quarta-feira, 16 de novembro de 2011

obrigada eu, (parte 2)


As coisas foram acontecendo em seqüência aproximadamente na mesma época: a morte da Nita, a cachorra-quase-filha, o Teteu anunciou que ia sair de casa e eu descobri que estava com diabetes tipo dois. Perdas em série, embora nem todas negativas, por exemplo, depois que comecei a tomar a metformina dei uma secada impressionante. O problema: depois de uma certa idade, até mesmo perder peso fica complicado. Na terra das mulheres-fruta e do biquíni-etiqueta, não ‘orna’ muito ser a tiazinha ameixa-seca... virado o cabo da Boa Esperança, até mesmo um assaltante pode destruir o que te resta de autoestima sem puxar o gatilho.
“Que la merda, tia, só tem bagulho light nesta cozinha?”
“É que fiquei doente...”
“Tô ligado qual que é, minha mãe também se acabou quando o vagabundo do meu pai picou a mula com outra...”
“Homens... quer dizer, espero que você não se ofenda...”
“Que nada, dona, negar pra quê?, é a real, eu mesmo pego várias lá na minha quebrada... e acha que fico escondendo?... Seguinte, agora vamo trampar, primeiro, me leva no computador das câmeras de segurança... já vai passando celular e nextel, isso, depois vamos cortar o alarme e o fixo, belezinha?”
Enquanto fazíamos uma espécie de tour guiado pela casa atendendo a tudo que ele ia pedindo, cometi o erro mais grave de todos. Justo quando a minha moral com ele estava no ponto mais alto.
“Bom, estamos indo bem, senhora, cadê dólar, jóias... o cofre?”
Tinha acabado de encontrar a minha bolsa perdida entre as almofadas do sofá da sala, abri-a, tirei de lá duzentos reais que estavam na carteira.
“Toma, leva isto, é tudo que tenho aqui hoje. Pega o carro também, é uma Mercedes 91 mas vale uma boa...”
Uma prateleira caiu de uma só vez no chão; eram muranos, porcelanas, cerâmicas, cristais, biscuits, peças de família, lembranças de viagem, que o rapaz derrubou furioso e agora esmigalhava os pedaços caminhando sobre eles, ao mesmo tempo em que me esculachava aos berros e me enfiava o cano da automática nas narinas. Os cacos faziam um barulhinho insuportável comprimidos entre as solas altas dos tênis de corrida importados dele e o assoalho; e, como para sublinhar o que dizia, ia e vinha, ia e vinha, esmagando-os em pedaços cada vez menores. Confusa, aterrorizada, humilhada por ter cometido um erro tão primário, por ter sucumbido à ilusão de achar uma saída rápida e fácil para aquilo, levei uns dois minutos para entender o que ele urrava junto aos meus ouvidos.
“Tá me tirando de mané, sua loque do caralho?! Tá se achando, é, sua puta velha?”, esquadrinhava o ambiente como uma fera na jaula, saiu pela casa afora ensandecido em busca de algo, agora entrava e saía dos cômodos já sem se preocupar diretamente comigo.
Repentinamente, sentia um cansaço em todos os cantos do corpo, um cansaço do tamanho da vida toda. Emudeci. Não conseguia sequer pedir-lhe desculpas, argumentar o que quer que fosse; onde me deixou na sala, ali fiquei, paralisada em pé como se estivesse pregada à parede ou suspensa por fios invisíveis.
“Agora, quero ver tu ficar de rosca comigo, madame, tua chapa vai esquentar!”, trazia um litro de álcool na mão, que deve ter achado na churrasqueira (outro souvenir do Teteu; thanks darling, sempre posso contar com você para terminar de me fuder).
Despejou todo o álcool sobre mim. Acendeu um cigarro.
“Vamos repetir a pergunta que vale um milhão: onde está o cofre? Burguês como você, madame, sempre tem; não vai achando que os outro é burro só porque não estudou...”, falava e, ao mesmo tempo, soltava baforadas na minha cara que me lembravam do cigarro que segurava com a mão livre.
A imagem que se formou na minha mente foi a de um trolho de bosta untado de querosene ― o resumo da ópera ―; uma síntese da minha situação, mas também a daquela vizinhança chique irmã das favelas do entorno e, como elas, sem saneamento básico; um bairro cravejado de condomínios de ‘altíssimo padrão’ com fossas sépticas a contaminar os lençóis subterrâneos, de empreendimentos imobiliários que despejam sem tratamento a sua merda no rio Pinheiros; uma cidade desregulada cujos rios e córregos não passam do mesmo esgoto a céu aberto a unir perifas e zonas ‘diferenciadas’. Um maravilhoso edifício social a rolar bosta para todos os lados!
“Moço, pelo amor que você tem a Deus, não faz nada comigo. Te levo agora, te levo já, você pega tudo que quiser, mas não me queima...”, eu não conseguia deixar de pensar que aquele moço balançando uma arma na minha cara podia muito bem ser filho de alguma empregada doméstica da rua onde moro.
Foi aí que me lembrei de que lado eu estava desse balcão.

2 comentários:

Dalva M. Ferreira disse...

Incorporação.

Vanessa disse...

que leitura gostosa! estou há 3 dias procurando por bons blogs... feliz que encontrei o teu :) um ótimo fim de semana!