chamava de Filhas da Diaba. Papai passava o
dia bebendo nos botecos, voltava tarde, tropicando pela escada até desabar na
cama vestido, cheirando a mijo e morte da vovó. Durante muito tempo não
tínhamos sequer uma garrafa de água na cozinha.
― Em
vez de ficar falando mal da nossa irmã, bem que podia me ajudar a fechar as
janelas. Não tá vendo a tempestade chegar?
As
nuvens carregadas haviam se deslocado rapidamente, engolfando todo o horizonte
visível. Exércitos sobrevoando o ruído branco da cidade. Corri em vão a fechar
as janelas, a névoa invadiu a sala com seu manto gasoso que não se desfazia em
chuva ou garoa. Nada se decidia.
― Esta
é você: a tarefeira, a que sempre resolve tudo. Inteligente e fofa, uma graça
de pessoa! Quer saber?, nunca houve esse “nós” que você tanto fala!
― Olha,
se não quer ajudar, pelo menos sai da frente. De que te adiantou ser bonita? É
amarga, parece que só vê o lado pior das coisas.
― Ela é
que era, a mais bonita e inteligente de nós... fingiu-se de louca pra trazer
mais desgraça pras nossas vidas. Mas a vida é assim: ela é cruel, e te mata no
final.
Nunca
consegui entender o perigo que tanta gente de bem enxergava em nossa família
pobre e destartalada. Pode ser que fôssemos muito azarados, isso costuma
apavorar os honestos cidadãos. Às vezes penso que eles é que sempre estiveram
certos: talvez houvesse mesmo a parte da maldade no nosso sangue, passando
intacto e geração para geração. O fato é que o pastor resolveu tomar para si a
missão de exorcizar minha irmã mais velha, passavam horas juntos rezando.
―
Aposto que foi desse jeito que ela enlouqueceu aquele homem: levantando a saia
pra ele...
― Como
é que tem coragem de dizer...? Ela tinha só onze anos! Estava assustada, como
eu e você, perdida... nós só estávamos perdidos!
― Foi
de caso pensado, ela deixou o pai saber o que acontecia nas tais sessões...
Atraiu os dois pra arapuca, papai matou o monstro errado!
Sentia
novamente o cansaço do mundo, não conseguia deter a torrente de ódio da minha
irmã, a fumaça macilenta ocupava todo o apartamento, a menina não parava de se
balançar e atirar pra trás, machucando a cabeça na parede. Voltei para o
quarto, quem sabe dormindo aquilo tudo passaria. Achei-me deitada exatamente
como antes, mas agora a menina estava sentada na beira da cama.
Sabia
que não iria embora, tinha vindo pra ficar, estivera ali o tempo todo.